Ainda sobre a “necessidade social”

Recentemente, o Ministério da Educação aprovou a criação de dois cursos de medicina em São Paulo, das Universidades Anhembi-Morumbi e Paulista, cujos pedidos de autorização ficaram retidos por dois anos por uma suposta falta de “necessidade social”, embora não houvesse dúvida sobre sua qualidade. Edson Nunes, do Conselho Nacional de Educação, escreveu os pareceres mostrando, com dados, a impossibilidade de utilizar este critério. O Ministério da Educação concordou, tanto que acabou aprovando a criação dos cursos, mas agora volta à carga, por decreto, com a mesma idéia da necessidade social. Os pareceres do CNE, de número CNE/ CES 321/2004 e CNE/CES 322/2004, são públicos.

Mercado e qualidade da educação

Minha crítica à intervenção das corporações de médicos e advogados na autorização de cursos superiores, estabelecida por decreto pelo Ministério da Educação, foi entendida por algumas pessoas (que mandaram comentários anônimos, e por isto não publicados) como que se eu estivesse dizendo que o mercado, por si mesmo, garante a qualidade. Mas eu não penso isto, e não foi isto que eu escrevi.

Ao contrário, acho muito importante que existam sistemas de controle de qualidade, que incluem desde as diferentes modalidades de avaliação de cursos até as formas de avaliação da qualificação dos formados, como é feito por exemplo pelo Exame de Ordem da OAB e certificações da área médica.

O que critiquei, especificamente, foi o uso do tal “critério social” na autorização de cursos privados. Por este critério, um projeto excelente de criação de uma nova faculdade de direito ou de medicina, sem custos para o setor público, pode ser vetado se os advogados ou médicos acharem que já tem faculdades demais naquela localidade. Isto não é controle de qualidade, é controle de mercado, da mesma forma que antes se proibia a abertura de uma padaria se tivesse outra por perto.

Retrocessos da educação superior

Duas noticias recentes mostram que estamos andando de lado, ou para trás, com nosso ensino superior.

No nível federal, o governo finalmente cedeu à pressão da OAB e do Conselho Nacional de Saúde para controlar a criação de novos cursos de direito e medicina no país (ainda que o Ministério da Educação mantenha a palavra final). Aparentemente, uma medida saneadora, porque de fato existem muitos cursos de má qualidade, e as entidades dos advogados e médicos podem e devem avaliar os cursos existentes e seus diplomados. Mas, por outro lado, aparece a tal exigência de “demonstração da relevância social, com base na demanda social e sua relação com a ampliação do acesso à educação superior, observados parâmetros de qualidade”. Isto é controle de mercado puro e simples. Se o curso é bem avaliado e financiado com recursos privados, não cabe ao governo, e muito menos às corporações de classe, decidir se ele deve ou não ser criado. Com isto, simplesmente, consolida-se o monopólio ou oligopólio de quem já está estabelecido, e fecham-se oportunidades para novas iniciativas.

Enquanto isto, em São Paulo, o governo retirou das universidades estaduais a liberdade de remanejar seus recursos. Agora todos fazem parte de um grande sistema de controle centralizado, e, segundo um dirigente do governo paulista, “todos os setores da administração pública devem se submeter às mesmas regras” (estou citando de cabeça, mas foi mais ou menos isto que eu li). Eu seja, as universidades paulistas, de entes autônomos, voltam ao status de meras repartições públicas, da mesma forma que as federais.

UFMG: Inclusão social nas universidades

No dia 24 de novembro, participei de um simpósio na UFMG sobre o tema da inclusão social nas universidades. O tema que mobilizava era a questão das cotas raciais. Na minha apresentação, eu insisti no que venho dizendo, ou seja, que o problema principal da educação superior brasileira não é a inclusão pura e simples, mas a ausência de uma política clara de diferenciação, aliada a uma politica efetiva de melhoria da qualidade, além, naturalmente, de uma política adequada para o ensino básico.

Também mostrei, com dados do ENEM de 2005, como a qualidade da educação média, e consequentemente do acesso ao ensino superior, depende fortemente da educação dos pais e da renda familiar dos candidatos; e que, controlando por renda e educação, o desempenho dos que se classificam como “pretos” é sempre um pouco inferior aos que se classificam como brancos ou pardos, diferença mais acentuada entre os candidatos de pais mais educados e de renda familiar alta. Para entender isto, tratei de ver outras caracteristicas destes grupos de alta educação e renda familiar, e encontrei algumas diferenças que talvez possam ajudar a entender o que está ocorrendo.

