Fabio Waltenberg: Teorias de justiça distributiva e as cotas nas universidades brasileiras

Fábio Waltenberg, doutorando em economia na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, envia a seguinte contribuição:

Creio ser importante subdividir a discussão sobre as cotas nas universidades brasileiras em três questões distintas:

(a) As cotas são justas?
(b) As cotas são oportunas? (Benefícios superam custos?)
(c) As cotas são implementáveis?

Evidentemente, há interseções entre essas três questões, mas acredito que a discussão ganhe mais clareza ao ser organizada desta maneira. Por exemplo, mesmo que tivéssemos boas razões para responder positivamente às questões (a) e (b), uma resposta negativa à questão (c) poderia nos levar a tomar posição contra a adoção das cotas. Por outro lado, poderíamos responder positivamente a (b) e (c) mas discordar de (a). Em muitos textos tratando sobre as cotas, me parece haver uma confusão, na argumentação, entre as respostas dadas pelos autores a cada uma das questões.

Neste texto, trato brevemente da questão (a). Meu objetivo principal é apenas apresentar de que forma ela pode ser definida nos termos de uma teoria de justiça distributiva recente e importante. Não tenho a pretensão de respondê-la de maneira definitiva, e já adianto que minha resposta não passará de: “as cotas podem ser justas”. Dedico apenas algumas linhas às questões (b) e (c), não por serem menos importantes, mas por falta de espaço (e também de conhecimento mais aprofundado sobre o assunto).

(a) As cotas são justas?

Para responder à questão (a), isto é, para determinar se as cotas são justas ou não, me parece fundamental recorrer às teorias de justiça distributiva, área de pesquisa que se encontra na fronteira entre a economia normativa e a filosofia política, e que procura fornecer subsídios teóricos para fundamentar a repartição de direitos e obrigações entre os membros de uma sociedade, a partir de princípios éticos básicos. Posições normativas “puras” como a de utilitaristas (eficiência como valor primordial), libertaristas (liberdade) ou igualitaristas (igualdade), provavelmente levariam a prescrições que estariam em contradição com as “intuições morais” da maioria de nós. Indubitavelmente, a obra fundamental e divisor de águas é A theory of justice, de John Rawls (1971), que procurou dar um tratamento mais equilibrado aos princípios de liberdade, igualdade e eficiência. Abriram-se assim as portas para inúmeros desenvolvimentos dentro do que se costuma denominar igualitarismo liberal, entre os quais se destacam os trabalhos de: Michael Walzer, Jon Elster, Ronald Dworkin, Richard Arneson, Philippe Van Parijs, Amartya Sen, John Roemer e Marc Fleurbaey.

Evidentemente, o debate sobre as teorias de justiça distributiva continua ativo e acredito que dificilmente se poderá chegar a algo que se assemelhe a uma “teoria consensual”. Mas alguma convergência existe entre as teorias e, no meu entender, dado o estado-da-arte atual, o trabalho de Roemer (1998), Equality of opportunity, é particularmente interessante. Ele propõe um marco teórico que pretende ser filosoficamente sólido (importantes objeções às contribuições anteriores foram devidamente levadas em conta), mas que também seja pragmático e aplicável a problemas reais. Assim como outros autores, Roemer parte da idéia de que as “vantagens sociais” (ex: renda ou nível de educação) que os indivíduos possuem não devem depender de suas circunstâncias relevantes, isto é, daquilo que não podem controlar e que tenha alguma relevância na determinação de suas chances futuras (ex: terem nascido pobres). Ao mesmo tempo, essas vantagens ou desvantagens sociais devem ser sensíveis a variações no nível de exercício de responsabilidade por parte dos indivíduos (ex: é justo que, em circunstâncias semelhantes, receba uma renda maior quem trabalhe mais duro). Ciente de que a fronteira entre o que é causado por circunstâncias e o que o é por responsabilidade nunca poderá ser traçada de forma inequívoca, Roemer propõe uma solução pragmática que consiste, em primeiro lugar, em dividir a população em tipos relevantes, identificáveis a baixo custo e não facilmente manipuláveis pelo próprio indivíduo (ex: mulheres pobres, homens pobres, mulheres ricas, homens ricos). A partir dessa divisão, as políticas públicas devem ser desenhadas de forma a retribuir de forma semelhante o esforço feito por indivíduos que se encontram na mesma posição dentro da distribuição de resultados (ex: desempenho no vestibular) de cada tipo. Por exemplo, se poderia determinar que pelo menos os 5 ou 10% melhores de cada tipo tivessem vagas asseguradas na universidade. Dessa forma, certos tipos (ex: mulheres e homens pobres) seriam beneficiados pela redistribuição da “vantagem social” que é estudar na universidade. Esse “presente” que recebem na forma dessa redistribuição se justifica pelo fato de que, anteriormente, foram os outros tipos os que receberam (arbitrariamente) outros “presentes”: por exemplo, nasceram ricos e receberam mais auxílio familiar. Resumindo, no interior de cada tipo, a meritocracia reina. Porém, entre tipos, há espaço para redistribuição/compensação.

