O impacto da pandemia do ensino superior

(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de maio de 2020)

O fechamento das faculdades colocou o ensino superior, em todo o mundo, em um dilema: fechar as portas, ou tentar manter as atividades em modo virtual?  A principal dificuldade de fechar é que não sabemos até quando, e como será a volta. O primeiro semestre já está perdido, e provavelmente o segundo também. Dá para, de um dia para outro, passar tudo para o modo virtual?  Quais serão as consequências? E o que isto pode significar, a médio e longo prazo? 

Não se pode, simplesmente, colocar as aulas tradicionais na Internet e achar que tudo vai continuar como antes. O ensino à distância de qualidade requer aulas bem preparadas, alunos que possam participar, e sistemas de acompanhamento e avaliação de resultados diferentes dos tradicionais. Tecnologias para isto existem, mas poucas instituições  brasileiras estão preparadas para usá-las. A grande maioria dos professores, sobretudo das instituições públicas, nunca aprendeu a fazer isso. O ensino privado, nos últimos anos, ampliou muito a educação à distância, em um esforço de redução de custos, depois que o crédito educativo ficou mais difícil, e hoje cerca de metade de seus alunos estão neste regime. Mas a proporção de estudantes que abandona antes de terminar é grande, e muitos questionam a qualidade da formação à distância, embora a da educação presencial também seja incerta. É provável que os estudantes mais jovens tenham mais facilidade em lidar com as novas tecnologias do que seus professores, mas muitos podem não ter equipamento adequando, acesso rápido à Internet e lugar em casa para participar das aulas. Existe a preocupação de que, com a adoção do ensino à distância, a desigualdade no ensino superior se acentue. 

Por maiores que sejam as dificuldades, fechar as portas parece a pior das opções. O custo da paralisação não é somente o atraso do calendário escolar, mas a interrupção das pesquisas, do processo de aprendizagem e dos vínculos dos estudantes com seus professores e colegas, que pode ser difícil de retomar, aumentando as desistências. No Brasil, com poucas exceções, com destaque para a Universidade de Campinas, as universidades públicas fecharam as portas ou só mantiveram ativos os hospitais, mas as instituições privadas continuaram a funcionar, seja porque já estavam no regime de educação à distância, seja porque conseguiram se adaptar rapidamente a esta modalidade, premidas pela necessidade de manter seus alunos estudando e pagando as mensalidades.

Para as instituições que estão buscando se adaptar à educação remota, o que se ouve é que tem sido um aprendizado precioso, que poderá ter utilizado com muitas vantagens quando a situação se normalizar. Os professores estão descobrindo que podem usar recursos pedagógicos que tornam suas aulas mais interessantes, e a interação com os estudantes pode ser mais facilitada. Os estudantes têm mais flexibilidade para organizar seu tempo, e não precisam se deslocar para as universidades simplesmente para assistir às aulas. E os currículos tradicionais, organizados como linhas de montagem, podem ser substituídos por sequencias flexíveis de estudo adaptadas a cada estudante. A educação presencial, olho no olho, é insubstituível quando o professor pode trabalhar com um número pequeno de alunos, mas, na educação superior de massas, com grandes turmas, a educação mediada por tecnologia pode ser superior à tradicional. O problema da desigualdade no ensino superior já existia, mas os custos de dar um computador, tablet e acesso à Internet para quem precisa são pequenos, e a flexibilidade e acesso a recursos pedagógicos de qualidade podem contribuir para reduzir as desvantagens de quem mora longe, precisa trabalhar e não conseguiu entrar em uma universidade de prestígio. As tecnologias permitem também que universidades possam colaborar compartilhando cursos, professores e materiais pedagógicos, reduzindo custos e melhorando a qualidade.

Antes da pandemia, o ensino superior brasileiro já estava com dificuldades crescentes. As universidades públicas tinham problemas sérios de financiamento, que deverão se tornar mais graves, e muitas das privadas estavam se tornando insolventes. Cerca de 30 a 40% dos estudantes, nas faculdades públicas e privadas, abandonavam os cursos antes de terminar, e metade dos formados trabalhava em atividades que não requeriam formação superior. A pesquisa científica e a pós-graduação haviam crescido muito, mas os cursos de alto nível e as publicações científicas de alta qualidade estavam concentrados em cerca de dez instituições públicas, com as demais tendo os custos, mas não os resultados de manter todo o professorado em tempo integral. O sistema de avaliação, caro e obsoleto, não informava à sociedade quais eram os bons cursos, nem o destino de seus formados, nem se estão adquirindo as competências requeridas pela economia digital do século 21. 

Não faz sentido e pode ser impossível, depois da crise, voltar ao mesmo de antes. O coronavirus, ao lado dos grandes problemas que traz, pode ser uma oportunidade para repensar este sistema em mais profundidade. 

Os Dados do IBGE e a Globonews

Muito ruim a matéria da “Globonews Em Pauta” de ontem, 23 de abril de 2020, sobre a Medida Provisória que dá ao IBGE acesso aos endereços e telefones das pessoas que constam das listas das companhias telefônicas. Ao invés de ouvir o IBGE, ou alguém que entende de estatísticas públicas, todos os comentaristas, com a exceção de Mônica Waldvoguel, que tentou timidamente explicar do que se trata, partiram para uma interpretação totalmente paranoica da medida, como se fosse uma grande ameaça à privacidade da população brasileira. 

