1 – A reforma do ensino médio e o novo ENEM
Com cerca de 5 milhões de participantes arregimentados em todo o país em uma prova única, mobilizando as forças armadas e milhares de funcionários e pessoal contratado, a um custo direto estimado de 500 milhões de reais, mais os indiretos, o Exame Nacional do Ensino Médio se transformou em um grande evento sujeito a problemas reiterados de tentativas de fraude, incompreensões e questionamentos de seus conteúdos. Hoje mesmo a presidente do INEP, Maria Inês Fini, publica no jornal O Estado de São Paulo uma vigorosa defesa do exame, e anuncia as mudanças que estão por vir. De fato, nas novas diretrizes curriculares para o ensino médio aprovadas recentemente pelo Conselho Nacional de Educação consta a indicação de que o ENEM deverá ser modificado, com uma parte geral, correspondente à parte comum da Base Nacional Curricular do Ensino Médio, e outra com várias opções à escolha do participante, conforme seu “itinerário formativo” e a área de curso superior que pretende seguir.
É compreensível o interesse da atual gestão do Ministério em completar este processo de reforma do ensino médio antes do fim do ano, mas talvez seja mais prudente tomar mais tempo para amadurecer a questão da reforma do ENEM que deverá ser implementada pelo próximo governo, sobretudo porque a proposta da Base Nacional Curricular Comum para o ensino médio ainda está por ser aprovada, e nada se sabe sobre os “referenciais para a elaboração dos itinerários formativos” que segundo o CNE, deveriam ser definidos pelo MEC em 90 dias.
A ideia de diversificar o ENEM, permitindo que os alunos possam escolher a área de conhecimento em que serão avaliados, é importante e compatível com o que acontece em outras partes do mundo, em que ninguém é obrigado a se preparar exaustivamente para o exame de conteúdos que não são de seu interesse prioritário. Mas a Base Nacional Curricular Comum, como está sendo proposta, acabou ficando como uma versão reduzida do antigo currículo do ensino médio, com todo seu conteúdo de linguagem, matemática, ciências naturais e ciências sociais. Se o que está sendo proposto é fazer uma versão compacta, em um dia, do ENEM atual que dura dois dias, com o que o MEC considera serem as “cinco áreas do conhecimento”, e depois uma prova especializada no itinerário formativo, então o estudante continuará sendo obrigado a se preparar para uma prova de tudo, e além disso fazer uma segunda prova especializada. Ou seja, pode ficar pior do que agora.
2 – Para que serve o ENEM?
A discussão sobre o que fazer com o ENEM não pode ser separada da pergunta mais geral de para que ele serve. A ideia inicial era que o exame poderia servir como referência de qualidade para as escolas do ensino médio, mas, hoje, ele funciona como um grande vestibular unificado para as universidades federais, e seus resultados são também em parte utilizados por algumas redes estaduais e instituições privadas (as universidades paulistas, no entanto, mantêm seus próprios sistemas de seleção); além disto, o ENEM funciona como um filtro para escolher alunos candidatos aos subsídios do Prouni.
Acontece que estes objetivos requerem exames muito diferentes. A função de avaliar o ensino médio deixou de existir, tendo sido substituída pela a prova do SAEB, de avaliação do ensino básico, agora aplicada a todas as escolas ao final do ensino médio. O SAEB avalia competências em linguagem e matemática, e pode ser ampliado para incluir ciências, ficando semelhante ao exame internacional da OECD, o PISA (com a grande diferença de que o PISA avalia os estudantes no início do ensino médio, aos 15 anos). Por outro lado, os exames vestibulares são, além de um teste de competências específicas dos alunos conforme as carreiras que pretendem estudar, também uma maneira de selecionar um pequeno número de candidatos dentre muitos outros que poderiam igualmente se qualificar, mas para os quais não há vagas.
Uma das virtudes do ENEM seria que ele teria democratizado o acesso ao ensino superior público, porque os estudantes poderiam fazer uma só prova e ir para qualquer instituição no país, conforme seus resultados. Na prática, os resultados do ENEM, e consequentemente do SISU, que é o sistema de distribuição de vagas nas universidades públicas, dependem fortemente da educação da família do estudante e do tipo de escola que ele frequentou. A nota de corte para os cursos mais disputados pode ser próxima de 700 pontos, o que significa, como mostra o gráfico abaixo, que alunos de escolas estaduais e municipais com pais sem educação superior não têm praticamente nenhuma chance de ser admitidos. Além disso, como as universidades federais quase não dispõem de alojamentos e bolsas de manutenção para estudantes de outras regiões, é muito difícil que os alunos aprovados decidam sair de suas cidades, exceto em carreiras altamente disputadas, como medicina, em que candidatos de estados mais desenvolvidos tendem a deslocar os estudantes locais de universidades em outras regiões.
