Claudio de Moura Castro: Comentários à Base Nacional do Ensino Médio

 

Finalmente temos uma nova orientação para o Ensino Médio. No geral, o documento apresentado ao CNE caminha na boa direção, mantendo a ideia de diversificação, seja das disciplinas, seja admitindo as grandes diferenças individuais e entre os grupos que frequentam esse nível de ensino.

Não obstante, tenho comentários e objeções a diferentes aspectos da sua redação. Começo com observações genéricas e, em seguida, passo para outras mais específicas a cada um dos seus grandes componentes (Linguagem, Matemática, Ciências Naturais e Ciências Humanas e Sociais).

1. Um documento de política (seja educacional ou em outros campos), deve tratar os assuntos em pauta de forma diferente, conforme seja a inclinação da sociedade para a qual se dirige. Assim sendo, nas áreas em que a sociedade tende a andar espontaneamente, em linha com o proposto, o tratamento deve ser breve. Afinal, é o que iria acontecer sem a existência do documento. Em contraste, a sua ênfase ou força deve ser colimada para aqueles temas em direção aos quais a sociedade “não gosta de ir”. Ou seja, bater forte onde há resistências e oposição, diante de uma orientação importante, mas na contramão das gentes.  Infelizmente, não é isso que se observa, como ilustrado adiante, quando entramos no específico. Pelo contrário mais espaço é devotado ao que está na moda do que nas direções necessárias, mas pouco simpáticas à maioria.

2. O texto é demasiadamente longo e frequentemente obscuro, valendo-se de termos pouco conhecidos e contendo proposições indecifráveis. Ora, o objetivo é orientar o Ensino Médio e não deixar patente a erudição dos seus autores. Sendo assim, opacidade é a estratégia errada. (Por exemplo: “o trabalho é o princípio educativo à medida que proporciona compreensão do processo histórico de produção científica e tecnológica, como conhecimentos desenvolvidos e apropriados socialmente para a transformação das condições naturais da vida e a ampliação das capacidades, das potencialidades e sentido humanos . . .  Nesse sentido, procura-se oferecer ferramentas de transformação social por meio da apropriação dos letramentos da letra e dos novos e multiletramentos. Os quais supõem maior protagonismo dos estudantes, orientados pela dimensão ética, estética e política”). Como já aconteceu antes, será necessário que alguém o traduza em uma linguagem acessível para o grande público e mesmo para pessoas não necessariamente versadas em certos assuntos, como é o meu caso. O oráculo de Delfos pontificava com palavras enigmáticas, precisando de alguém que as decifrassem. Estamos mais ou menos na mesma situação.

3. Para os usos a que parece destinado, é um documento grande demais e que se espraia em detalhes de menor importância, diluindo o foco que deveriam merecer aspectos particularmente críticos. Como está, por exemplo, a preocupação central de desenvolver competência no uso do Português está diluída em inúmeras piruetas sobre novas mídias, Educação Física e outros assuntos menos críticos. Ilustrando, se fosse eu a  redigir o texto, falaria de desenvolver capacidade analítica de leitura e ler os clássicos como temas centrais, destacados dos outros. O resto é o resto. Há várias maneiras de lidar com assimetria de importâncias. Uma delas seria ter um documento síntese, chamando a atenção para os pontos mais centrais, seguido de outro, com os detalhes e complementos. Talvez outra alternativa mais palatável seja dar um destaque especial para o que é verdadeiramente importante, diante de outros aspectos mais complementares do que essenciais. Como está, falta foco e centralidade naquilo que é fundamental, pois está diluído em meio a assuntos periféricos.

4. É correto que se estabeleça o que o estudante será capaz de realizar, ao terminar este ciclo de ensino. De fato, este é o espírito de uma proposta deste tipo. Mas o nexo dessa competência com o currículo que se plasmará nos livros texto emerge de forma muito tênue. Em Matemática chega-se mais perto. Mas em outras áreas, será um esfinge indecifrável, mesmo para os autores de livros e outros interessados.

