Carlos Bielschowsky: Problemas na oferta de Educação Superior à Distância

Carlos Eduardo Bielschowsky, Presidente da Fundação CECIERJ

A Educação à Distância vem permitindo o acesso ao ensino superior de pessoas que não conseguem estudar em cursos presenciais porque moram em municípios menores onde não existe oferta de ensino superior ou porque, mesmo morando em grandes centros, por diversas razões não se adequam ao ensino presencial. Além disso, contribui para o desenvolvimento de novas práticas docentes, não apenas pela utilização de processos de ensino e aprendizagem com recursos digitais, mas principalmente por necessitar de forma visceral de uma aprendizagem ativa.

Há muitas décadas que a educação à distância vem sendo praticada em grande escala no exterior, aparentemente com a mesma qualidade dos cursos presenciais. No Brasil, a oferta deste tipo de ensino na graduação é relativamente recente, tendo iniciado em 1997 com o curso de pedagogia para professores em exercício pela Universidade Federal do Mato Grosso, seguida por outras iniciativas semelhantes. Em 2002 ocorreu o primeiro vestibular aberto nesta modalidade para o curso de Matemática da Universidade Federal Fluminense, no contexto do consórcio Cederj (Centro de Educação Superior à Distância do Estado do Rio de Janeiro), e desde então a oferta Nacional evoluiu rapidamente, alcançando em 2016 a cerca de 1,5 milhão de alunos

Atualmente, quase todas as Instituições de Ensino Superior públicas Federais e Estaduais estão oferecendo educação à distância, financiadas pelo programa Universidade Aberta do Brasil da Capes/MEC, e também por parte das instituições privadas, contribuindo para a democratização do acesso ao ensino superior.

A educação à distância tem uma metodologia de oferta distinta daquela dos cursos presenciais, mas deve contemplar o mesmo conteúdo, conduzir às mesmas habilidades e competências e oferecer adequado apoio ao estudante. Neste sentido, deve conduzir a resultados equivalentes ao do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes  (Enade) dos cursos presenciais.

A julgar pelos resultados do Enade, também aqui no Brasil a qualidade dos cursos à distância e presenciais podem ser equivalentes, conforme mostramos em artigo recente (Bielschowsky, 2018). Este é, por exemplo, o caso  dos alunos de educação à distância das Universidades públicas que compõe o Consórcio Cederj (UENF, UERJ, UFF, UNIRIO, UFRJ, UFRRJ e CEFET).

Algumas poucas Instituições fogem a esta regra, e seus alunos de educação à distância têm desempenho pior do que os dos cursos regulares.  Este é o caso, infelizmente, de cinco Instituições que têm um grande número de alunos nesta modalidade: elas tinham 870 mil alunos em 2016, representando 58% de todas as matriculas de educação à distância no país (Bielschowsky, 2018).

Por exemplo, os cursos de Serviço Social à distância destas cinco Instituições tinham, em 2016,  um total de  76.611 alunos matriculados, 46% de todos os alunos nestes cursos no país naquele ano em todas as modalidades. A média no Enade dos alunos de Serviço Social em educação à distância destas cinco Instituições foi de apenas 1,3, enquanto que a média dos alunos das mesmas instituições em seus cursos  presenciais foi de  2,58, o que mostra que elas estão adotando um tratamento diferente entre a  oferta de educação à distância e a oferta presencial. Só a Universidade do Norte do Paraná possuía em 2016 35 mil alunos em educação à distância, com conceito Enade de 1,29.

Isto significa que, apesar de a grande maioria das instituições apresentarem um desempenho no Enade equivalente entre seus cursos presenciais e à distância, a atual concentração de matrículas em poucas instituições com baixo desempenho faz com que a maioria dos alunos de educação à distância do país apresentem baixo desempenho no Enade. Em outros termos, lamentavelmente, essa metodologia, que vem contribuindo para o desenvolvimento do país, está novamente em risco.

Esta não é a primeira vez que a educação à distância no Brasil corre risco de colapso pela má qualidade. Em 2007 passamos por situação semelhante. Para enfrentar esta situação, o MEC colocou várias instituições em regime de supervisão, selecionadas por terem um grande número de alunos ou serem alvo de denúncias. Utilizamos nesta supervisão um conjunto de indicadores e também vistorias “in loco” na sede e em seus polos, contando para tal com a ajuda de cerca de 400 professores com atuação em educação à distância em instituições públicas e privadas. De propósito, deixamos para estes colegas uma boa margem de interpretação crítica e criativa do processo, o que ajudou a desburocratizá-lo.

A partir destes elementos, elencamos para cada instituição um conjunto de fragilidades que eram discutidas com a equipe dirigente, confluindo para um termo de saneamento com medidas concretas a serem executadas no prazo de um ano. Tendo a instituições sucesso na implementação destas medidas, o processo de supervisão era encerrado; caso contrário, era encaminhada ao Conselho Nacional de Educação proposta de encerramento das atividades de educação à distância daquela instituição.

As principais fragilidades encontradas à época foram:

  • i. Desconexão entre a instituição e os alunos; muitas vezes os polos que cuidavam dos alunos eram meras franquias.
  • ii. Cursos de graduação que não tinham conteúdo mínimo para ser considerados como tal. Os materiais didáticos e as avaliações contemplavam conteúdos muito superficiais, chegando ao cúmulo de casos onde toda a matéria de uma disciplina estava contida em um impresso de apenas 20 páginas em espaço duplo, sem quaisquer outros materiais digitais adicionais, e quase nada cobrado do aluno nas provas.
  • iii. Falta de apoio mínimo ao estudante, sem tutorias presenciais nos polos ou tutoria à distância no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA).
  • iv. Polos de apoio presencial totalmente inadequados, alguns restritos a apenas uma sala.

Este processo conduziu ao fechamento de cerca de 3.800 polos de apoio presencial e ao cancelamento da autorização de oferta de educação à distância de várias instituições.

A partir de 2011 o processo de supervisão foi descontinuado pelo MEC e, para complicar esta situação, as regras de regulação da educação à distância foram parcialmente relaxadas em 2017, permitindo, por exemplo, a criação de polos pela maioria das instituições sem credenciamento e vistoria prévia. Aparentemente, com a ausência de supervisão e o relaxamento das regras de regulação, algumas instituições estão de novo na trajetória de uma oferta desqualificada.