Os comentaristas ignoraram que o IBGE, para a realização do Censo Demográfico, já dispõe de uma ampla listagem dos nomes e endereços da população brasileira, obtidos por diversas fontes diretas e indiretas. O Censo Demográfico é a base para a amostra da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, que dá informações indispensáveis sobre emprego, renda, educação, fertilidade, condição de vida das famílias, etc., mas está dez anos desatualizado, e não é possível fazer boas amostras se não conhecemos o universo.  Com a suspensão do Censo de 2020, o IBGE precisa de uma listagem atualizada de informações sobre a população brasileira para atualizar a amostragem e fazer a PNAD por telefone, já que não será possível fazer as pesquisas da forma tradicional, de porta em porta. O IBGE também mantém um cadastro de todas as empresas brasileiras, com nome, CPF, faturamento e tipo de atividade, que usa para suas pesquisas regulares sobre a economia brasileira, que são a base para o cálculo do Produto Interno Bruto. Os dados que está solicitando agora só complementariam os que já têm, com a vantagem de permitir a pesquisa por telefone que se tornou a única possível no momento.  

Gerson Camarotti, jornalista geralmente bem informado e sensato, disse estranhar que o IBGE esteja com tanta pressa para obter os dados para fazer a pesquisa sobre o COVID 19, porque afinal não tem os testes, que são a única coisa que importa. Se tivesse buscando as fontes adequadas, como sempre faz em suas excelentes análises políticas, teria entendido que o IBGE não pretende substituir as pesquisas epidemiológicas do Ministério da Saúde, mas incluir questões sobre a  COVID  19 na PNAD contínua, para conhecer o impacto social e econômico da epidemia sobre os diversos segmentos da população e regiões do país. Isto pode ser feito com perguntas sobre a condição de saúde das pessoas, distanciamento social, assim como falecimento de familiares, como se faz normalmente. Além deste dado novo, a PNAD divulga mensalmente dados sobre emprego e muitos outros que já estão atrasados, e precisam ser coletados para evitar o “apagão” estatístico que pode deixar o país às cegas para levar adiante as políticas econômicas, sociais e assistenciais que serão cada vez mais indispensáveis.

“Ah, mas este governo não é confiável, e o IBGE pode usar estes dados para manipular as pessoas, ou entregar para alguém uma produzir uma versão brasileira do Cambridge Analytica que ajudou a campanha do Trump”.

  A prevalecer este argumento, será melhor então fechar o IBGE, e também a Receita Federal, que detém uma base de dados bastante completa de todas as informações econômicas da população brasileira, sem falar de outras bases de dados como o Cadastro Único usado para administrar o Bolsa Família e outros programas sociais do governo, que está sendo atualizado e usado para distribuir o auxilio de emergência para a população carente. Existem outras bases de dados importantes com informações individualizadas, como as do INEP, do Ministério da Educação, com mais de 50 milhões de estudantes e professores, e o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, também com dezenas de milhões de nomes. Se o IBGE pode usar mal os dados, por que não os outros? Vamos fechar todos? E o que fazer com as 3 ou 4 companhias telefônicas que já têm estes dados em mãos? E as companhias de eletricidade, que dispõem dos endereços de todos os domicílios?   

O fato é que agências de estatística pública necessitam de cadastros atualizados de empresas e pessoas para funcionar. Em muitos países da Europa Ocidental, estes dados, sempre atualizados nos registros administrativos, são integrados e permitem um acompanhamento permanente das condições econômicas e sociais da população, dispensando os censos decenais e reduzindo ao mínimo a necessidade de bater à porta das pessoas pedindo informações adicionais. O IBGE tem a obrigação legal e uma tradição sólida de proteger as informações individuais de empresas e pessoas que detém, e isto não seria diferente com as listas telefônicas. A proteção à privacidade dos dados individuais deve ser feita pelo fortalecimento e blindagem das instituições responsáveis pela administração e uso dos dados, e não por sua mutilação. Não se pode, em seu nome, ir ao extremo de furar os olhos e cegar o país.

Precisamos das estatísticas do IBGE para ajudar a vencer o COVID-19

A crise do COVID-19 obrigou o IBGE a postergar o Censo Demográfico para 2021, e não está permitindo que seus entrevistadores percorram as residências coletando as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, que é a principal fonte de informações do país sobre emprego, educação, renda e condições de vida da população brasileira. Sem estas informações, os governos federal, estaduais e municipais ficam às cegas para voltar a normalidade e desenvolver as políticas fiscais, sociais e econômicas que se tornarão necessárias.

Para evitar esse apagão estatístico, o IBGE solicitou ao governo uma Medida Provisória que lhe dá acesso aos nomes, endereços e números de telefone que constam das bases de dados das operadoras de telefonia no Brasil.  Essas informações são as mesmas que eram antes publicadas nas “páginas amarelas” ou catálogos de telefones, não incluem nenhuma informação adicional, e são a única alternativa que o Instituto dispõe hoje para elaborar uma amostra significativa da população brasileira e conduzir suas pesquisas por telefone.  Além das pesquisas regulares, o IBGE fez um convênio com o Ministério da Saúde para  uma pesquisa domiciliar especial sobre o COVID-19, que deve ser um instrumento fundamental para a saída da situação de confinamento que deve ocorrer no futuro próximo.

Preocupadas com a proteção das pessoas contra a invasão abusiva de sua privacidade, algumas instituições entraram na Justiça para impedir que o IBGE tenha acesso a essas informações. Esta preocupação não se justifica, porque os dados não incluem informações pessoais, serão usados unicamente para fins estatísticos, não podem ser passados a terceiros para qualquer outro uso, e o IBGE tem uma prática estabelecida de garantir a confidencialidade dos dados individuais que coleta em suas pesquisas, estabelecida por lei.

Por estas razões, os abaixo-assinados, ex-presidentes do IBGE, apelamos às instituições impetrantes, ao Judiciário e ao Congresso para que apoiem a Medida Provisória e evitem, assim, o apagão estatístico que tornaria muito mais difícil o controle da epidemia, a volta à normalidade e a recuperação das políticas sociais de que tanto necessitamos.