O texto, em versão preliminar, pode ser baixado aqui.

O manifesto dos reitores: me dá um dinheiro aí!

Vale a pena ler o documento divulgado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Institutições Federais de Ensino Superior – ANDIFES – entitulado “A ANDIFES e as eleições 2006 – aos candidatos à Presidência da República.”. É fácil de entender: segundo os reitores, existe uma grande ameaça, a expansão desordenada do ensino superior privado. O ensino superior público federal, que é ótimo, só não é melhor porque o governo ainda não lhe dá todo o dinheiro que gostaria de receber, e a autonomia para gastá-lo. As coisas têm melhorado um pouco nos últimos anos, mas poderiam melhorar ainda mais, com mais dinheiro, não só para as universidades, mas também para a pesquisa. Ah, claro, as universidades federais também têm responsabilidade com a educação básica, e para isto o governo precisa universalizar o acesso e pagar mais aos professores. Falta de dinheiro? Tudo se resolve aumentando os gastos públicos da educação para 7% do PIB, sem contingenciamento (hoje deve estar alí pelos 5%). Para isto, só falta vontade política!

Quem lê, até esquece que, ao lado de boas instituições e programas federais, têm muitos outros péssimos, que são igualmente subvencionados e não precisam mostrar resultados; que boa parte do mérito do ensino superior público brasileiro, sobretudo na pós graduação e na pesquisa, está nas universidades paulistas, muito mais que nas federais; que o crescimento recente das instituições federais tem sido e continua sendo tão ou mais desordenado do que o do setor privado, sem nenhum critério aparente de prioridades e necessidades; que parte da responsabilidade pela má qualidade da educação básica no país é das universidades federais, que não formam professores com a qualidade e competência que eles deveriam ter; e que o ensino superior público continua proporcionando um subsídio injusto para os estudantes de classe média e alta que se beneficiam dele à custa dos impostos de todos. Será que lembrar estas coisas é só intriga de quem é a favor do ensino particular como mercadoria?

Precisa dizer de novo? Então, vamos lá. O problema não é de universidades públicas ou privadas, mas de ensino superior de boa ou má qualidade. O país precisa apoiar o ensino superior, usando bem seus recursos, estabelecendo prioridades com clareza, e fazendo com que as instituições beneficiadas assumam a responsabilidade pela qualidade de seus produtos. O subsídio aos estudantes de nível superior não pode ser indiscriminado, mas precisa estar associado a critérios claros de necessidade individual e prioridade social. O setor privado, que já atende a 75% dos alunos, não pode ser demonizado, e precisa de um sistema adequado de regulação, tanto quanto o setor público. É importante aumentar os gastos com a educação, inclusive para o ensino superior, mas, sem políticas adequadas de qualidade e prioridade, este aumento de gastos pode significar, simplesmente, mais poder para os senhores reitores.

Quem será o candidato preferido dos reitores? Um aumento da verba de custeio para quem acertar!

Universidade Para Todos!

Na Venezuela:

Mensagem do cidadão Presidente da República a todos os aspirantes a ingressar na Universidade National Experimental Politécnica da Força Armada Nacional: Dei instruções ao cidadão reitor da Universidade no sentido de que, em consonância com a política de participação, inclusão e justiça social que o governo nacional promove, e dado que a EDUCAÇÃO constitui o meio mais eficaz de combater a POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL E APAGAR AS DIFERENÇAS SOCIAIS, todos os jovens que se apresentaram à primeira prova de avaliação desta universidade sejam admitidos em sua totalidade, para começar a estudar em 2006. Benvindos!

A Universidade da Força Armada vem se expandindo rapidamente, ao lado da recém criada Universidad Bolivariana de Venezuela, também experimental. Os cursos da Universidade da Força Armada não têm nada de militar: são licenciaturas e cursos de pós-graduação em engenharia e áreas como economia social, educação integral, administração e contabilidade pública; e cursos técnicos superiores curtos em áreas como turismo e enfermaria.
O site da Universidade Bolivariana não diz quais as carreiras os estudantes poderão seguir (ou pelo menos eu não encontrei a informação); mas indica que todos deverão passar por um curso inicial de 20 semanas de Linguagem e Comunicação, Matemática, Venezuela no Contexto Mundial, Intervenções Especiais, Informática e Orientação Vocacional. Além de não ter exames de seleção, os alunos que passam pela Universidad Bolivariana, pelo que entendo, terão trabalho garantido pelo governo.