O fato de que estamos pela segunda vez diante de um quadro de crise na oferta de educação à distância mostra claramente que os mecanismos de regulação não estão funcionando adequadamente para a educação à distância. Cabe perguntar o que vai mal nesta história. Seguem algumas hipóteses:

i. As instituições que buscam o lucro a todo custo (uma minoria, mas com muitos alunos), são muito eficientes nesta maximização do lucro e, para tal, cumprem no limite mínimo e de forma criativa a regulação vigente. Em outros termos, muitas vezes um mínimo bom senso e ética educacional não fazem parte de sua lógica de funcionamento.

ii. Precisamos avaliar de forma distinta a oferta presencial e à distância. Um conjunto significativo de profissionais da educação, responsáveis em diferentes momentos pela regulação do sistema, procuraram colocar a avaliação das duas modalidades no formato mais parecido possível, tanto em termos das regras gerais de regulação como na construção dos instrumentos de avaliação utilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP). O argumento é que não deveríamos criar barreiras e distinções entre as duas modalidades, que elas se fundirão em um futuro próximo, raciocínio convincente em termos conceituais.  Mas a oferta de educação à distância e presencial são diferentes, e a utilização de mecanismos semelhantes em sua avaliação abre brechas para a precarização da oferta de educação à distância de algumas instituições.

Por  exemplo, os conteúdos dos cursos de educação à distância devem ser equivalentes aos dos cursos presenciais, e verificamos na supervisão realizada entre 2007 e 2010 uma grande precarização nos conteúdos oferecidos e cobrados dos alunos em algumas instituições. Esta questão, característica da educação à distância, precisa ter destaque nos instrumentos de avaliação para credenciamento e recredenciamento destes cursos.

iii. Questionários de avaliação com indicadores (como os instrumentos utilizados pelo INEP) por melhor que sejam, não permitem uma avaliação qualitativa da oferta. E, de uma maneira geral, os avaliadores são “generosos”.

iii.    O Índice Geral de Cursos (IGC) e o Conceito Provisório de Cursos (CPC) utilizados pelo INEP,  no formato atual, parecem bastante inadequados para a avaliação da educação à distância, já que o ENADE, que é o indicador de qualidade, só entra com 20% do peso em seu cálculo.  Dois outros indicadores, o da Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado (NIDD) e a titulação do corpo docente, têm um peso de 60%, não são adequados para a educação à distância.

O problema com o CPC pode ser visto com clareza no caso já mencionado do curso de serviço social da UNOPAR, com 35 mil alunos em cursos de educação à distância. Apesar de ter um ENADE somente 1,29, este curso teve um CPC de 2,50, resultante em parte de uma boa pontuação na dimensão corpo docente, uma vez que todos seus 21 professores tinham Mestrado ou Doutorado e trabalhavam em regime de tempo integral, obtendo 4,3 em 5 pontos nesta dimensão. Sim, é isto mesmo,  apenas 21 docentes para 35 mil alunos! Como pode um curso com uma relação de 1.677 alunos por professor receber uma nota favorável no quesito corpo docente? Parece óbvio que, no caso de educação à distância, ou utilizamos apenas o Enade, ou modificamos o CPC, por exemplo, incluindo na dimensão corpo docente também a qualificação dos  tutores e a relação professor/aluno e tutor/aluno

Se o CPC é inadequado para avaliar a  educação à distância, pior  é o Conceito Geral de Curso, que leva em conta o CPC e também duas outras dimensões, a média dos conceitos de avaliação dos programas de pós-graduação stricto sensu atribuídos pela Capes na última avaliação trienal disponível e a distribuição dos estudantes entre os diferentes níveis de ensino, graduação ou pós-graduação stricto sensu.

A conclusão é que o CPC ou o CGC, ao contrário do Enade, não são apropriados como instrumento de avaliação de uma oferta desqualificada realizada em grande escala. O que fazer diante desta nova ameaça de baixa qualidade nos cursos oferecidos na metodologia de educação à distância?

Sugerimos, em primeiro lugar, não permitir novas matrículas para aqueles cursos cujos alunos tenham obtido no último Enade um conceito contínuo inferior a 1,95, o que representa conceitos discretos 1 ou 2.

Em segundo lugar, precisamos encontrar novos caminhos para a regulação da educação à distância e, para tal, entender melhor o que está acontecendo. Um caminho para isto seria retomar o processo de supervisão de instituições com cursos cujos alunos de educação à distância apresentam baixo desempenho no Enade, que mede diretamente a qualidade dos cursos, deixando de lado o Conceito Preliminar de Curso que, como vimos, não é adequado para isto.

Concluímos reiterando nossa convicção que a educação à distância traz uma importante contribuição, viabilizando um maior acesso ao ensino superior, e que pode ser realizada com a mesma qualidade do ensino presencial. Este importante instrumento apresenta, entretanto, uma modalidade que merece atenção especial: suas características técnicas permitem o aumento de vagas muito mais rapidamente que o ensino presencial. Esta velocidade na criação de novas vagas tem como aspecto positivo permitir que se vença de forma ágil o déficit no número de vagas de ensino superior no país. Mas também permite criar situações de baixa qualidade na oferta, como a que passamos agora, onde um pequeno conjunto de instituições com baixo desempenho detém a maioria das matrículas de educação à distância no país.

Por conta disto, esta área requer uma atenção especial do Ministério da Educação (Seres e Inep) e do Conselho Nacional de Educação.

Um modelo para o novo ensino médio

Um modelo para o novo ensino médio

Proposta de organização do ensino médio por trajetórias acadêmicas, por tempo de horas (currículo de 2400 horas em três anos)

 

No início de 2017, o Congresso aprovou uma nova legislação para o ensino médio; em abril de 2018, o Ministério da Educação publicou a primeira versão do que seria a “Base Nacional Curricular Comum” do ensino médio, que, além de outros problemas, se limita somente ao que seria a “parte comum” do novo currículo;  desde então a propaganda governamental na TV mostra jovens felizes dizendo que, agora, finalmente, podem fazer suas escolhas. Mas ninguém sabe ainda, nas redes escolares, como será este novo ensino médio. O Conselho Nacional de Educação tem a oportunidade de rever a proposta da Base Curricular elaborada pelo Ministério, e esta é uma ocasião de aprofundar o entendimento sobre como a reforma que se busca ficará de fato.

Esta proposta, resultado de conversas com vários colegas nas últimas semanas, propõe um modelo para este ensino médio reformado. Está longe de ser um modelo acabado, mas permite pensar de forma mais concreta o que poderia de fato ser feito, e assim, avançar.