5. Nesta mesma linha, permanece uma grande ambiguidade o como ensinar os conteúdos com “integração e Interdisciplinaridade”. Afirma-se que é preciso romper com a “centralidade das disciplinas”. Mas como se chega lá, na prática, é assunto brumoso. Física é Física, é preciso aprender suas leis e princípios dentro da disciplinaridade que gerou suas esplêndidas realizações. Não dá para misturar o estudo metódico da mecânica newtoniana com química e biologia.  Para ilustrar como se ensina alhures, podemos consultar os currículos de Ensino Médio da Phillips Academy e da escola Louis Le Grand, respectivamente, a melhor dos Estados Unidos e da França. Em ambas, os cursos são oferecidos na forma disciplinar tradicional. Não há menção a ofertas interdisciplinares. Será por que são escolas da “velha guarda”? Ou não se descobriu forma melhor de ensinar? Tanto quanto entendo, a interdisciplinaridade – ou que termos queiramos utilizar – vem depois, nas aplicações e projetos. O documento é reticente, senão infeliz, ao não esclarecer esse ponto. Se está propondo uma revolução ainda não vislumbrada pelos países no topo do PISA, é bom que todos saibam desta ambição. Se não é isso, e a integração é apenas nos projetos, também precisamos saber.

6. O documento fala da importância de “preparar para o trabalho”, uma preocupação mais do que legítima. Mas trata-se de um objetivo amplamente nebuloso. O que é preparar para o trabalho em um programa acadêmico? As belas propostas das escolas Sloyd, na Escandinávia, foram uma fórmula inteligente de introduzir trabalhos feitos com as mãos em escolas acadêmicas. Não visavam ensinar um ofício mas a usar manualidades para enriquecer a educação acadêmica. No passado tivemos uma caricatura desta linha, nos malfadados Trabalhos Manuais. É disso que estamos falando? Por que não? De certa maneira, a nova moda dos programas na linha STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) recupera o mesmo espírito do Sloyd, com novas roupagens. De uma outra perspectiva, há quem diga que a melhor preparação para o trabalho é uma excelente educação acadêmica. Com efeito, é difícil imaginar algo mais útil para a vida profissional do que ler bem, entender, escrever escorreitamente, usar números para lidar com problemas do cotidiano, pensar com bom rigor analítico e ter uma ampla visão de mundo. O resto é detalhe. Mas pensando bem, esta é também a essência de uma sólida educação geral. Se isso é correto, o que se estará querendo dizer ao falar de “preparar para o trabalho”? Será algo diferente do que a escola se propõe a fazer no seu currículo? Note-se que esta discussão passa longe do Ensino Técnico, assunto cujo conteúdo não pertence à Base Curricular.

Linguagens

Esta parte é demasiado longa e perde-se em detalhes e modismos. Deveria ser muito mais concisa e com foco no mais importante. Na verdade, há um desequilíbrio essencial na sua estrutura. Se falamos de linguagens, há um tema que deveria dominar a apresentação, dando-lhe o relevo que merece. Em contraste, grande parte do espaço é devotado a uma multidão de uso das linguagens, em contextos novos e variados.

Voltando ao que considero o núcleo ausente: como dizia Wittgenstein, meu domínio das palavras determina minha capacidade de pensar, pois pensamos com palavras. Nós, brasileiros, nos comunicamos em português, portanto, pensamos nesta língua. Sendo assim, dominá-la é um objetivo que faz todos os outros empalidecerem.