Rio de Janeiro, 20 de abril de 2020

Edmar Bacha 

Sérgio Besserman

Eurico de Andrade Neves Borba

Eduardo Augusto Guimarães 

Silvio Minciotti 

Charles Mueller

Edson Nunes

Eduardo Nunes

Simon Schwartzman

The Chinese Century

(This is an English version of “O Século Chinês”, published in O Estado de São Paulo, April 10, 2020)

“American Factory”, the documentary produced by Michelle and Barack Obama that won the Oscar for best documentary this year and can be seen on Netflix, tells the tragicomic story of a Chinese millionaire who decides to transform an abandoned General Motors plant in the United States into a modern automobile glass factory, with American workers laboring under Chinese managers. The Chinese strive to understand the individualistic culture and lack of discipline of Americans, take Americans to China to see how a factory should work, and end up replacing most Americans with robots, so that the factory can finally make a profit.

Watching the film, it is easier to understand the success of the Chinese in controlling the coronavirus epidemic in Wuhan with a minimum of deaths and preventing it from spreading through its immense population, and the difficulty of Americans and Europeans in doing the same. The explanation often heard is that China is an authoritarian state, with powers to control its population that would be unimaginable in a democracy. There are rumors that they are not telling the whole story, it could be, but the fact is that they managed to stop the bleeding. In addition to brute force, two other factors, strong social cohesion and the intensive and competent use of advanced technologies, seem to have been much more important.

“Social cohesion” refers to the degree to which people feel part of a community and follow the norms of behavior of their groups. Everyone agrees that it is a good thing, but may disagree about how much. In the film, the Americans look astonished as the Chinese workers march synchronously and shout slogans, and how, at a factory party, the children dance with geometric precision in praise of efficiency and productivity, remembering the gigantic, choreographed demonstrations in North Korea in honor of the Great Leader. The Chinese work much more hours a day than the Americans, earn much less, and are much more productive.

Seeing this, it is difficult to distinguish what is social cohesion from what is totalitarianism, but other countries that are also managing to control the epidemic are South Korea, Singapore, Taiwan and Japan, are democratic regimes with similar cultures. It is social cohesion, more than the political regime, that differentiates them from Western countries.

The third factor that explains the success of these countries is the intensive use of testing technologies, monitoring of population movements by cell phones, protective equipment for doctors and paramedics and extensive use of expensive and complex equipment such as CT scanners to better diagnose patients. These technologies are also available and many of them originated in the West, but Orientals have been more efficient at producing, innovating, and using them on a larger scale than Americans and Europeans. An important question, in a democracy, is the extent to which governments should be allowed to control the movements of its people  in such detail, but most of this is already done in our countries for commercial purposes. 

From the many speculations that are made about what the post-coronavirus world will be like, for those who survive the immense catastrophe we are witnessing, it seems clear to me that the 21st century will definitely be the Chinese century. This does not mean that we will all be under the dictatorship of Xi Jinping, since China itself may evolve into less autocratic forms of government, and Western countries will certainly recover their economies. But China, which was already occupying an increasingly larger space in the world economy, is likely to come out from this crisis much more strengthened, shifting the pole of the world economy and technological progress to the East.

Of the lessons that we have to learn from China, the one that matters least, and that unfortunately many will preach, is that democracies are not able to face the great epidemiological and environmental challenges that await us, and need to be replaced by the presumptive dictators that arise in these difficult times. Democracy needs to be preserved, but it must be less dysfunctional, with stronger public institutions in the areas of science and technology, firmer social policies, and legal mechanisms capable of quickly dealing with the eventual predatory and demagogical behavior of its leaders. More than weapons for eventual wars, it is essential to have strategic stocks of medical supplies and equipment that do not depend on commercial interests and the uncertainties in the international market, as has been happening. The national health systems needs to be rethought, concentrating resources on preventive health, epidemiological surveillance, and medical care for the needy population. It is not possible, and I do not know if we want, to copy the model of social cohesion of the Eastern countries, but we need to make our societies more educated, cohesive, and supportive We will come out of this tragedy poorer and more suffering, but perhaps a little wiser, in order to survive in the Chinese century.

O Século Chinês

(publicado em O Estado de São Paulo, 10/04/2020)

“Indústria Americana”, o documentário produzido pela produtora de Michelle e Barack Obama que ganhou o Oscar de melhor documentário este ano e pode ser visto no Netflix, conta a história tragicômica de um milionário chinês que decide transformar uma planta abandonada da General Motors nos Estados Unidos em uma moderna fábrica de vidros de automóveis, com operários americanos trabalhando sob as ordens de gerentes chineses. Os chineses se esforçam para entender a cultura individualista e a falta de disciplina dos americanos, levam americanos para a China para ver como uma fábrica deve funcionar, e acabam trocando a maioria dos americanos por robôs, para que a fábrica finalmente possa dar lucro.

Vendo o filme, fica mais fácil entender o sucesso dos chineses em controlar a epidemia do coronavirus em Wuhan com um mínimo de mortes e impedindo que ela se alastrasse por sua imensa população, e a dificuldade dos americanos e europeus em fazer o mesmo. A explicação que geralmente se ouve é que a China é um estado autoritário, com poderes para controlar sua população que seriam inimagináveis em uma democracia. Há rumores de que não estão contando toda a história, pode ser, mas o a fato é que conseguiram estancar a hemorragia. Além da força bruta, outros dois fatores, a forte coesão social e o uso intensivo e competente de tecnologias avançadas, parecem ter sido muito mais importantes.

“Coesão social” se refere ao grau em que as pessoas se sentem parte de uma comunidade e obedecem às normas de comportamento de seus grupos. Todos concordam que é uma coisa boa, mas discordam sobre quanto. No documentário, os americanos olham espantados como os operários chineses marcham sincronizados e gritam palavras de ordem, e como, em uma festa da fábrica, as crianças dançam com precisão geométrica em louvor à eficiência e à produtividade, lembrando as gigantescas manifestações coreografadas na Coreia do Norte em homenagem ao Grande Líder. Os chineses trabalham muito mais horas por dia do que os americanos, ganham muito menos, e são muito mais produtivos.