Contexto

O ensino médio é o período de transição entre a educação fundamental, que deve proporcionar uma base comum de conhecimentos e competências para toda a população, e a educação superior e profissional, em que os jovens se encaminham por diversas trajetórias de formação e trabalho.

Em todo o mundo, os jovens já chegam ao ensino médio com diferentes condições, necessidades, competências e motivações para o estudo e o trabalho. No Brasil,  além disto, a grande maioria dos jovens não completa a educação fundamental com um nível satisfatório de domínio da língua portuguesa, do raciocínio matemático, do entendimento das ciências naturais e sociais, nem de conhecimentos mais amplos e aprofundados do contexto cultural, social e político em que vivem.

O ensino médio tradicional, implantado no Brasil na década de 40 e mantido sem mudanças mais profundas até recentemente, se iniciava após o antigo primário de 4 ou 5 anos com o antigo ginásio e continuava pelos três anos dos cursos colegiais, e tinha como objetivo dar aos poucos estudantes que chegavam a este nível, sobretudo homens, uma formação geral que os preparasse para os estudos universitários. Para as mulheres, as alternativas eram a formação para o lar ou os cursos normais para o magistério. Para os demais, havia uma oferta limitada de ensino profissional para a indústria, comércio e agricultura, e a grande maioria não ia além da educação primária, quando chegava até lá.

Desde então, o acesso à educação se alterou radicalmente no Brasil. O acesso à educação fundamental se tornou praticamente universal, e a diferenciação por gênero praticamente desapareceu. Em 2017, 87% dos jovens de 20 anos haviam completado a educação fundamental, e 64% haviam completado o ensino médio, que se tornou obrigatório por lei. Ao mesmo tempo, o mundo do conhecimento, da pesquisa e das profissões se ampliou e se transformou profundamente. De uma educação de elite, excludente e relativamente homogênea no passado, evoluiu-se para uma educação abrangente, inclusiva mas, por isto mesmo, mais diferenciada.

Dos jovens que hoje chegam ao ensino médio, cerca de 20 a 30% no máximo chegarão à educação superior, que também está se ampliando, mas com níveis muito distintos de exigência e qualificação. O ensino médio precisa atender ainda a uma grande população adulta que busca completar sua educação – em 2017, 25% de seus alunos tinham mais de 18 anos. A grande maioria dos alunos chega ao ensino médio com uma educação fundamental precária, precisando de uma qualificação profissional valorizada no mercado de trabalho, e muitos precisam trabalhar enquanto estudam.

O ensino médio precisa atender a este público diferenciado oferecendo aos diferentes segmentos uma capacitação que seja útil e significativa para as diferentes trajetórias. A nova legislação sobre o ensino médio reconhece esta necessidade, ao diferenciar um núcleo comum de formação das diferentes trajetórias ou itinerários formativos possíveis. A parte comum inclui  as competências no uso da língua portuguesa, da matemática, da língua inglesa, e conhecimentos nas áreas das humanidades, ciências sociais e naturais. A parte diferenciada também se dará, naturalmente, dentro das diversas áreas de conhecimento, mas com maior aprofundamento e capacitação para trajetórias futuras, seja em estudos superiores, seja na vida profissional.  É do peso relativo e da maneira pela qual estes diferentes conteúdos serão apresentados e apropriados pelo estudantes que o novo ensino médio se diferenciará efetivamente do modelo tradicional adotado até o presente.

Pontos principais da proposta

  • Ao término do ensino fundamental, os alunos devem passar por um processo de orientação que indique que opções dispõem para continuar seus estudos, em função de sua formação anterior e da disponibilidade de oferta em sua área de residência. Idealmente, como ocorre em muitos países, deveria haver uma avaliação abrangente do desempenho dos estudantes ao término do fundamental, ou seja, aos 15 anos, que servisse de referência para esta orientação
  • A adoção de uma definição explícita dos principais itinerários formativos, que não sejam a classificação formal de áreas de conhecimento adotada pelo Ministério da Educação, nem que fiquem totalmente abertos a critério de cada sistema de ensino. Estes itinerários, de forma condizente com a experiência internacional, deveriam ser 1) humanidades, incluindo língua portuguesa, letras, artes e literatura e filosofia; 2) matemática, ciências físicas e tecnologia (STEM); 3) ciências biológicas e da saúde; 4) ciências econômicas e sociais.
  • Estes itinerários não devem ser obrigatórios, as escolas e redes de ensino continuam com autonomia para organizar seus currículos de outras formas. No entanto, o governo federal não pode se abster, e sua atuação deve consistir em definir com clareza a base curricular dos principais itinerários e o processo de avaliação de resultados através de uma nova versão do ENEM.
  • A base nacional curricular comum, que hoje se limita à chamada “parte comum”, deve identificar, de maneira clara, os principais conteúdos e competências de cada área, em dois níveis:  um nível  inicial ou geral, que em princípio todos os alunos deveriam poder seguir, e um nível mais amplo e aprofundado, para os que optem por esta área como itinerário de formação. O currículo a ser seguido pelos alunos será uma combinação entre um itinerário principal e formação inicial em outras áreas, além de cursos de inglês e opcionais.
  • O atual ENEM deixa de ser uma prova única, e se transforma em um conjunto de provas, uma mais geral, de competências em língua e raciocínio matemático, e outras específicas para cada um dos itinerários formativos
  • A formação técnica e profissional, que proporciona um título de técnico de nível médio, deve ser dada em escolas especializadas, que incorporem também as partes gerais de formação aos currículos técnicos, ou em parcerias entre escolas regulares e escolas ou centros de formação técnica.
  • Os principais cursos técnicos de nível médio deverão ser objeto de sistemas nacionais ou regionais de certificação profissional.

No modelo proposto, resumido no quadro acima, se supõe um curso médio de 2400 horas de duração, que é o que ainda predomina.  A ideia é que cada itinerário ocupe cerca de mil horas para todos os que os escolham, e 300 horas para os demais, sobrando anda 4o0 horas para cursos de inglês, educação física, o opcionais. Assim, por exemplo, só quem optar pela área de ciências físicas e matemáticas precisará cumprir o programa completo de matemática, para os demais a parte inicial de matemática deve ser suficiente. Os alunos que optem por trajetória técnica poderiam optar entre a formação inicial em ciências físicas e tecnologia ou ciências da saúde.