Na prática, o ENEM, no seu atual formato, serviu sobretudo para as universidades federais transferirem ao Ministério da Educação a responsabilidade por selecionar seus estudantes. Ao invés de democratizar o acesso, o ENEM acaba impondo a todos os candidatos do país um padrão único de qualidade que tem mais a ver com a condição social dos estudantes e suas escolas do que com sua potencialidade individual, e impede que universidades locais adotem critérios próprios e eventualmente mais flexíveis para a seleção de seus alunos. Não parece justo colocar todos os estudantes de um país sob uma mesma régua, fortemente dependente de sua condição social, para definir seu acesso ao ensino superior, e isto tem sido questionado em países que, como China, Turquia e Chile, adotam procedimentos semelhantes (veja a respeito o meu artigo publicado em colaboração com Marcelo Knobel). O sistema de cotas seria uma maneira de reduzir um pouco a estratificação criada pelo ENEM, mas, na prática, as notas de corte para os candidatos cotistas não são muito diferentes das dos alunos do sistema de ampla concorrência. Por exemplo, a nota de corte no curso de direito da UFRJ para 2018 foi de 790 pontos para 90 vagas para ampla concorrência, e 723 pontos para 20 vagas para cotistas.
3. Alternativas
A proposta do INEP, adotada pelo Conselho Nacional de Educação, de transformar o atual ENEM único em um ENEM múltiplo, como dito antes, pode torná-lo mais difícil e complicado do que o atual.
A alternativa é não tentar avaliar toda a base nacional curricular comum em uma prova, mas somente as competências mais gerais de leitura, raciocínio numérico e entendimento de conceitos científicos mais gerais, que pode ser a mesma para todos os estudantes que terminam o ensino médio, independentemente de seu itinerário formativo. É assim que funciona o Scholastic Aptitude Test (SAT) amplamente usado nos Estados Unidos. É um teste desenvolvido e administrado por uma fundação de direito privado, financiado pelas taxas cobradas pelos participantes, e aplicado de forma eletrônica e descentralizada várias vezes por ano. Um exame como este daria um padrão geral de referência do estudante, que poderia ser usado pelas universidades de forma complementar a seus processos próprios de seleção, e também de forma complementar para propósitos como a seleção para o Prouni ou crédito educativo. Embora trabalhosa, a metodologia para a elaboração e aplicação de um teste como este de forma eletrônica e descentralizada é conhecida, e evitaria os problemas que se repetem anualmente com a “operação de guerra” que é o ENEM.
A segunda prova, referida aos itinerários formativos, depende ainda de o Ministério da Educação conseguir superar o erro que foi fazer uso de sua questionável classificação das “áreas de conhecimento” em linguagens, matemática, ciências naturais e ciências sociais para definir os possíveis itinerários de formação do ensino médio. Faz mais sentido pensar em áreas mais próximas do mundo cultural e profissional, como STEM (matemáticas, engenharia, ciência e tecnologia), ciências da saúde, letras e artes, ciências sociais e econômicas. Estas provas poderiam ser desenvolvidas em parceria com as universidades que se interessassem, e aplicadas também de forma eletrônica e descentralizada aos alunos que optarem por carreiras nestes diferentes campos. Para os estudantes que optarem por itinerários de tipo técnico, mais vocacionais, é possível ir desenvolvendo aos poucos sistemas de certificação de competências pelas áreas profissionais respectivas, que sejam reconhecidos e valorizados pelo mercado de trabalho.
Este novo ENEM, se bem implementado, reduziria o peso do antigo currículo tradicional em benefício da avaliação de competências mais gerais, por um lado, e mais específicas para as áreas opcionais, de outro, e devolveria às universidades a responsabilidade por selecionar seus alunos, da qual elas nunca deveriam ter abdicado. Sua implantação inicial pode ser custosa, pela incorporação de novas tecnologias de avaliação decentralizada e on-line, mas, uma vez feita, acaba o pesadelo anual para os estudantes e os enormes custos e problemas da operação logística que ocorrem a cada ano. Vale a pena pensar com calma, antes de adotar a solução aparentemente simples indicada pelo Conselho Nacional de Educação