Vendo isso, é difícil separar o que é coesão social do que é totalitarismo, mas outros países que também estão conseguindo controlar a epidemia, como a Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Japão, são regimes democráticos com culturas semelhantes à chinesa. É a coesão social, mais do que o regime político, que os diferencia dos países ocidentais.

O terceiro fator que explica o sucesso destes países é o uso intensivo de tecnologias de testagem, acompanhamento dos movimentos da população pelos celulares, equipamentos de proteção de médicos e paramédicos e amplo uso de equipamentos caros e complexos como tomógrafos para melhor diagnosticar os doentes. Aqui também vem a dúvida de quanto é admissível, em uma democracia, permitir que governos controlem cada movimento das pessoas, mas isto já é feito em nossos países para fins comerciais.  Estas tecnologias também estão disponíveis e muitas delas tiveram origem no ocidente, mas os orientais têm sido mais eficientes em produzir, inovar e utilizá-las em grande escala do que os americanos e europeus.

Das muitas especulações que se fazem sobre como será o mundo pós-coronavirus, para quem sobreviver à imensa catástrofe que estamos presenciando, me parece claro que o século 21 será, definitivamente, o século chinês. Isto não significa que ficaremos todos sob a ditadura de Xi Jinping, já que a própria China pode evoluir para formas menos autocráticas de governo e os países ocidentais certamente recuperarão suas economias. Mas a China, que já vinha ocupando um espaço cada vez maior na economia mundial, deve sair desta crise muito mais fortalecida, transferindo definitivamente o polo da economia e do avanço tecnológico mundial para o oriente.

Das lições que temos que aprender da China, a que menos interessa, e que infelizmente muitos vão apregoar, é que as democracias não são capazes de enfrentar os grandes desafios epidemiológicos e ambientais que nos esperam, e precisam ser substituídas pelos candidatos a ditadores que surgem nestas horas difíceis. A democracia precisa ser preservada, mas deve ser menos disfuncional, com instituições públicas mais fortes nas áreas de ciência e tecnologia, políticas sociais mais firmes, e mecanismos legais capazes de lidar rapidamente com os eventuais comportamentos predatórios e demagógicos de seus líderes. Mais do que armas para eventuais guerras, é indispensável ter estoques estratégicos de suprimentos e equipamentos médicos que não dependam dos interesses comerciais e incertezas do mercado internacional, como vem ocorrendo. O SUS precisa ser repensado, concentrando recursos na saúde preventiva, vigilância epidemiológica e atendimento médico à população carente. Não se pode, e não sei se queremos, copiar o modelo de coesão social dos países orientais, mas precisamos tornar nossas sociedades mais educadas, coesas e solidárias. Sairemos desta tragédia mais pobres e sofridos, mas, quem sabe, um pouco mais sábios, para conseguir sobreviver no século chinês.

Mussolini

(Publicado no O Estado de São Paulo, 13/03/2020)

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Para entender os movimentos de extrema direita que ocorrem hoje, a leitura de “M – O Filho do Século” de Antonio Scurati, recém-publicado pela Editora Intrínseca, que conta a história do surgimento do fascismo na Itália, é leitura obrigatória. É um romance documental, que faz lembrar o “Romance de Perón” de Tomás Eloy Martinez, publicado em 1998 pela Companhia das Letras, que merece uma reedição.

O fascismo surge das cinzas ainda quentes da Primeira Guerra Mundial, com seus onze milhões de mortos. Vitoriosa, mas economicamente arrasada, a Itália se divide entre um governo liberal, que tenta reconstituir a economia, e um forte movimento socialista que ganha cada vez mais força no campo e nas cidades.  Todos anseiam pela paz, mas Mussolini, que havia começado sua carreira como editor do jornal do Partido Socialista, Avanti!, e sido expulso do partido por defender a entrada na Itália na Guerra, decide abraçar a morte, a violência e o nacionalismo como formas de ação política e busca do poder. 

Seus principais parceiros, no início, são os remanescentes de uma tropa de elite desmobilizada, os Arditi, treinados para assassinar os inimigos, que depois da guerra se sentem frustrados e marginalizados. Scurati os descreve como passando o tempo embriagados, nos bordéis, armados com punhais e envolvidos em atividades criminosas. São eles que Mussolini conquista com seu novo jornal, O Povo da Itália, cujo tema principal é o ataque aos que se opuseram à participação italiana da guerra,  e os organiza com a criação em 1919 do Fasci Italiani di Combattimento, os Grupos Italianos de Combate, simbolizados por uma caveira, que dão início o movimento e do Partido Fascista.

No início, Mussolini e suas milícias paramilitares são olhados com desprezo tanto pelos liberais, que controlam o governo nacional, como pelos socialistas, que cada vez mais controlam os governos locais e ganham espaço no Parlamento. A economia do país continua estagnada, a Itália não consegue participar da partilha do mundo colonial feita pelas potências europeias e os Estados Unidos, e o exemplo da revolução russa inspira entre os socialistas a ideia de que a hora da revolução italiana também está próxima. Mussolini, no início, ainda tentou manter um discurso a favor dos operários e camponeses, e compartilhava, com os setores mais radicais do partido socialista, a ideia de que o regime político liberal não servia para nada, os políticos eram, na melhor hipótese, incapazes, e na pior, corruptos, e só uma revolução poderia resolver os problemas do país. Ambos acreditavam, com Marx e os anarquistas, que a violência era a parteira da história.