Estes números são somente para dar uma ideia de grandeza, já que o importante não é o número de horas em sala, e sim o desenvolvimento dos conhecimentos e competências  requeridos a serem avaliados ao final. Neste formato, todos os alunos passam pelas quatro áreas, e assim atendem assim aos requisitos comuns do ensino médio, mas com ênfases distintas.

Em relação ao tempo de aula, a lei deu ênfase ao ensino médio em tempo completo, mas não mencionou o grave problema do ensino médio noturno. Será importante, em uma nova política para o setor, procurar acabar definitivamente com o ensino médio noturno para jovens de menos de 18 anos, se necessário com  programas de bolsas de estudo para os que precisem trabalhar.  O desejável é que todos os estudantes possam passar cinco horas diárias na escola, o que daria um total de 3 mil horas em três anos, como está previsto na legislação; o tempo integral pode ser desejável em alguns casos, mas não precisa ser a meta para todos os estudantes.

Justificativas

 Prioridade para a diferenciação

 Existem duas maneiras principais de pensar o novo formato para o ensino médio. O primeiro consiste em colocar a ênfase na parte comum, ocupando o total do máximo de 1.600 horas previstas na legislação para esta parte, possivelmente nos dois primeiros anos, e deixando os itinerários formativos e a formação especializada para o último ano. O risco desta opção é que ela mantém sem maiores alterações o atual modelo, no qual um número significativo de estudantes abandonam o curso já no primeiro ano, pela dificuldade de seguir o currículo e a falta de interesse e motivação por este tipo de estudo.

A segunda opção  é colocar desde o início o centro de gravidade da educação média nos itinerários formativos, e não na parte comum, que deve ser proporcionada, tanto quanto possível, de forma efetivamente integrada e a serviço dos diferentes itinerários, e não de forma separada ou segmentada.

A lei de reforma do ensino médio estabelece que os itinerários formativos devem ser os mesmos da classificação de áreas de conhecimento utilizada tradicionalmente pelo Ministério da Educação (linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas). Existe, no entanto, amplo espaço para que isto seja reinterpretado, já que a lei também estabelece que “a organização das áreas e das respectivas competências e habilidades será feita de acordo com os critérios estabelecidos em cada sistema de ensino”, e abre a possibilidade de  “itinerário formativo integrado”, combinando os diferentes componentes da base nacional curricular.

Uma definição clara, apoiada na Base Nacional Curricular, dos principais itinerários formativos

Existe bastante consenso de que a classificação oficial das áreas de conhecimento adotada na lei não é uma boa maneira de organizar um currículo , porque amplia demais a área de linguagens (juntando o estudo das línguas naturais com a educação física e as linguagens de computação), deixa a matemática isolada, junta todas as ciências naturais em um só bloco e não distingue as ciências sociais das humanidades.  Nesta proposta, propomos uma classificação mais condizente com as práticas internacionais, que podem se constituir em alternativas efetivas de formação.

Neste modelo,as escolas se organizam, pedagogicamente, em quatro ou cinco coordenações:

I – Matemática, ciências físicas e tecnologia

II – Ciências Biológicas e da Saúde

III – Ciências Econômicas e sociais

IV – Português, Letras, artes e literatura

V – Técnica / profissional (quando houver)

  • Cada uma destas coordenações estrutura um programa de ensino de dois níveis,  um introdutório e outro aprofundado (correspondentes a um “minor” ou “major”). Estes programas podem ser estruturados por uma combinação de aulas mais formais e desenvolvimento de projetos, sobre temas específicos, que requeiram os conhecimentos e competências das diversas disciplinas. Os conteúdos não cognitivos, emocionais, trabalho em equipe, empreendedorismo, etc., devem ser dados no contexto dos projetos.
  • Cada estudante opta por uma trajetória aprofundada, e completa a primeira parte, introdutória.
  • Os estudantes que seguem as trajetórias profissionais completam somente a parte introdutória das demais áreas.

Esta distribuição de tempos não deve rígida, e as escolas podem abrir espaço para outras disciplinas eletivas, de cunho regional ou local, etc., cursos de formação profissional de curta duração , etc. Tanto quanto possível as partes introdutórias de matemática e português devem ser dadas de forma integrada e sob a orientação dos coordenadores das respectivas áreas.

A formação técnica profissional deve ser proporcionada por escolas especializadas, como as do Centro Paula Souza em São Paulo, dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, do Sistema S, e outras públicas e privadas criadas especificamente com este objetivo. As escolas públicas regulares devem oferecer opções dentro da formação geral, e quando for possível estabelecer acordos de cooperação para proporcionar alternativas efetivas de formação profissional.

A reformulação do ENEM e dos exames de certificação profissional

A reforma do ensino médio não tem como avançar sem uma transformação profunda do ENEM. Ao invés de um exame único, é necessário que exista uma prova geral de aptidão, tipo SAT, provas específicas por grandes áreas de conhecimento, e certificações profissionais diferenciadas.  Com isto, o ENEM deixará de ser uma prova única com múltiplas funções, e cada universidade ou programa público que necessite de seus dados deverá utiliza-los conforme sua conveniência.

O atual ENEM se transforma em um conjunto de provas separadas, de livre escolha:

1 – Uma prova de competências gerais em uso de linguagem e raciocínio matemático, para todos os alunos

2 – uma prova de competências em matemática, engenharia e tecnologia (major)

3 – uma prova de competências em ciências biológicas e da saúde (major)

4 – uma prova de competências em ciências econômicas e sociais (major)

5 – uma prova de competências em português, letras, artes e literatura (major)

Na área de formação técnica e profissional, o Ministério da Educação, em parceria com o Sistema S e outras entidades envolvidas com o ensino técnico, prepara um conjunto de certificações profissionais para as  áreas de formação de maior demanda ou consideraras mais críticas, evoluindo aos poucos para um sistema nacional de qualificações profissionais e técnicas (metade das matriculas atuais em cursos técnicos se concentram em  agentes comunitários de saúde, analises clínicas, citopatologia, controle ambiental, enfermagem, equipamentos biomédicos, estética e farmácia). Os eixos tecnológicos utilizados no catálogo nacional de cursos técnicos mantido pelo MEC não são adequados para isto, porque reúnem profissões que podem ser muito diferentes.

 

 

 

Ensino Médio: Impasses e Dilemas

Ensino Médio – Impasses e Dilemas é um livro recém editado por Candido Alberto Gomes, Ivar César Oliveira de Vasconcelos Silvia e Regina dos Santos Coelho, pela Sociedade Brasileira de Educação Comparada, cuja versão na Web está disponível para os interessados.