Por que nossos alunos se saem mal no PISA (e na Prova Brasil)? Antes de tudo, porque não entendem o que estão dizendo as palavras. Decifrar com rigor o que está escrito é uma das funções mais nobres e centrais da escola. Em um texto bem escrito, só há uma interpretação possível. Se há ambiguidades, é porque está mal escrito. Aprender a arte de ler com precisão é uma tarefa para toda a carreira dos estudantes, até no doutorado. Igualmente, identificar as imprecisões e ambiguidades que condenam o texto

Este é o reinado indisputado da “norma culta”. Em qualquer lugar, dominá-la é um dos pilares de uma sólida educação. Jovens escolares em Zurique falam em casa o dialeto Switzerdeutsch, derivado do alemão. Mas na escola, tudo acontece no Hoch Deutsche, a língua padrão.  É com ela que estudam ciência e literatura. Por que disseminar ambiguidade diante do “nós vai”? Não se trata de condenar o falar coloquial mas do imperativo de dominar a norma culta e aprender a usá-la como uma ferramenta poderosa, nos contextos apropriados. Essa é a missão nobre da escola.

Contratos e leis são redigidos de forma a somente permitirem uma interpretação. As leis da Física não serão entendidas sem total domínio do que querem dizer as palavras que as expressam. A pesquisa demonstra que grande parte das dificuldades dos alunos com a Matemática deriva-se da falta de compreensão na formulação do problema, expressa em palavras. Se o manual da serra manda desapertar primeiro o parafuso X e deixar o Z apertado, se isso não for entendido, não é possível a regulagem desejada. Uma linha de programação equivocada põe a perder todo o programa. A vida no mundo moderno requer um sólido domínio da linguagem precisa e rigorosa.

Infelizmente, o pensamento analítico não ganha a preeminência que merece, a ser correto o raciocínio acima. Em vez disso, fala-se em contexto, em ouvir os outros, na interpretação histórica ou ideológica do texto e outras manifestações de relativismo. Mas antes de saber o que o outro pensa, é preciso entender as palavras escritas. Este é um ponto de partida inexorável.

Nota-se no meio educacional brasileiro a presença de um lastimável relativismo e subjetivismo, diante das palavras e das afirmativas. Cada um tem a sua verdade. Cada um tem a sua razão. Como posso dizer que o outro está errado? Ou, admitir que estou errado, já que tudo depende de ponto de vista? Se eu acredito em assombrações, esta é a minha verdade e ninguém pode pô-la em dúvida!

Em suma, o documento minimiza a necessidade de desenvolver competência e rigor no uso da língua e se espraia em inúmeras direções menos significativas. Esse é o seu pecado maior.

Ao falar do conteúdos das leituras, há amplas listagens de gêneros, tipos e modalidades, falando de literatura de todos os matizes e origens. Porém, as indicações para a leitura dos clássicos se perdem no meio desta abundância de sugestões outras. Ora, somos herdeiros da Civilização Ocidental, com sua vasta e celebrada literatura. Os alunos ingleses leem os clássicos franceses e vice-versa. Os alemães leem os ingleses e franceses, em que pesem séculos de guerra entre todos eles. Ou seja, há consenso acerca de quais são os livros imortais. Que argumentos haveria para os brasileiros se distanciarem deste cabedal de escritos?

Ao justificar porque aprender inglês, há grandes circunlóquios. Mas a razão é óbvia: o inglês se tornou a língua universal, como foi o francês e o latim. Quem não opera bem neste idioma está irremediavelmente alienado do que está acontecendo no mundo, seja da ciência, da política, dos negócios ou do entretenimento. Tão simples quanto isso.

Por que Educação Física está incluída como Linguagem? Ora, como dito, é uma linguagem corporal. Mas é difícil encontrar proposições significativas que sejam válidas para aprender português e, também, para praticar Educação Física. Seria mais franco dizer que se está lá, é por falta de um lugar melhor.

A proposta para a Educação Física é mais do que bizarra. É quase como transformá-la em uma disciplina acadêmica, com bases filosóficas e sociológicas. Fala-se na “cultura corporal do movimento”, o que quer que seja isso. Mas no fundo, por que não dizer apenas: Mens sana in corpore sano? Nesta idade, os jovens têm uma abundância de energia física e canalizá-la para atividades desportivas é uma das fórmulas mais eficazes que já se encontrou. Por outro lado, sabe-se que a disciplina desenvolvida na prática sistemática de desportos migra para as atividades acadêmicas e profissionais. É curioso que estes dois aspectos não tenham sido mencionados.