Com o país paralisado por greves e ocupações sucessivas de terras e fábricas, os fascistas decidem se colocar como defensores da ordem e, financiados por fazendeiros e empresários, partem para atacar com violência e desmantelar os movimentos e organizações de esquerda, ao mesmo tempo em que, pelo jornal, Mussolini sobe o tom na defesa da violência e do nacionalismo como os únicos caminhos para fazer a Itália voltar aos tempos gloriosos do Império de dois mil anos atrás. Na primeira eleição que em que participam, em 1919, os socialistas e o Partido do Povo Italiano, católico, conquistam a maioria, e os fascistas ficam totalmente marginalizados. Nos dois anos seguintes, que ficaram conhecidos como o “Biênio Vermelho”, a crise econômica se aprofunda, as greves e ocupações de fábricas e fazendas se multiplicam o desemprego continua e os fascistas intensificam sua violência, com assassinatos de líderes populares e destruição das sedes das organizações locais. 

Na eleição de 1921, os fascistas se aliam aos liberais e ganham, deixando os vários partidos da esquerda na oposição. No governo, a crise econômica persiste, e Mussolini continua incentivando o terrorismo, com as milícias agora organizadas em esquadrões dos camisas negras. Em 1922 organiza a “marcha sobre Roma”, em que as milícias avançam sobre a capital exigindo que Mussolini seja nomeado primeiro ministro. O governo hesita, teria sido fácil desmantelar a milícia se o exército decidisse agir, mas todos temem a confrontação.  Na chefia de governo, Mussolini trabalha para desmontar as instituições democráticas, criando dentro do governo uma polícia secreta copiada da Cheka de Stálin, para dar continuidade à violência, e em 1925 assume o poder como ditador.

Mussolini não estava sozinho em seu assalto à democracia, que incluía gestos teatrais,  acordos por debaixo dos panos, o uso descarado da violência contra os opositores, o uso sistemático da mentira e a traição constante a antigos companheiros.  Tinha a simpatia de empresários, como Gianni Agnelli, dono da FIAT, e intelectuais e artistas brilhantes e famosos, como o filósofo Benedetto Croce, o maestro Arturo Toscanini, e a amante, a aristocrática intelectual judia Margherita Sarfatti. Para eles, o Duce tinha seus defeitos, mas havia uma causa maior, a recuperação econômica e renovação da Itália, que tudo justificavam. Deu no que deu.

A tentação de Goebbels

(versão ampliada de artigo publicado no O Estado de São Paulo, 14 de fevereiro de 2020

Em 1934 o jovem Luis Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas, e mais tarde criador do DASP e da Fundação Getúlio Vargas, vai a Berlim, fica fascinado com o Ministério de Propaganda de Goebbels, e manda uma carta entusiasmada para o Presidente, dizendo que o Brasil precisava de algo parecido: “tão interessante me pareceu sua organização que fiquei seis dias, coligindo notas e, principalmente, cópia da moderna legislação alemã sobre trabalho, propaganda, etc., após o advento do governo nacional-socialista, senhor absoluto da Alemanha”.  “O que mais me impressionou em Berlim”, prossegue, “foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do Nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido…” (o texto completo da carta está disponível aqui)

A carta expressa dúvida sobre a obsessão nazista com a grande conspiração dos judeus para dominar o universo, que diz que não entende (“parece-me que através do capitalismo seria mais fácil”), mas é só um detalhe, o que importa mesmo é a eficiência: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil. Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (. . .) mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável. A Alemanha, além de outras todas, leva-nos a vantagem de ter um governo praticamente ditatorial”.  “Com todos os tropeços que se nos deparam, devemos ensaiar a adoção dos métodos modernos de administração, de órgãos de ação pronta e eficaz, experimentados em outros países”.  

Depois de detalhar as áreas de atividade do Ministério, da cultura física à contrapropaganda no exterior, utilizando verbas secretas e total liberdade para contratar e demitir pessoas, a carta continua dizendo que “a antiga nobreza é contra Hitler, que acabou na Alemanha com as castas”, e que “a democratização é um fato. Os ‘dancings’, cinemas etc., que eram frequentados pela elite estão hoje repletos de povo, que vive satisfeito e distraído, esquecido da política”. Em um apêndice, há um resumo das principais áreas de atuação do Ministério da Propaganda: são 10 itens, começando com questões gerais da vida social  e política, combatendo os adversários dentro e fora do país e controlando todos os meios de propaganda e publicação, da arte e de cultura, e culminando com a organização de manifestações oficiais, festas nacionais, feriados e o hino nacional.

Estávamos em 1934, ano em que uma nova Constituição foi promulgada, reestabecendo o regime democrático e elegendo Getúlio como presidente, com a promessa de marcar uma nova eleição em 1938. Dois anos antes São Paulo havia se insurgido contra o governo central, e a nova Constituição foi sobretudo uma manobra de conciliação com as elites paulistas, que durou até a implantação da ditadura em 1937.

Não é por acaso que esta carta tenha sido repassada por Getúlio para Gustavo Capanema, Ministro da Educação, em cujo arquivo a encontrei quando pesquisava a história do Ministério naqueles anos. Na visão de Getúlio, e do próprio Capanema, caberia a este Ministério, em aliança com a Igreja conservadora de Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção,  administrar o uso do rádio, do cinema,  das artes, dos currículos escolares  e de grandes eventos cívicos, como os grandes desfiles e o canto orfeônico coordenado por Villa Lobos, mobilizando a população a favor da Nação, tal como entendida pelo governo. Ao longo dos anos, de fato o Ministério fez o que podia para cumprir este papel, ao mesmo tempo em que acenava para os intelectuais com a proteção ao patrimônio histórico e a convivência com os modernistas, Em 1939, desistindo do Ministério da Educação, que chegou a ser prometido a Plínio Salgado, Getúlio finalmente segue a sugestão de Simões Lopes e cria o Departamento de Imprensa e Propaganda, a versão cabocla do Ministério de Goebbels. Basta ler os objetivos do DIP no seu decreto de criação para ver que foram praticamente copiados do resumo feito cinco anos antes por Simões Lopes.