Como dizem os autores, “esta obra, escrita a muitas mãos, não é nem pode ser exaustiva. Por isso, chamamos também mãos portuguesas para nos ajudarem com um fio no labirinto. Certa vez, verificamos que o roteiro do drama é bem semelhante tanto lá quanto cá, como não poderia deixar de ser numa crise transcendente aos países.

Assim, começamos propositivamente com a participação de Simon Schwartzman. Em prosseguimento, Candido Gomes, Ivar Vasconcelos e Silvia Coelho, estes organizadores, analisamos a pesquisa no Brasil, para verificar o ensino médio, cujas transformações poderiam levá-lo de patinho feio a cisne. Entretanto, para discutir tanto as propostas de Schwartzman como o balanço da situação brasileira, é preciso ler a história, para atar as pontas do passado e do presente, a anunciar o futuro. Por isso, registremos bem a trajetória do ensino médio e a da educação profissional, respectivamente analisadas por Célio da Cunha e Francisco Cordão.

Segue-se o capítulo de Fernanda Santos, Daniel L. Silva e Ranilce Guimarães-Iosif, com foco no Distrito Federal. Ele nos remete às questões de uma Unidade Federativa, constitucionalmente responsável pelo ensino médio e ensino técnico. Esta é, pois, uma ordem de capítulos mais psicológica do que lógica, podendo-se até percorrê-la do fim para o princípio.

Boa leitura!

 

A regulamentação da educação e do mercado de trabalho de nível superior no Brasil

 

Por solicitação do IPEA, para o projeto “Desafios da Nação”, preparei um artigo sobre as Perspectivas da Educação Superior no Brasil, que acaba de ser publicado. Dentre os diversos assuntos tratados, destaco abaixo a questão do sistema de regulamentação da educação superior e do mercado de trabalho, e seus efeitos perversos.

O Brasil apresenta um paradoxo, que é a existência de um sistema extremamente complexo e caro de regulação da educação superior e, ao mesmo tempo, o quase total laissez faire que impera na prática. A regulação dos cursos de graduação se dá por meio do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) que é administrado pelo Inep. O sistema é formado por uma série de indicadores, incluindo o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade); as avaliações feitas pelos estudantes; as características dos cursos, como número de professores doutores e em tempo integral; e outros, que são combinados para constituir o “conceito preliminar do curso”, em uma escala de cinco pontos. Para a autorização e o credenciamento dos cursos das instituições federais e privadas, feita pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres)  o Inep mantém ainda um sistema de avaliações in loco, que envolve centenas de consultores que viajam pelo país munidos de formulários detalhados que precisam ser preenchidos; e cabe aos estados e municípios avaliar as instituições públicas de suas alçadas.

Além desse sistema, o Brasil possui um grande número de profissões legalmente regulamentadas e conselhos profissionais que zelam pelo mercado de trabalho de seus filiados e, em alguns casos, como na medicina e no direito, participam diretamente dos processos de autorização e credenciamento de cursos em suas áreas, inclusive de universidades que são constitucionalmente autônomas.

O resultado de todo esse sistema, que consome recursos consideráveis tanto do governo quanto das instituições e estudantes avaliados, deveria ser a garantia de um padrão elevado de qualidade, mas não há nenhuma evidência de que isso de fato ocorra. Uma das razões é que os sistemas de avaliação, incluindo o Enade, não trabalham com padrões ou referências explícitas de qualidade, e se limitam a distribuir todos os seus indicadores em curvas de Gauss que só conseguem dizer quais cursos estão melhores ou piores dentro de seu grupo, mas não se eles têm qualidade aceitável ou não. Além disso, não existem mecanismos que induzam as instituições mal avaliadas a melhorar seu desempenho. Em alguns casos extremos, o Ministério da Educação pode interferir e até impedir o funcionamento de instituições privadas, mas não tem esse poder em relação a universidades públicas criadas por lei. Nessas avaliações, instituições públicas que contam com mais recursos e recrutam alunos de níveis socioeconômicos mais elevados geralmente se saem melhor, e por isso escapam sempre das eventuais sanções.

Além de não produzir os resultados esperados em termos de melhoria de qualidade, o atual sistema de avaliação tem dois efeitos perversos. O primeiro é que, sobretudo por meio do Enade, impõe a todas as instituições um modelo único, dificultando a diversificação de propostas pedagógicas e formativas; e o segundo é que estimula vários comportamentos oportunistas de “gaming”, em que instituições privadas, em busca de conceitos mais altos que possam utilizar em seu marketing, procuram, por exemplo, selecionar os estudantes para fazer o Enade, ou criam cursos de mestrado e contratam professores com doutorado somente para ganhar mais pontos nas avaliações.

A situação da regulamentação do mercado de trabalho, raramente discutida, é também preocupante, e precisa ser alterada. As dezenas de profissões regulamentadas por lei no Brasil são uma anomalia cuja função quase exclusiva é cuidar da reserva de mercado de seus filiados. O normal seria que este controle só existisse para profissões que colocam em risco a vida ou o patrimônio das pessoas, como são os casos típicos da medicina, da engenharia e do direito. Associações profissionais desempenham função importante quando zelam pela qualidade dos graduados, através de sistemas de certificação, e quando exercem um papel efetivo de zelar pela ética profissional de seus filiados. Mas elas se tornam disfuncionais quando operam para fechar o mercado de trabalho, cerceando a atividade profissional em áreas que não deveriam ser regulamentadas, e interferindo na criação e expansão de cursos para reduzir a competição.

O texto em separado está disponível para leitura ou download aqui.

Francisco Gaetani: a governabilidade da administração em jogo

 

Reproduzo o importante artigo de Francisco Gaetani, diretor da Escola Nacional de Administração Pública, publicado no Valor Econômico de 20/4/2018,, sobre a importância da  PL 7748/2017, coordenada pelo Senador Antônio Anastasia, e que vem sido mal interpretada pela imprensa:

A governabilidade da administração em jogo

Francisco Gaetani (*)

Se os candidatos à Presidência e aos governos estaduais soubessem o que os aguarda em janeiro de 2019 pensariam duas vezes antes de se apresentar nas eleições. Os eleitos precisarão construir maiorias políticas no Legislativo para governar. Disso todos sabem. O que não sabem é que não encontrarão na sociedade e no serviço público pessoas dispostas a assumir os riscos associados ao exercício das atividades executivas. O motivo é simples: a percepção dominante é a de que não vale a pena. Uma eleição não tem poder de reparar essa situação.