Tal como na literatura, nas artes visuais, há pouquíssima ênfase nos clássicos. É uma pena. A arte é apresentada por via de uma ampla argumentação sociológica. Mas e o desenvolvimento da capacidade de desfrute de uma obra de arte? Com ou sem mensagem social ou ideológica, a arte tem vida própria, gera um prazer próprio. Ela se justifica em si e nos permite uma comunhão com alguma coisa que não sabemos bem descrever, mas que nos faz bem.

Matemática

As bases da Matemática são amplamente mais satisfatórias do que as das Linguagens. O texto é mais curto, mais  direto e mais explícito. A partir dele, fica mais fácil construir um currículo ou tantas versões quanto se queira.

A se louvar é a preocupação com a contextualização e com o uso da Matemática na vida real. A sua beleza é mencionada, mas não ofusca o seu caráter utilitário. E como sabemos, é a percepção de utilidade que traz a contextualização e aumenta o interesse.

Não obstante, há duas inconveniências no texto. O primeiro é que as competências buscadas se desencontram da organização de um curso sério. Em Matemática, mais do que em outras áreas, uma coisa vem depois da outra e esta ordem não admite muitas variações. Por exemplo, equação do segundo grau vem depois da equação do primeiro e não há como trocar. Mas na discussão das competências, cada tópico da Matemática pode aparecer distante dos outros que lhe são próximos no aprendizado.

A segunda limitação é que há poucos  exemplos para ilustrar os argumentos que estão sendo apresentados. Portanto, torna-se um pouco mais difícil a sua leitura.

Considerando que, “na vida real”, os contatos mais frequentes com a Matemática são no lidar com o dinheiro, este é o contexto mais realista para o seu aprendizado. Em particular, a Matemática Financeira é um assunto que deveria merecer muito mais ênfase do que aparece no texto.

Na discussão dos conteúdos de Estatística, o uso da palavra “incerteza” traz dificuldades. A Teoria da Probabilidade se baseia no princípio de que há certa previsibilidade nas distribuições de eventos com distribuições aleatórias. Ou seja, probabilidade é diferente da incerteza. A primeira pode ser estimada, a segunda não. A incerteza se refere a fenômenos intratáveis, por serem totalmente inexpugnáveis as causas que os explicam. Sendo assim, não pode ser objeto de muita elaboração. Por esta razão, estranha-se que o termo incerteza seja tão usado no texto.

Ciências

O texto sobre as Bases Curriculares das Ciências é razoavelmente claro. E também, curto.

O grande problema é o que foi mencionado na introdução: a integração e interdisciplinaridade. Que ambas sejam desejáveis, não há como negar. O problema é o como. Insisto na impossibilidade de aprender tudo ao mesmo tempo e dentro mesma disciplina “integradora”. Ninguém conseguiu fazer isso satisfatoriamente. A questão prática é quando e como abrir espaço para as pontes em direção às outras disciplinas. Lamentavelmente, o documento é avaro neste desafio tão candente.

Há duas etapas. A primeira é ensinar as bases de cada disciplina, seu fundamento operação e seu ritmo de trabalho. A segunda é encontrar o nexo  que conecta as disciplinas, entrando no mundo da interdisciplinaridade.

Ciências Humanas e Sociais

De longe, este é o campo mais problemático. Como tratar de um só fôlego filosofia, história, sociologia e geografia. Suspeito que é uma missão impossível. Se isso é verdade, não podemos ser muito severos com os autores.  Aliás, por que estas quatro áreas, deixando de fora Economia, Ciência Política, Direito e outras do mesmo jaez?

Para dar uma estrutura lógica à discussão, foram propostos dois critérios: espaço e tempo. Tudo que havia para ser discutido acerca dos quatro campos foi enfiado nestes dois cortes analíticos. Previsivelmente, a argumentação soa artificial.