Luis Simões Lopes e Getúlio eram realistas, não tinham ideologia de esquerda ou direita, mas compartilhavam a ideia de que a democracia representativa era um modelo político fracassado, que precisava ser substituído por regimes que fizessem uso de todos os meios para modernizar a sociedade e instaurar a verdadeira democracia, que para eles significava deixar o povo “satisfeito e distraído”. O que diferenciava o regime de Vargas dos fascismos europeus era que ele via a mobilização ideológica como ameaça, e por isto mesmo se desfez de seus aliados integralistas logo após o golpe de 1937. Coisas como antissemitismo, nacionalismo, religião, normas constitucionais, direitos humanos, arte, literatura, todo este mundo de valores e princípios, certos ou errados, eram meras conveniências que podiam ou não ser usadas conforme fossem úteis para conseguir o que importava: a administração “moderna”, a capacidade de ação “pronta e eficaz”, e o esperado progresso “moral e material”.

É possível que hoje,  como no Brasil nos anos 30, a grande tentação de imitar Goebbels não seja a ideologia grotesca do Nazismo, com o antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo, e não se importam com os meios para chegar a seus fins. É isto que nos deve preocupar mais.

De Volta ao Futuro

(publicado em O Estado de São Paulo, 10 de janeiro de 2020)

A nova versão do Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se, publicada no início de janeiro pela Casa Civil como projeto de lei e colocado em consulta pública, é um grande avanço em relação à versão anterior, de julho, divulgada pelo Ministério da Educação. Essencialmente, o projeto prevê a criação de um fundo patrimonial para apoiar atividades de inovação, empreendedorismo e internacionalização das universidades e institutos federais, permite que as universidades criem e administrem os próprios fundos, e introduz vários mecanismos modernos para a execução de projetos, pela criação ou associação das universidades com fundações de apoio e organizações sociais, contratos de gestão por resultados entre as universidades e a União e a criação de um comitê gestor do programa formado por representantes das universidades e dos Ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia e Economia. Nesta versão, fica claro que a autonomia das universidades fica preservada, e que os recursos do programa são adicionais, e não substituem os recursos orçamentários regulares.

O ano de 2019 foi especialmente ruim para a educação brasileira, com o Ministério da Educação se perdendo em disputas ideológicas que só servem para desviar a atenção, deixando de lado questões centrais como a implementação da reforma do ensino médio e da educação profissional, a reformulação do ENEM, a renovação do FUNDEB, a revisão do sistema de avaliação da educação superior, a política de formação de professores, o combate ao analfabetismo funcional, e tantas outras.  Em contraste, o projeto do Future-se mostra que uma equipe tecnicamente competente, ouvindo e dialogando com diferentes setores de dentro e fora da comunidade universitária, tem condições de avançar, da mesma forma que outras equipes vêm avançando nas áreas da economia e da infraestrutura.

Isto não significa que o projeto Future-se seja perfeito, e o processo de discussão pública que agora se renova serve não somente para que ele se aperfeiçoe, mas também para que ele seja melhor entendido e ganhe legitimidade nas diversas áreas – universitária, científica e tecnológica, empresarial e governamental – em que deve atuar. Existem questões que precisam aprofundadas, como o relacionamento do programa com a CAPES, e um certo fetiche que me parece ingênuo com a internacionalização, que não deveria ser um fim em si mesmo, mas o resultado natural de uma ciência e tecnologia de padrão efetivamente internacional. Outras questões hão de surgir da leitura atenta da proposta.

Sem tirar o mérito do projeto, é importante lembrar sempre que a pesquisa, a inovação e o empreendedorismo são somente uma parte pequena do sistema federal da educação superior, que, por sua fez, é também uma parte pequena da educação superior brasileira. Os dados recentes sobre publicações científicas elaborados pela Universidade de Leiden mostram que 42% da produção científica brasileira de qualidade internacional provém das três universidades paulistas, e metade da produção das federais vêm de apenas cinco universidades – URFJ, UFRGS, UFMG, UNIFESP, UFSC – sendo que só 23 das centenas de instituições de ensino superior no país aparecem nos dados. E, pelo censo da Educação Superior de 2018, dos 8.4 milhões de estudantes de nível superior no país, só 1.3 milhões, menos de 16%, estavam em matriculados em instituições federais. 

Em outras palavras, a maior parte das universidades brasileiras, públicas ou privadas, não fazem ou fazem muito pouco de inovação, empreendedorismo e internacionalização, mas fazem outra coisa muito importante, que é formar milhões de pessoas para as diferentes profissões. Alguns conceitos introduzidos pelo Future-se, como os contratos de gestão, autonomia gerencial e avaliação por resultados, deveriam ser aplicados às universidades como um todo, para a avaliação e acompanhamento do ensino, e, mais amplamente, para alinhar os orçamentos anuais com os resultados obtidos, e não com os custos históricos. 

Por outro lado, se for possível efetivamente criar um fundo patrimonial significativo para o apoio à inovação e ao empreendedorismo – e ainda não está claro se existirão recursos para isto – não há por que excluir do programa as universidades estaduais e particulares. A responsabilidade do Ministério da Educação para com a educação superior brasileira não se limita às instituições federais, e é importante não confundir a administração da rede própria com as políticas de interesse geral para o país.

Não é por acaso que seja justamente na ponta de cima do sistema que as coisas aparentemente comecem a andar. Esta tem sido a prática brasileira desde sempre – cuidar das instituições de elite, e não conseguir lidar com as questões que afetam e interessam à grande maioria da população. Temos a melhor pós-graduação e pesquisa universitária da América Latina, mas uma graduação muito desigual, e um dos piores sistemas escolares. É uma ilusão achar que um pequeno conjunto de instituições inovadoras possa, com o tempo, melhorar o resto, que funciona com outras lógicas.  A ideia de que todo o ensino superior brasileiro convergiria para o modelo da universidade de pesquisa, que vem da reforma de 1968, ainda não foi abandonada de vez, embora todos saibam que é um mito. Sem políticas específicas para os cursos de graduação, o mais provável é que as universidades vocacionadas para a pesquisa e a pós-graduação se distanciem cada vez mais do resto, ou, simplesmente, acabem refluindo para a vala comum. É preciso aproveitar a experiência do Future-se para lidar também, com competência técnica, ideias inovadoras e diálogo, com os outros grandes problemas que a educação brasileira até agora não tem conseguido enfrentar.