O medo comanda hoje a administração pública. Até 2014, discutia-se a judicialização das políticas públicas. Um exemplo era a importação de remédios caros por decisão judicial. Evoluiu-se rapidamente para a criminalização da administração, como o inacabado e controverso debate em torno da política fiscal demonstrou. Finalmente, chegamos à paralisia. Afinal… “é o meu CPF que está em jogo”. Ninguém quer ficar sujeito a interpretações de órgãos de controle que, em muitos casos, não dominam plenamente as complexidades do assunto e partem do princípio de que o funcionário é suspeito: in dubio pro societate.

Inúmeros funcionários hoje respondem a processos decorrentes de acórdãos do TCU. Dirigentes de estatais já negociam “seguros” para ocupar suas funções. Pulamos de um extremo de descontrole e leniência para outro de regramentos e controles sem necessária vinculação com a natureza da atividade da organização – seja ela um banco público, um hospital universitário ou uma empresa de energia.

O setor privado encontra-se acuado, assustado e intimidado por burocracias opacas com poder de influenciar decisivamente seus negócios. Estão todos sob suspeita de práticas ilícitas cuja dosimetria nesta altura já não importa mais, independentemente das previsões legais. Conflitos tributários, arranjos regulatórios imperfeitos, práticas de governança corporativa, gestão de riscos reputacionais e novas realidades associadas ao combate à corrupção foram incorporados ao cálculo empresarial.

Ironicamente, o mundo jurídico tornou-se a principal fonte de insegurança jurídica e responsável por custos de transação imprevisíveis e incalculáveis. Nas esferas pública e privada o debate sobre eficiência e qualidade do gasto desapareceu. A temática do combate à corrupção eclipsou todos as demais. É como se o país precisasse parar para resolver o problema da corrupção de uma vez por todas.

Focar na paralisia da administração, sem observar as distorções que o excesso do controle tem gerado, tornou-se um lugar comum. Dados de uma pesquisa realizada pela Enap mostram que os gestores usam suas capacidades não para prover informações e evidências sobre a política em que trabalham, mas para responder a órgãos de controle e demandas de auditoria.

Há um problema de assimetria de capacidades decorrente de um sequenciamento desbalanceado. A profissionalização do MPF e do TCU vem ocorrendo consistentemente desde a redemocratização. A organização da CGU acelerou-se após 2003. Os ministérios das áreas econômica e jurídica vêm se estruturando desde a estabilização macroeconômica. Os ministérios associados ao gasto, à legalidade e ao controle possuem quadros técnicos recrutados por concursos públicos, carreiras estruturadas e salários competitivos. Áreas como Saúde, Educação, Transportes e Minas e Energia enfrentam graves déficits de capacidade, em especial de pessoal.

O corporativismo dos estamentos burocráticos mostrou as imperfeições da nossa democracia. Não possuímos um regime de “checks and balances”. O Judiciário, o TCU e o MPF são irresponsabilizáveis, salvo por seus pares, e, mesmo assim, as evidências recentes atestam a dificuldade de atuação do CNJ e CNMP.

O TCU tem demonstrado capacidade de exercer o controle externo de forma construtiva e efetiva, como tem ocorrido nas esferas de infraestrutura, governança e desenvolvimento regional. A atuação do MPF no combate à corrupção nos anos recentes vem dando impulso decisivo à moralização da Administração Pública. Estes avanços não podem ser comprometidos por excessos e distorções que comprometam o funcionamento do Estado. A presunção de culpa não se coaduna com o regime democrático e não pode se transformar em uma indústria que se auto-alimenta.

O PL nº 7448/2017, aprovado pelo Congresso e aguardando a sanção presidencial, dá um passo importante para recuperar o equilíbrio. A proposta busca trazer racionalidade às decisões administrativas, judiciais e de órgãos de controle, assegurando que as consequências práticas das decisões sejam levadas em conta, e que medidas para a mitigação de prejuízos à sociedade sejam implementadas sempre que necessário. A aplicação do direito não pode ocorrer de forma descolada da realidade: precisa levar em consideração os diversos impactos gerados pelas decisões, considerando o bem-estar da sociedade e assegurando uma previsibilidade mínima aos gestores públicos.

A governabilidade administrativa não depende apenas do Executivo. Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Tribunal de Contas são sócios da governabilidade do país. A guerra de facções corporativas, a disputa por recursos e a concorrência pelo poder precisam ser contidas pelas instituições do país. O corporativismo, o voluntarismo, o messianismo e o punitivismo precisam ser enfrentados para o país caminhar na direção de uma nova normalidade, aderente às práticas do regime democrático, sem prejuízo do combate à corrupção e da modernização da gestão pública.

Os problemas estruturais do país – integração na economia global, redução das desigualdades, aumento da produtividade e da competitividade, mudança climática e desenvolvimento regional, dentre outros – estão se agravando. O PL nº 7.448/2017 é um avanço na contenção de excessos e preservação da capacidade de gestão. Esta iniciativa é vital para o país sair do encurralamento paralisante.


(*) Francisco Gaetani é presidente da Escola Nacional de Administração Pública e ex-Secretário-Executivo dos Ministérios do Planejamento e do Meio Ambiente. É doutor pela London School of Economics e professor da EBAPE/FGV

 

Claudio de Moura Castro: Ciladas, burocracia e avanços no Ensino Superior

 

Nas suas funções de cuidar do ensino superior, o MEC instalou um labirinto de exigências burocráticas. Faz muito tempo, critica-se a corrida de obstáculos que foi criada.  De fato, falta demonstrar que montanha de exigências leve ao resultado esperado: a qualidade. Além de complicar a vida de todos e exigir um exército de funcionários, é um gentil convite para a pequena corrupção. Está na hora de arejar um pouco esta tutela infantilizante.

Em uma economia de mercado, como é a nossa (em que pesem suas imperfeições), cabe ao Estado monitorar e incentivar a qualidade da educação privada oferecida e garantir um amplo fluxo de informações, essencial para quem precisa tomar decisões. No caso, são as próprias instituições, os pais e os alunos.

A existência de demanda, ou seja, um fluxo aceitável de candidatos aos cursos, não é assunto do Estado, mas de cada operador individual, responsável por confrontar os riscos com os resultados pretendidos. Se há emprego para quem se forma é uma indagação que cabe a quem pretende se matricular nos cursos, não do Estado. Isso tudo não é uma invenção apócrifa mas parte das regras do jogo de um país que optou por uma economia de mercado.