As novas universidades funcionam nas instalações magníficas da Companhia de Petróleo Venezuelana, que, depois de demitir metade de seus 40 mil funcionários que ousaram entrar em greve contra o Governo Bolivariano (sem que isto tenha afetado os enormes rendimentos do petróleo), tem espaço de sobra em seus edifícios.

Ser uma universidade experimental significa que tudo é decidido pelo Cidadão Presidente e seus assessores, sem passar pelas administrações e órgãos colegiados como na secular Universidade Central da Venezuela, por exemplo, que no passado foi um centro importante de mobilização e mesmo de luta armada contra as oligarquias e ditaduras que governavam a Venezuela, e hoje se vê ultrapassada e deixada de lado pela Revolução Bolivariana.

Debate sobre cotas no CEBRAP – 2

O debate sobre cotas nas universidades lida com uma dimensão do ensino superior no Brasil, a do acesso, mas não só deixa outras questões importantes de fora, como que acaba ocupando todo espaço do debate público sobre a questão universitária, que fica em segundo plano.

Em minha apresentação no CEBRAP, chamei a atenção para o fato de que o sistema de ensino superior brasileiro é fortemente estratificado, tanto no sentido de que a maior parte dos alunos vêm de camadas sociais médias e altas, como no sentido de que a estratificação se dá no interior das instituições. Anteriormente, as instituições públicas tendiam a ser de melhor qualidade, gratuitas e de difícil acesso, enquanto que as privadas, além de pagas, eram de pior qualidade, e aceitavam qualquer tipo de aluno. Hoje, existem muitas instituições públicas tão ruins quanto muitas privadas, e diferenças importantes dentro de cada instituição; um número crescente de instituições privadas de elite, sobretudo nas áreas de administração e direito; e um segmento crescente de educação superior privada de acesso gratuito, com poucos requisitos de entrada, e financiado pelo governo federal através do ProUni. Para os estudantes que entram nos cursos e instituições de pior qualidade, públicos ou privados, pagando ou sem pagar, com ou sem cotas, as chances são altas de que aprendam pouco e mal, abandonem o curso antes de diplomar, e, mesmo se conseguirem o diploma, deixem de obter os benefícios que esperavam que ele trouxesse. Na medida em que o ensino superior se expanda, o mais provável é que sejam os segmentos de má qualidade que cresçam, porque estes são os mais baratos, e com isto aumentem estes problemas, a um custo crescente para a sociedade, em dinheiro e frustração.

O caminho não é deter a expansão, mas tornar o sistema mais diversificado e mais eficiente. A diversificação consiste em criar alternativas reais ao modelo dominante de ensino superior, calcado nas antigas profissões liberais, e abrir espaço para diferentes tipos de formação, para pessoas com diferentes interesses e condições de estudo. Hoje, em toda a Europa, discute-se o modelo de Bologna, que combina um nível inicial de três anos para todo o ensino superior, mais acadêmico ou mais aplicado, seguido de um período de formação profissional de dois anos (equivalente ao mestrado), e outro adicional de três ou quatro anos para a formação de alto nível; esta discussão, até agora, não chegou ao Brasil. Se as universidade públicas fossem mais eficientes, elas poderiam, com os mesmos recursos que tem hoje, melhorar sua qualidade e atender a mais alunos. Para se tornarem mais eficientes, elas precisam deixar de funcionar como repartições públicas, assumir a responsabilidade pela gestão plena de seus recursos materiais e humanos, e serem cobradas por seus resultados.

Como não há recursos para continuar financiando a expansão do ensino superior público e gratuito, diante das prioridades muito maiores da educação básica e média, é necessário recolocar a questão do ensino superior público gratuito, e o espaço adequado do ensino privado. A expansão depende hoje, fundamentalmente, do setor privado, que já atende à 70% da matrícula no ensino superior do país. O atual governo, apesar de tratar o setor privado quase como delinqüente, no projeto de reforma que elaborou, foi o primeiro da história recente do país a subsidiá-lo diretamente, através da isenção de impostos do ProUni. É importante criar um marco regulatório adequado tanto para o setor público quanto para o setor privado, para estimular a qualidade de ambos, assim como os espaços para novas modalidades de educação nos mais diversos níveis, e para diferentes públicos.