Roemer não defende esta ou aquela definição de tipos. Ele procura apresentar sua solução de forma geral, e diz que em cada sociedade e para cada problema de alocação de recursos escassos, a definição de tipos poderá ser diferente. O que é pertinente em um país pode não ser em outro (ex: o gênero pode ser importante na definição de tipos no Afeganistão, mas provavelmente terá menos relevância na Suécia); determinada definição de tipos pode ser pertinente para a definição de alocação de recursos na área da saúde, mas pode não fazer sentido em educação. Além disso, apesar de reconhecer que certas “vantagens sociais” decorrem de diferenças em termos de circunstâncias, determinada sociedade pode decidir não compensar as circunstâncias totalmente, pelas mais diversas razões (eficiência, por exemplo). Vale mencionar dois casos extremos e interessantes. O primeiro ocorre quando, em um dado contexto, as diferenças de circunstâncias entre indivíduos não são suficientemente fortes. Conclui-se que há apenas um tipo na sociedade (ex: brasileiros) e que, portanto, não deve haver compensação alguma. O outro extremo é acreditar que as circunstâncias determinam, em 100%, o acesso a determinada vantagem social. Nesse caso, cada indivíduo seria considerado como sendo um tipo, e a regra de alocação de recursos seria uma compensação total, isto é, o objetivo da política pública seria francamente igualitarista.

Nos termos da teoria de Roemer, para se avaliar a política de reserva de vagas nas universidades brasileiras, a questão a responder é se é legítimo retribuir o esforço dos melhores alunos negros e/ou dos melhores alunos provenientes de escola pública, reservando-lhes vagas nas universidades públicas, sendo necessário, para isso, retirar algumas vagas de não-negros e/ou de alunos provenientes de escola privada. Não é possível discutir profundamente aqui essa questão (fundamental no debate das cotas), nem tenho resposta clara para ela. Proponho apenas introduzir o assunto, nos marcos definidos por Roemer.

Em qualquer país do mundo, a cor da pele é certamente uma circunstância (não está ao alcance do indivíduo escolhê-la). Mas a cor da pele é uma circunstância relevante, isto é, ela influencia o resultado dos alunos no vestibular? Certamente não tem influência direta, mas sim indireta. O negro no Brasil enfrenta dificuldades de diversas naturezas (ex: discrimação em diversas instâncias), o que justifica, para alguns, o uso da cor da pele na definição dos tipos à la Roemer. Quanto a estudar em escola pública, embora formalmente seja uma escolha, no Brasil pode ser tomado como uma circunstância (não está ao alcance de pais de alunos pobres escolher outra coisa). A relação de causa e efeito entre freqüentar escola pública e ter baixa probabilidade de passar no vestibular é um fato. O argumento favorável ao uso da característica “negros” na definição de tipos poderia repousar sobre a idéia de que uma política de cotas decorrente de uma definição de tipos meramente baseada no fator “escola pública” não seria suficiente para dar a muitos alunos negros a oportunidade de chegar à universidade. Isso seria verdadeiro se, dentro da distribuição de desempenho no vestibular do tipo “alunos provenientes da escola pública”, os negros se posicionassem mal, de forma tal que poucos chegariam a fazer parte dos 5 ou 10% melhores – em outras palavras, se os negros fossem os mais desfavorecidos entre os desfavorecidos (penso já ter lido evidências a esse respeito). Se isto for verdade, e se estivermos convencidos de que ser negro afeta as chances de se passar no vestibular, então há razões para se defender uma definição de tipos que leve em conta ambas as características: cor da pele e escola pública.

O argumento segundo o qual não se deve implementar uma política de cotas, mas sim melhorar a qualidade do ensino básico pode ser entendido como uma busca de um ideal de igualdade de oportunidades nos primeiros estágios do processo educativo, de tal forma que, quando chegasse o momento do vestibular, já não fosse necessário (nem legítimo) dividir a sociedade em tipos – todos seriam do tipo “brasileiros”. Em tese, o argumento faz sentido, mas o que fazer enquanto não houver igualdade de oportunidades nos primeiros estágios e enquanto a perspectiva de que seja atingida no curto prazo for mínima? Talvez as cotas sejam um bom caminho, ao menos durante alguns anos (décadas, talvez).