Nos países escandinavos, havia politicas denumerus clausus, ou seja, o governo só autorizava as vagas se as suas projeções indicassem uma oferta de empregos suficiente. Mas tais políticas não deram certo e foram abandonadas, já faz meio século. Hoje, pelo menos no ensino privado, as regras são as do mercado.

O setor público precisa de outro conjunto de regras. Mas embora se deva incluir o interesse social e os projetos econômicos, o mercado não pode ser totalmente ignorado, pois não faz sentido gastar recursos do contribuinte em cursos cujos graduados não encontram empregos comensuráveis com o esforço. Ou que não tenham candidatos à matrícula.

Houve um melhor entendimento desses assuntos, sobretudo, no período do Ministro Paulo Renato de Souza. A tomar posse, descobriu que, até para reduzir vagas o MEC exigia autorização. Naquele momento, havia uma tal de “demanda social”, um termo espúrio e sem sentido na teoria econômica. De fato, a demanda é claramente definida como a função que associa o preço a pagar com o número de candidatos que se apresentam aos vestibulares. A palavra “social” nada esclarece e tudo confunde.

No fundo, prevalecia um sistema grotesco e vulnerável aos lobbies dos que já estavam operando no local onde alguém ousava querer abrir um curso. Ao MEC cabia exarar a sua sapiência para decretar se em Cabrobó havia mercado para mais um curso de, digamos, Fisioterapia. Do ponto de vista metodológico, essa estimativa cai em um poço sem fundo, pois mais da metade dos graduados de ensino superior não exerce a profissão, o que é normal e esperado. Sendo assim, como saber quantos fisioterapistas iriam ser vendedores de terrenos? Era o Estado Babá em sua plenitude. Em boa hora, a “demanda social” foi defenestrada.

Mas o conceito arcaico retornou, alguns anos depois. Demos um passo atrás. Em particular, na Medicina. Os grupos de interesse denunciam a má qualidade dos cursos nesta profissão. Mais do que legítimo, já que estamos diante dos riscos de erros que comprometem a saúde e a vida humana. Não obstante, a má qualidade refere-se aos cursos que estão operando com foros de legalidade. Impedir que outros novos sejam criados não mitiga o grave problema das deficiências dos existentes. Pelo contrário, protege-os de uma nova concorrência.  Seria muito mais razoável levantar a barra para todos, novos e velhos. Se alguém apresenta um projeto convincente, não importa onde seja, deve ser autorizado. E se algum curso existente não atinge o limiar de qualidade estipulado, que seja fechado. Os exames seriados que estão  sendo construídos fazem muito mais sentido, à exemplo do que se começa a fazer em São Paulo.

Pela velha regra que foi exumada, as novas escolas de Medicina são autorizadas nos municípios periféricos, mas não nas capitais, que supostamente estariam saturadas pela presença de outras escolas. Resulta disso uma grande procissão de alunos e professores viajando para o município vizinho. A evidência de que isso promove a interiorização ainda não foi encontrada.

O ENADE faz do Brasil o único país do mundo a medir o que aprenderam os alunos ao se diplomar. Há quem levante dúvidas quanto à sua capacidade de medir a competência dos graduados. Nada mais apropriado do que promover discussões que levem ao aperfeiçoamento do ENADE.

Contudo, na maioria das áreas, não podemos descartar ex abruptoa confiabilidade destas provas. Em que pesem equívocos e imperfeições (e frequentemente, vieses ideológicos), são provas feitas por professores reconhecidos e de sólido currículo, além de receberem o apoio de especialistas em testes. São exames expostos ao escrutínio de todos. Em contraste, um aluno se forma quando é aprovado em um conjunto de provas cuja qualidade técnica e critérios de correção não são conhecidos, nem mesmo dos chefes de departamento. Na prática, cada disciplina é uma caixa negra. E o somatório das notas de cada caixa negra conduz  à concessão de um diploma, validado pelo MEC, sem qualquer cuidado adicional. Comparado com o ENADE, parece bem mais precário.

Sendo assim, por que não dar peso muito maior ao ENADE? Para quê escarafunchar tanto os processos, se a medida do produto é confiável? Mal comparando, o Guide Michelin, avalia a gastronomia oferecida pelos restaurantes, ignorando a marca do fogão e os diplomas do Chef de Cuisine. Por que não fazer o mesmo?

Ao longo das décadas, colecionou-se um amontoado de critérios para a abertura de cursos, alguns tolos, como medir as salas de aula ou exigir cópias certificadas de contratos de locação de imóveis. Na maioria dos casos, criou-se uma corrida de obstáculos, dificultando a vida de faculdades pequenas que não têm os burocratas especializados em satisfazer as bobices do MEC. Além disso, alimenta uma indústria de consultores especializados em dar à papelada a cara que o MEC quer ver, além de empurrar o processo de uma escrivaninha para a outra. Conta o folclore que alguns funcionários do MEC, ao ler o projeto do curso, já sabem de qual consultor foi comprado.

Supostamente, isso tudo garantiria a qualidade. Mas não é bem assim. Usando a matriz do ENADE de 2009, com dois colegas, verificamos que infraestrutura tem correlação negativa com o ENADE nas instituições públicas. E nas privadas é desprezível. Ou seja, são inúteis os quilos e quilos de papel dedicados a certificar-se de que os tijolos e tralhas se conformam com as normas oficiais, pois nada dizem da qualidade do ensino.

Esse é o lado da chatice burocrática. Nada se fica sabendo de importante, nada se exige de relevante, apenas perde-se tempo. Não obstante, há outros critérios que impuseram uma distorção na montagem e operação dos cursos.

O equívoco mais egrégio é o tratamento das áreas profissionais idêntico ao das áreas científicas.  Com efeito, julgam-se todos os cursos pela quantidade de diplomas de mestrado e doutorado dos professores. Ótimo na Física. Mas e na Educação Física? De fato, tratam-se as áreas profissionais igualzinho às acadêmicas. Os professores das Engenharias são julgados pelos diplomas e pela quantidade de paperse não pela sua excelência na profissão. Sendo assim, para melhorar as notas perante o MEC, vale a pena defenestrar professores com décadas de vivência no mundo real e contratar jovens doutores que jamais entraram em uma fábrica ou canteiro de obra. Não custa lembrar, só ensina a prática profissional quem a tem. Nos cursos de Administração, se nossos mais celebrados executivos virassem professores, fariam baixar a nota do curso junto ao MEC, uma vez que não têm Ph.D. E não é diferente nas demais áreas profissionais.