Parece que esquecemos, finalmente, que uma das funções fundamentais do ensino superior é a formação de alto nível e a pesquisa científica e tecnológica. Isto está dito em todos os documentos públicos, frequentemente em termos da famosa “indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão”. O que não se diz é que, em todo mundo, a excelência só se consegue em algumas poucas instituições, geridas por critérios estritos de qualidade e desempenho, e com níveis de financiamento muito superiores às demais. Sem uma politica deliberada de excelência e concentração de recursos, associada a um processo bastante amplo de diferenciação e ampliação do acesso, não iremos a nenhuma parte.

Em um contexto mais amplo de reformas, cabem, certamente, políticas compensatórias para aumentar a diversidade dos jovens que chegam às universidades, desde que acompanhadas de programas educacionais adequados e apoio financeiro para que o acesso ao ensino superior não seja uma simples farsa; e sem que as pessoas precisem ser catalogadas e etiquetadas pelas autoridades conforme a raça de seus avós.

Universidade, meritocracia e saberes universais

Eduardo Luedy, comentando neste blog o manifesto sobre os “direitos iguais na República Democrática” (veja baixo), diz que, se a universidade é uma instituição meritocrática, e os currículos são baseados em saberes universais, então as cotas não se justificariam. Mas ele desconfia tanto de uma coisa quanto de outra, e acredita que, no fundo (ou nem tão no fundo assim), tanto a meritocracia quanto a noção de saberes universais são pretextos para manter a desigualdade e a discriminação.

São questões importantes, que não permitem respostas apressadas. Sabemos que a relação entre resultados nos exames vestibulares e resultados nos cursos superiores é imperfeita, como é imperfeita a relação entre o desempenho nos cursos e na vida profissional. Nada indica, por exemplo, que os 10% mais qualificados mas que não passaram em um vestibular de medicina seriam piores médicos do que os 10% menos qualificados que passaram. Se a seleção fosse feita por sorteio, neste grande grupo intermediário, os resultados seriam provavelmente os mesmos. Uma vez obtidos, os diplomas funcionam como pontos nos concursos e promoções, licença para o exercício de determinadas profissões, e engordam os currículos no mercado de trabalho, além de trazer prestígio a seus portadores, mesmo que tenham sido péssimos alunos, ou freqüentado escolas de fim de semana. Se os privilégios não dependem do conhecimento nem do mérito, porque usar o mérito como critério de seleção, que só beneficia os filhos das classes médias e altas?

De fato. Mas acontece que os benefícios obtidos pelos títulos enquanto tais beneficiam seus portadores, mas não a sociedade como um todo, porque não passam de sinecuras. O interesse de um indivíduo pode ser o de obter um título com o mínimo possível de esforço, e aproveitar ao máximo da legislação e dos mitos que garantem os privilégios dos portadores do diploma que recebe. O interesse da sociedade, por outro lado, é o de associar ao máximo o diploma à competência, e eliminar os privilégios associados à simples posse de credenciais. O país precisa de profissionais competentes nas diversas áreas, e isto justifica os investimentos públicos na educação superior e na pesquisa; mas não precisa de um sistema de privilégios e de prestígio baseado na distribuição de credenciais educacionais de um tipo ou outro.

Nem sempre é fácil ver este conflito de interesses, porque a defesa dos privilégios profissionais – por exemplo, quando os advogados querem impedir a criação de novas faculdades de direito, quando os médicos tentam limitar as atribuições de outros profissionais de saúde, quando o sindicato de sociólogos obriga as escola a contratar seus filiados para dar aulas nas escolas em todo o país – é sempre feito em nome da qualidade profissional e do interesse da sociedade. No entanto, os profissionais mais bem formados estão, em geral, muito mais preocupados com a qualidade real do diploma que possuem do que com a defesa dos cartórios profissionais. Esta mesma divisão entre os que valorizam os conteúdos e os que valorizam os títulos existe no interior das universidades. Para algumas instituições e pessoas dentro delas, o que importa é fazer prevalecer os valores da competência e do mérito competência no ensino e na pesquisa, não só porque isto beneficia os mais competentes, mas também porque torna mais legítima sua demanda por financiamentos públicos e reconhecimento de sua autoridade profissional. Para outros, no entanto, o que vale são os direitos adquiridos e as posições conquistadas.