Como disse acima, meu objetivo aqui é essencialmente o de apresentar um marco que me parece adequado para se buscarem respostas à questão (a) e não tenho a pretensão (nem condições) de dar uma resposta definitiva. Nao obstante, a meu ver, com base na teoria de Roemer, uma política de cotas com tipos definidos em função da cor da pele e do tipo de escola em que estudaram pode ser considerada justa no Brasil, por constituir uma forma de compensação legítima de fatores pelas quais os indivíduos não são responsáveis, e que têm influência – direta ou indireta – sobre o acesso a uma “vantagem social” importante (acesso ao ensino superior).

(b) As cotas são oportunas? Seus benefícios superam seus custos?

Independentemente da resposta que cada um de nós queira dar à questão (a) podemos abordar as questões (b) ou (c). Com relação a (b) – as cotas são oportunas? – creio que a busca da resposta terá como ingredientes uma boa dose de raciocínio hipotético-dedutivo, combinada a uma análise (inclusive econométrica) das experiências de outros países (o que deu certo? o que não deu?). Creio que os textos que temos lido recentemente no blog do Simon Schwartzman (Fry & Maggie, Maio & Ventura, Militão, S. Schwartzman, L. F. Schwartzman etc.) contêm análises extremamente interessantes e ressaltam pontos importantíssimos, tais como os possíveis problemas jurídicos decorrentes das cotas (ex: a introdução na Constituição da distinção entre “raças”). Outro custo importante a ser levado em conta é o possível estigma que os negros podem ter que carregar, isto é, os custos psicológicos das cotas (ex: beneficiados feridos em seu amor-próprio), com eventuais prejuízos materiais (ex: se o mercado passar a considerar que um diplomado negro vale menos do que um diplomado não-negro). Questões de eficiência não devem ser esquecidas: uma compensação à la Roemer que seja ambiciosa demais poderia levar a uma piora na qualidade média dos estudantes (é claro que pode também não levar – trata-se de uma questão empírica para a qual não temos resposta). Também é preciso levar em conta os interesses dos prejudicados pelas cotas: há um certo grau de injustiça caso se mudem radicalmente as “regras do jogo” (isto é, as regras do processo educativo), depois de “começado o jogo”.

Esses custos devem ser comparados aos potenciais benefícios proporcionados aos contemplados pelas cotas, bem como à sociedade como um todo, a saber: benefícios imediatos (aspecto “consumo” da educação) e futuros (aspecto “investimento” da educação) usufruídos pelos cotistas; a revelação de talentos que não floresceriam na ausência das cotas (argumento do economista clássico Alfred Marshall em prol de “instruir as massas” na Inglaterra do século XIX); os benefícios para gerações futuras de cotistas; os efeitos de incentivo positivos para os grupos que nem mesmo remotamente consideravam possível chegar à universidade; o valor simbólico da medida (reconhecimento das desvantagens dos negros na sociedade brasileira e implementação de medida compensatória).

Mais uma vez, a minha resposta é a de que as cotas podem ser oportunas no Brasil, em grande parte em função do desenho institucional que tomarem, o que nos leva a discutir o ponto (c).

(c) As cotas são implementáveis?

Uma vez que a lei garantindo as cotas será submetida ao Congresso Nacional em breve, a questão (c) ganha uma grande relevância neste momento, qualquer que seja a resposta que cada um de nós gostaria de dar a (a) e (b). As cotas são implementáveis? Uma questão relacionada é: deveriam ser implementadas na forma em que foram concebidas no anteprojeto de lei ou é possível aprimorar o mecanismo para evitar certos problemas?

As dificuldades envolvidas na obtenção de uma informação podem inviabilizar o uso de determinada característica na definição dos tipos. Como dito acima, a solução de Roemer requer uma divisão da população em tipos relevantes, identificáveis a baixo custo e não facilmente manipuláveis pelo próprio indivíduo. Ainda que possa ser justo dar cotas com base na cor da pela, em muitos casos não é possível verificar essa informação de maneira crível a um baixo custo (aliás, tal custo pode ser considerado como sendo infinito). Identificar quem estudou em escola pública tem um custo de verificação menor (ainda que não seja zero).