Autonomia e Regulação das Universidades

(Versão revista do artigo publicado em O Estado de São Paulo, 13 de dezembro de 2019

O Triângulo de Clark

O mundo dá voltas. No início do período Lula, o governo criou uma Comissão para desmontar o sistema de avaliação de cursos superiores criado pelo Ministro Paulo Renato de Souza, no governo Fernando Henrique Cardoso. Ao invés de avaliação externa, o famoso “provão”, o que se propunha era a auto-avaliação, feita de forma autônoma pelas universidades, e a criação de um conselho com representantes de professores, estudantes, funcionários, pessoas de notório saber e funcionários do MEC, para supervisionar o novo sistema. Acabou dando o contrário: o Ministério da Educação ressuscitou o provão, com o nome de ENADE, juntou os resultados com outros dados para produzir alguns índices “provisórios” que viraram definitivos, e criou um sistema caro e complexo de avaliadores para ver se as instituições estavam cumprindo com uma série de requisitos formais. A auto-avaliação foi transformada em um relatório burocrático que as instituições preparam para ser arquivado, sem ninguém ler.  A Comissão que deveria coordenar o sistema, a CONAES, nunca teve poder de decisão. Agora se fala novamente em implantar a auto-avaliação, que substituiria a avaliação externa, antes repudiada e depois adotada pelo PT. 

O fato é que o Ministério da Educação simplesmente não tem como avaliar regularmente e de forma confiável 2.500 instituições, 38 mil cursos em mais de 80 áreas de conhecimento e 8 milhões de estudantes. O ENADE, sem distinguir o que é bom, aceitável ou ruim, e do qual os estudantes participam sem maior interesse, não serve para muito, e tem sido na prática desvalorizado pelo próprio Ministério, ao dar peso muito maior a outros indicadores em seus índices;  e o processo de credenciamento e recredenciamento das universidades é um ritual que não ajuda as instituições a se repensar, e nem atinge as universidades públicas. Não há nenhuma evidência de que o custoso processo de avaliação in loco feita por comissões de avaliadores externos esteja contribuindo efetivamente para a melhora da educação superior do país.  

Não há dúvida que as instituições de ensino, como quaisquer outras, precisam se avaliar permanentemente, verificando se estão cumprindo seus propósitos e usando bem seus recursos. Mas, sem estímulos externos, as instituições tendem a se acomodar. Em um mercado competitivo, este estímulo é a concorrência. Em instituições que desempenham atividades de interesse público, o estímulo deve vir de agências reguladoras externas. Na educação superior, o mercado é formado não só pelos os estudantes que pagam matrículas para as instituições privadas, mas pelas preferências dos que se matriculam nas públicas, das agências de governo que distribuem recursos e dos empregadores que depois decidem quem vão contratar.  Além do mercado e dos governos, as universidades precisam responder a aos estímulos que vêm da comunidade científica e profissional que, dentro e fora das instituições, têm padrões de qualidade que consideram necessários para as atividades de pesquisa e ensino.

Estes três componentes – mercado, governo e a comunidade acadêmica e profissional – formam o famoso “triângulo de Clark”, que, puxando mais para um ou outro vértice, define o espaço dentro do qual os sistemas de educação superior devem ser regulados. Quando só um deles predomina – governo sem participação da comunidade acadêmica nem competição, mercado competitivo sem governo nem participação da comunidade acadêmica, controle absoluto da comunidade acadêmica sem regulação externa nem competição – a educação superior sofre. E sofre ainda mais quando os vértices do triângulo são substituídos por seus lados perversos – o governo pela burocracia, a comunidade acadêmica pelas corporações, a competição por qualidade pela competição pelo facilitário das credenciais e do lucro como primeira prioridade.

É preciso criar mecanismos para incentivar estimular a auto-avaliação não como um fim em si mesmo, mas como resposta aos estímulos das políticas públicas, da comunidade acadêmica e do mercado. É preciso decentralizar, dar mais autonomia às instituições e sistemas de ensino, envolver mais fortemente a comunidade acadêmica no processo e informar melhor à sociedade sobre o desempenho efetivo das diversas instituições e cursos. Ao invés de um sistema de avaliação concentrado no Ministério da Educação, pensar em uma pluralidade de agências avaliadoras, por região, área de conhecimento ou tipo de instituição. Ao invés de credenciar instituições, o Ministério da Educação, ou melhor ainda, uma nova agência reguladora, credenciaria as agências avaliadoras. Dar menos importância a indicadores de insumos (instalações, características dos professores), e cada vez mais aos resultados, incluindo a empregabilidade dos formados, a partir da integração dos dados de diversas fontes como os censos escolares, a RAIS e outras. Ao invés de avaliar a conformidade dos cursos com as diretrizes curriculares, dar liberdade para que as instituições definam seus próprios objetivos, e sejam avaliadas pela capacidade que tenham de fazer o que anunciam.

Passar do atual sistema para um novo não será simples, mas não é impossível, se as instituições de ensino se mobilizarem para isso. O mais importante é garantir que este novo sistema seja reconhecido pela sociedade e pela comunidade acadêmica como legítimo e válido, da mesma maneira que a CAPES é reconhecida na a área de pós-graduação. E, depois, que os resultados das avaliações se tornem amplamente conhecidos, e possam ter impacto efetivo não somente na autorização de funcionamento de instituições privadas, como ocorre hoje, mas também das públicas, e nas políticas de financiamento público da educação superior de um modo geral.