Se este raciocínio é correto, então as políticas públicas que incentivam o mérito no ensino superior estão alinhadas com o interesse da sociedade e contribuem para fazer com que as instituições de ensino valorizem cada vez mais o mérito e o desempenho, tanto de alunos quanto de professores e pesquisadores; e vice-versa. Nesta perspectiva, sistemas de cotas para categorias de alunos, na medida em que dissociem o acesso do mérito, são claramente contrárias ao interesse público.

Mas isto não esgota o problema, porque, como sabemos, o mérito está associado às condições educacionais e econômicas das famílias de origem dos estudantes, e, como foi dito no início, nem sempre os sistemas de seleção das universidades refletem o mérito verdadeiro, medido por outros critérios. Existem várias maneiras de enfrentar estes problemas: investindo na preparação de grupos em situações de desvantagem, melhorando suas condições de competitividade; mudando os critérios de seleção para as universidades, saindo do atual sistema rígido de provas para outros que possam tomar outros fatores em consideração; e ampliando e diversificando mais o sistema, de forma a permitir que, no lugar de algumas poucas hierarquias de prestígio, exista uma pluralidade cada vez maior de alternativas.

O que traz à baila o segundo ponto levantado por Eduardo Luedy, o da existência ou não de saberes universais. Esta foi uma grande discussão nos Estados Unidos, aonde se dizia que as universidades tradicionais mantinham o culto da cultura do White Dead Men, e que era necessário substituí-la pelas culturas dos negros, das mulheres, dos jovens e das pessoas vivas, sem falar nas diferentes tradições culturais da Ásia e da África. Como toda a polarização, ela tinha algo de verdadeira, e muito de bobagem. Aplicada às humanidades, faz bastante sentido buscar, recuperar e fortalecer outras tradições culturais, associadas a diferentes identidades, ainda que com o risco de que, nestas novas tradições, as ideologias prevaleçam sobre os conteúdos literários, artísticos e filosóficos das diferentes correntes. Mas não faz sentido abandonar as tradições intelectuais mais importantes da cultura ocidental, que, de fato, um patrimônio universal e inestimável que, de fato, foi construido predominantemente por homens brancos já falecidos. Aplicada às ciências e à tecnologia, os riscos são maiores: é muito difícil defender hoje a existência de uma física, biologia ou matemática branca ou negra, ariana ou judaica, burguesa ou proletária, latino-americana ou imperialista. A globalização do conhecimento técnico e científico é um fato que tem conseqüências de muitos tipos, algumas delas bem negativas, e ainda persistem tradições técnicas e científicas que são peculiares a determinados contextos. Mas o caminho, evidentemente, não é o de criar espaços reservados para saberes particulares, definidos por critérios raciais, nacionais ou de classe, e sim criar condições para que todos participem e se beneficiem dos conhecimentos e das competências que se desenvolvem e estão disponíveis em um mundo cada vez mais global.

De novo, isto não esgota o problema. O mundo do conhecimento é fragmentado (quem fala ainda hoje da “unificação das ciências?”), e os sistemas de ensino superior, ao invés de insistirem no predomínio absoluto das hierarquias tradicionais do saber científico, devem estar abertos à pluralidade e convivência de diversas formas de qualificação profissional e produção do conhecimento, competindo entre si.

Em resumo: apesar de suas dificuldades, o princípio do mérito não pode ser abandonado no ensino superior; e a solução para os problemas de iniqüidade de acesso e resultados deve passar pelo apoio aos que dele necessitam e pela diversificação cada vez maior de caminhos e possibilidades, e não pela redistribuição pura e simples dos benefícios de um sistema de privilégios que precisa ser superado.

O parto da montanha

O texto final da proposta de reforma do ensino superior, apresentado com tanta fanfarra pelo governo no início do Ministério Tarso Genro, resultou em uma proposta tímida, que insiste em erros antigos e não lida com os temas importantes, e que dificilmente passará pelo Congresso neste ano eleitoral. Junto com Cláudio de Moura Castro, fizemos uma série de comentários sobre as sucessivas versões deste projeto, o último dos quais, “O Parto da Montaha”, sobre esta versão mais recente, disponível aqui.

Os equívocos e a falta de clareza do Ministério da Educação na área do ensino superior são dissecados com lucidês em um texto preparado por José Luis da Silva Valente, que foi Diretor do Departamento de Desenvolvimento do Ensino Superior da SESu/MEC na gestão de Paulo Renato e trabalha hoje em uma empresa privada, a VMD BRASIL Consultoria Educacional.

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