Os imperativos de eqüidade subjacentes ao mecanismo proposto por Roemer não precisam ser tomados ao pé da letra, e podem muito bem ser combinados com considerações de outras ordens, o que é freqüentemente o caso quando se passa da etapa de definição de regras de alocação de recursos para a etapa de implementação de tais regras. O alto custo de identificação de uma característica em um indivíduo certamente dificulta a implementação das cotas quando se quer que a cor da pele faça parte da definição de tipos, mas não a inviabilizam. Um pouco de “engenharia institucional” é necessária, por razões de implementação (c), mas também para se tentar minimizar os custos potenciais e maximizar os benefícios potenciais, ambos listados acima (b).

O que tenho em mente quando digo “engenharia institucional” são idéias como a que foi proposta por Luisa Farah Schwartzman no blog de Simon Schwartzman (15/4/2006). Ela propõe, em lugar das cotas, um sistema de metas em que “marcar a cor não teria conseqüência individual” (fundamental, a meu ver), em que as universidades teriam incentivos para acompanhar os alunos ao longo de toda a graduação, e que dá autonomia às universidades para ajustarem objetivos gerais da política (definidos pelo governo ou ministério) a contextos e objetivos particulares (de cada universidade). A proposta que tenho esboçado seria de “cotas moderadas, com focalização geográfica, acompanhada de outras políticas educativas (ex: cotas também para ensino básico)”.

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Gostaria de concluir respondendo a uma pergunta que tem sido uma constante nos textos tratando sobre as cotas: “que Brasil queremos?”.

Entre os objetivos da “Cátedra Hoover”, instituto de estudos em ética econômica e social da Université Catholique de Louvain, na Bélgica, encontra-se o seguinte: “Agir a serviço de nossos ideias. Sem cinismo, nem ingenuidade. Sem fanatismo, nem fatalismo.”

Que Brasil queremos? Um país em que direitos e obrigações, vantagens e desvantagens sociais, sejam constantemente desafiados, redesenhados e redefinidos, em função daquilo que, coletivamente, a cada momento, nos parecer mais pertinente, justo e adequado, com base em fatos, mas também em diferentes critérios normativos, e como resultado de debates em que distintos pontos de vista sejam avaliados de maneira serena. Em suma, em que diferentes observadores sociais possam agir a serviço de seus ideais, sem cinismo, nem ingenuidade; sem fanatismo, nem fatalismo. O debate sobre as cotas é uma excelente oportunidade para termos uma discussão normativa desse gênero.

Algumas referências úteis:

1. Para uma introdução às teorias de justiça distributiva, um bom livro é Ethique économique et sociale, de C. Arnsperger e Ph. Van Parijs, infelizmente mal traduzido no Brasil . Outra opção é O que é uma sociedade justa?, de Ph. Van Parijs, mas temo que esteja esgotado. Um livro-texto muito bom, em francês, é o de Marc Fleurbaey (1996), Théories économiques de la justice, Paris : Economica. Um bom artigo introdutório é Amartya Sen (2000) “Social justice and the distribution of income”, chapter 1, In: Atkinson, A.B. and F. Bourguignon (eds) Handbook of income distribution, vol 1, Amsterdam: Elsevier.

2. Para teorias específicas, ver: John Rawls (1971) A theory of justice. Cambridge, MA: Harvard University Press; John Roemer (1998) Equality of opportunity Cambridge, MA: Harvard University Press; Philippe Van Parijs (1995) Real freedom for all. What (if anything) can justify capitalism?, Oxford: Oxford Political Theory; e o artigo de Marc Fleurbaey (1995) “Equal oportunity or equal social outcome?” Economics and Philosophy, vol. 11, pages 25-55.

3. Quanto à definição de justiça em educação, uma visão panorâmica e ainda preliminar foi escrita no início do meu doutorado.  Outro artigo, mais pessoal e, espero, mais profundo e completo, está em preparação.

4. No que se refere a aplicações da teoria de Roemer à educação, uma referência básica é um artigo do próprio Roemer em co-autoria com Julian Betts: “Equalizing opportunity through educational finance reform”. Um dos resultados mostra que uma redistribuição de recursos com base em tipos definidos apenas em termos de renda não melhora muito a situação dos negros americanos.

5.  Vale notar que, neste artigo, meu co-autor, Prof. Vincent Vandenberghe, e eu não usamos “cor da pele” na definição dos tipos, mas sim “educação das mães dos alunos” (cinco tipos).

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Fábio D. Waltenberg é mestre em economia pela Universidade de São Paulo e doutorando em economia na Université Catholique de Louvain, na Bélgica. O título (provisório) de sua tese é: “Normative and quantitative analysis of educational inequalities”. Contato

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

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