Não vejo muita salvação nesse embrulho de tradições acadêmicas seculares e com vida própria, buscando uma espinha dorsal unificadora. Sendo assim, nada posso oferecer sobre o assunto.

Mas subjacente à toda a discussão, há um tema que incomoda, pela ausência. Qual é a nossa identidade brasileira, como foi forjada, de que matrizes proveio? Não trato aqui de pontificar acerca da minha visão de como somos e como não somos. O importante, no caso, é não fugir de uma discussão frontal sobre isso e, em vez dela, deixar escapar uma coleção de afirmativas soltas sobre esta ou aquela identidade cultural. Ou ainda, criticando uma identidade ocidental que não foi explicitada.

Tanto quanto entendo, somos herdeiros diretos das tradições da Civilização Ocidental, que se estrutura de forma brilhante com os gregos. Quase tudo que somos e pensamos, em maior ou menor grau, vem desta raiz comum e da sua evolução, a partir do Renascimento.

Um jovem   da Costa do Marfim podia falar em casa uma das 78 línguas do país. Seus valores podiam refletir a cultura e história do seu país. Mas na escola, falava francês, aprendia a história da França e sabia de cor a Marselhesa. Devia ser uma santa confusão a cabeça dele. Em contraste, nosso pais tem uma única língua e uma identidade que pode ter temperos africanos ou indígenas, mas antes de tudo, é uma cultura ocidental.

Há boas razões  para trazer à discussão outras raízes que se originam dos índios locais, dos africanos e de quem mais seja. Mas sempre com as devidas precauções de ancorar o discurso em um entendimento claro do que historicamente somos e do que não somos. Do que compramos confortavelmente desta tradição e do que não foi bem digerido. Sem isso, corremos o sério risco de uma grande confusão mental e de um relativismo pernicioso.

Na missão de preparar os estudantes, é preciso estabelecer com meridiana clareza o que significa para eles ser herdeiro da tradição greco-romana. Que valores estão embutidos, explícita ou implicitamente na nossa cultura? Destes valores, quais acreditamos serem universais? Quais valores julgamos que nos permitem a autoridade moral para impô-los a outras culturas? Em contraste, quais percepções podemos relativizar ou considerar ambíguas? Este é o ponto de partida, sem o qual, explorar, valorizar ou denegrir outras culturas converte-se em um exercício sem rigor ou mérito.

Herdamos a crença no império da lei, nos sistemas democráticos de governo, na Declaração dos Direitos dos Homens e no método científico. É a partir de crenças deste teor que passamos julgamento em práticas que possam ocorrer dentro ou fora da nossa cultura. Por exemplo, repudiamos o canibalismo, as execuções públicas, a tortura, a discriminação, e por aí afora.

Herdamos e cultivamos valores bem definidos – ainda que, na prática, possamos escorregar. Por esta razão, antes de discutir outras sociedades, é preciso explicitar e estudar os nossos valores, com suas virtudes e limitações. Esse, em si, é um objetivo nobre de qualquer programa de estudo nesta linha. Se os autores querem renegar esta descendência cultural, que o façam de forma clara e proponham algo para a substituir.

Tal como está apresentado, o texto induz a um relativismo e subjetivismo nocivos. Não há como ver o certo e o errado, o pitoresco, o bizarro e o perverso. É curioso, critica-se a nossa herança cultural, em seguida, citam-se os Direitos Humanos como um imperativo ético. Mas de onde vem esses direito.

Afirma-se que a “razão e a experiência” não explicam outras sociedades. Contudo, é difícil imaginar um antropólogo sério que não tenha estes dois princípios como esteios de seus métodos de pesquisa.