Prenúncios no Chile

(Versão ampliada do texto publicado em O Estado de São Paulo, 8 de novembro de 2019)

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Em Santiago recentemente, me surpreendi quando me disseram que a situação do país estava péssima, prenunciando as manifestações que viriam logo depois.  Visto por um brasileiro, o Chile é nosso sonho de consumo: a economia crescendo a 3% ao ano, a melhor educação e os menores índices de violência da região, pouca corrupção, uma redução dramática nos níveis de pobreza, e a cidade moderna e vibrante que é Santiago, integrada por um excelente sistema de metrô. O Chile é uma democracia estável desde a saída de Pinochet em 1989, e a Concertación de centro-esquerda que governou o país até 2010 investiu fortemente na área social, ao mesmo tempo em que manteve grande parte da economia de mercado instituída pelos “Chicago boys” dos anos anteriores. 

Claro que nem tudo são sonhos. O Chile ainda depende muito do preço internacional do cobre, e o PIB em 2019 não deve crescer muito. A desigualdade é grande, embora menor do que a brasileira. Os custos dos serviços de saúde e medicamentos são altos, e o sistema de capitalização das aposentadorias sem garantia de piso não deu certo, deixando a população mais velha, em grande parte, desamparada. O desemprego, ao redor dos 7%, não é alto, mas a informalidade e a precarização crescem. 

Mas os que mais protestam não são os mais velhos ou os mais pobres, mas, sobretudo, jovens estudantes das classes médias, conectados nas redes, inseguros quanto ao futuro e buscando um protagonismo que não conseguem ter. Na Faculdade de Educação aonde fui, o tema do momento eram as ocupações dos prédios feitas por movimentos feministas radicais exigindo o atendimento imediato a demandas que vão desde questões ligadas à igualdade de gênero, o fim do patriarcalismo e do assédio sexual, até temas mais gerais como o direito à habitação digna para todos e o fim da economia extrativista. E continua viva, na memória dos chilenos, a “revolta dos pinguins” de 2006 e 2011, estudantes secundários que iam às ruas em manifestações extremamente violentas contra governos de esquerda e de direita, Bachelet e Piñera, não somente contra a educação privada, mas contra a economia de mercado e o regime político como um todo. 

Minha apresentação no Chile foi sobre as quatro grandes funções que a educação deveria desempenhar como contribuição para o progresso social, como proposto pelo International Panel for Social Progress: o desenvolvimento da pessoa humana, o fortalecimento da cidadania, o desenvolvimento econômico e a equidade social. Os dois últimos temas têm monopolizado a atenção de governantes e pesquisadores, mas os dois primeiros parecem ter caído no esquecimento. Agora que o foco na educação são as competências, que sentido tem ainda dizer que as escolas devem “formar” as pessoas, mens sana in corpore sano, como nos velhos tempos?  Quando os modernos estados nacionais foram criados, nos séculos 18 e 19, a educação pública foi vista como o mecanismo para desenvolver, nos cidadãos, o sentido de pertencimento à nação, o domínio de uma língua comum e os conhecimentos necessários para viver em uma sociedade complexa. Agora que todas as informações estão na Internet, a vida social e os valores dos estudantes se estruturam a partir das redes sociais, da música popular e da cultura de juventude, ainda se pode esperar que as escolas desempenhem estes papéis?

Talvez devessem, mas não estão conseguindo, e talvez estejamos esperando da educação mais do que ela possa dar. Christian Cox, educador chileno que tem se dedicado ao tema, mostra como os currículos escolares em quase toda parte estão deixando de lado os temas clássicos de cidadania e coesão social,  substituídos por temas locais ou identitários, mas a grande questão é se estes conteúdos, mais tradicionais ou não, de fato são incorporados. No Chile, os importantes avanços na educação medidos pelos testes do PISA não levaram a um maior consenso, entre os estudantes, sobre o valor da democracia e as virtudes do modelo econômico e social estabelecido pelos governos desde o fim da ditadura, questões que, aliás, o PISA não avalia.

Uma das críticas que se faz à educação no Chile é que a introdução de um amplo sistema de financiamento público à educação privada, através de vouchers, que hoje atende a mais da metade da matrícula, junto com a cobrança de anuidades das universidades públicas, teriam tornado o acesso à educação mais desigual. A evidência parece mostrar que escolas privadas subsidiadas têm resultados melhores do que as públicas, mas em grande parte porque são mais seletivas, e os resultados escolares continuam dependendo fortemente da condição social das famílias. Com os vouchers, as famílias podem escolher aonde mandar os filhos, e a grande preferência é pelas escolas privadas, deixando as escolas públicas municipais com os alunos em piores condições, e com muitas dificuldades para melhorar. No ensino superior, um amplo sistema de bolsas, créditos educativos e a política mais recente de garantir gratuidade em qualquer instituição a alunos provenientes de famílias mais pobres, tem reduzido o problema da desigualdade de acesso por razões financeiras, e a combinação de financiamentos públicos e privados tem dado às universidades um dinamismo difícil de encontrar em outros países da região.

Há muita semelhança entre as manifestações chilenas de 2019, que começaram contra o aumento do metrô, e as manifestações paulistas de 2013, que começaram contra o aumento dos ônibus: demandas simples que vão se ampliando e dando vazão aos sentimentos de frustração e impotência das pessoas ante uma sociedade e economia que proporcionam muito menos do que gostariam. Algumas das demandas podem ser atendidas, mas nunca o suficiente para recuperar completamente a legitimidade recebida pelos governantes nas últimas eleições que disputaram. No Chile, ainda há que se aguardar para ver quais serão as consequências, mas um claro risco é o rompimento do grande consenso construído entre o centro-esquerda e o centro-direita nos últimos 20 anos que parecia estar levando o país a um patamar de desenvolvimento inédito na região. Se assim for, a democracia sofre, perde legitimidade, e o futuro não se afigura promissor.

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