Fala-se da “transitoriedade do conhecimento”. Trata-se de uma afirmativa perigosa e fora de contexto. Como está, é um convite ao relativismo científico. Aceitemos, Big Bang, Zeus  e Tupã não pertencem ao mesmo universo de discurso. Na tradição da boa ciência, o novo conhecimento, a nova formulação, avança sobre as versões anteriores. Mas é tudo um aperfeiçoamento das teorias anteriores. A Teoria da Relatividade não destruiu Newton. O que fez foi, a partir do que existia, criar um sistema mais geral, no qual a mecânica clássica permanece como um caso particular. Em contraste, não é provável que uma cosmologia pescada nas crenças dos índios brasileiros venha a destronar a que temos, resultado de um longo processo de aproximações sucessivas, por centenas de cientistas e ao longo dos séculos.

Menciona-se a “dúvida sistemática”. Esta foi solidamente proposta por Descartes, mas com um significado muito preciso, como descrito em seu livrinho. Ou seja, para duvidar, só com bons argumentos. Com palpites, não vale.

Menciona-se que “a sociedade capitalista…. reproduz a desigualdade”. Por que não se menciona também que, nos dias de hoje, os países mais igualitários e que oferecem padrões de vida mais elevados para os menos favorecidos são também os capitalistas? Um documento oficial não pode se permitir estas pequenas trapaças intelectuais.

O que não li

Talvez o que mais me incomodou não foi o que li, mas o que não li. Weltanschauung, ideologia, crenças e doutrinas são nomes diferentes para a nossa maneira de ver o mundo e de reagir diante dele, especialmente, nos assuntos de política e sociedade.

Confrontando os fatos que desfilam diante de nós, temos reações quase previsíveis, como resultado destas crenças e valores que espreitam na nossa retaguarda. E que são previsivelmente diferentes daquelas de outra pessoa com persuasões ideológicas diferentes. Ambas resultam de processos longos de aquisição de valores. Esquerda, direita, socialismo, comunismo, fascismo, nazismo, capitalismo, islamismo: somos todos escravos de nossa ideologia. Não se pede a ninguém que deixe de ter ideologia, apenas que entenda que a tem e aceite que esta influencia as suas reações e ações. De resto, é fácil deduzir o viés ideológico dos autores desta parte do documento. Por que não o explicitaram?

Descrever com certo detalhe estas correntes é um assunto que deveria merecer muito mais atenção dos currículos. E atualmente, as versões vigentes são muito diferentes das originais. Considerem-se as muitas ramificações do capitalismo e da socialdemocracia, o welfare state da Comunidade Europeia, o socialismo, incluindo as suas versões chinesas e cubanas e as transformações da experiência soviética. O Islã se bifurcou em interpretações radicalmente diferentes do Corão. Precisamos entender o uso político da religião, tanto nas Cruzadas quanto no fundamentalismo islâmico.

Entre o que está e o que falta neste campo do documento, configura-se um desafio formidável de transformar isso tudo em currículo, com livros e manuais.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

2 thoughts on “Claudio de Moura Castro: Comentários à Base Nacional do Ensino Médio”

  1. Mesmo sem ter lido o texto sobre o qual fala o CMC, entendi perfeitamente as críticas. O moedor de carne das burocracias produz bíblias de igual jaez — em todas as partes e em todas as áreas. O terrível é que, de moída em moída, o impacto destes textos na “vida real” (no caso, as escolas) existe… e é deletério.

  2. Excelente o texto do Claudio, não apenas por apontar as deficiências sérias da Base Nacional … apresentada ao CNE, como também o caráter prolixo, confuso e retórico da linguagem do documento. Ora, um documento para orientação curricular no ensino médio teria, no mínimo, de ser claro, conciso de forma a permitir que professores e alunos pudessem compreendê-lo e, assim, discuti-lo analiticamente.A sobreposição da retórica ao conteúdo é uma forma de escamotear o objetivo maior da reforma curricular proposta, privilegiando interesses corporativos e ideologizando o tratamento de temas centrais tanto no âmbito das disciplinas das ciências físicas e naturais como, também, no âmbito das ciências da cultura.

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