Por que caminhamos nesta direção? As razões jazem na concepção das novas universidades públicas que se gestaram a partir da década de sessenta. Como orientação para elas, buscou-se o modelo pioneiro de Humboldt que propôs a fórmula da universidade de pesquisa.  Fundia-se nela o ensino, a pesquisa e a extensão. Belo e inspirado modelo.  O erro é que foi erigido como o único parâmetro para modelar todo o ensino superior. Chegam os visitadores do MEC na modesta faculdade e logo querem saber das pesquisas – cuja existência é duvidosa até na prestigiosa universidade de onde vêm.

Mas já que estamos discutindo a importação de soluções, é preciso entender que a universidade Humboldtiana não regeu todo o ensino superior dos países que nos serviram de modelo. Mesmo na Alemanha, a universidade de ensino integrado à pesquisa, por séculos, foi de implementação muito restrita. Na França, as Grandes Écoles, matriz produtora das elites do país, por muito tempo proibiram a pesquisa, por se julgar que atrapalhavam o ensino. Nos Estados Unidos, os prestigiosos Liberal Arts Colleges nem têm pós-graduação e nem pesquisa. Das mil universidades americanas, as classificadas como de pesquisa pela Carnegie Commission, andam pela casa da centena. O milhar de colleges (de quatro anos), não se propõem a fazer pesquisa. Na maioria dos community colleges, não são sequer considerados para professores os candidatos com Ph.D., pois julga-se que não têm paciência para lidar com a clientela que acorre a eles. Obviamente, nada impede que alguns professores tenham interesse e façam pesquisas. Mas estas instituições não são modeladas pelo imperativo das publicações.

Dentre nós, são cerca de duzentas instituições classificadas como Universidades. Pelos meus cálculos – já antigos – apenas vinte produziam pelo menos uma publicação anual por pesquisador. Em contraste, são da ordem de dois mil as faculdades e centros universitários, onde a pesquisa é inviável na avassaladora maioria. O mais que se pode fazer é fingir que existe.

Em outras palavras, o modelo Humboldt, de aplicação restrita nos países avançados, foi alçado à posição de ser a única opção tolerável no Brasil. Na sua aplicação, não se valoriza a sala de aula e se choraminga pela pesquisa que não se materializa.

Novamente, usando a mesma matriz de dados do ENADE 2009, associamos os resultados dos testes com a proporção de Ph.Ds, de mestres e de tempo integral dentre as instituições privadas. Surpresa! A correlação não é estaticamente diferente de zero. Ou seja, ter mais doutores iluminados não melhora a qualidade do ensino. O mesmo com mestres ou com professores de tempo integral. Como sabe qualquer bom diretor de escola, ter bons professores é parte do segredo. E nossos números mostram que é irrelevante terem eles muitos ou poucos diplomas.

Note-se que, pelas regras da Dedicação Exclusiva, os professores das Universidades Federais não podem ter experiência nas fábricas. Menos mal que, neste particular, há amplo descumprimento!

Aleluia! Em uma portaria recente (Instrumento de Avaliação de Cursos de Graduação/INEP), o MEC passou a considerar também a experiência profissional dos professores – em paralelo aos diplomas. Faz mais de trinta anos que insisto nisso. Mas não acredito que a mudança tenha sido influenciada pelo meu patético espernear. Importa a retificação de um cacoete antigo.

Neste mesmo documento, o MEC passa a reconhecer que livros e periódicos em formato digital são parte integrante e igualmente valiosa de uma biblioteca universitária. Por muitos anos, ouviam-se casos de bibliotecas alugadas, apenas para a liturgia das visitas iniciais do MEC. Terminada a visita um caminhão levava os livros – para o próximo curso a ser visitado. Vacinado contra estas malandragens, além de valorizar agora o acervo eletrônico, a nova e legítima preocupação é saber se a assinatura dos periódicos digitais tem uma duração aceitável ou vai evaporar-se no dia seguinte. Pela segunda vez, aleluia!

Uma reforma em profundidade no MEC é missão para décadas. Mas, pouco a pouco, alguns reparos vão aparecendo, como os dois acima citados. Festejemos.

João Batista Araujo e Oliveira: Os Presidenciáveis e a Educação

 

Reproduzo abaixo o artigo publicado hoje no O Estado de São Paulo.

Os Presidenciáveis e a Educação

João Batista Araujo e Oliveira (*)

A educação nunca foi e possivelmente tampouco será tema importante ou decisivo na próxima campanha presidencial. Mas essa pode ser uma oportunidade para se iniciar um debate qualificado sobre o tema.

Há três grandes conjuntos de questões que devem ser considerados na pauta dos candidatos. O primeiro refere-se ao paradoxo da enorme expansão da oferta de vagas nas escolas – e do aumento da taxa de escolaridade da população nos últimos 30 anos – e seu efeito nulo na produtividade. Mas não bastará reconhecer que a educação não está contribuindo para aumentar a produtividade do País. Os candidatos, independentemente de seus partidos, precisam reconhecer que as políticas educacionais dos últimos 30 anos – e o fato de os recursos per capita terem mais que dobrado no período – pouco ou nada contribuíram para melhorar esse impacto.

Essa discussão poderia ter duas importantes derivadas. A primeira vai além da educação e permitiria entender por que a produtividade não aumenta no Brasil. Os mesmos fatores que impedem o aumento da produtividade, em especial o protecionismo e a falta de competição, também impedem a melhoria da qualidade da educação. A segunda seria o exame do tipo de escola e de currículo de que um país precisa para impulsionar sua economia e, de modo particular, o papel do ensino médio técnico e a participação do setor produtivo, especialmente do Sistema S. Isso exporia as fragilidades da Base Nacional Curricular Comum e da atropelada lei do ensino médio, que carecem de profundos ajustes.

Se os candidatos reconhecerem esses dois grandes problemas, já terão dado um grande passo para elevar o nível do debate. Deve-se decidir se a educação continuará sendo tratada como gasto, como “política social” de caráter tipicamente compensatório e cunho populista, ou como parte central da política econômica focada na formação do capital humano. A educação continuará a ser tratada em foros corporativistas, dominados por grupos ideológicos, ou será tratada em foros legítimos, qualificados e adequados, juntamente com outros temas cruciais para o desenvolvimento do País, como ciência, tecnologia e inovação? A posição dos candidatos sobre esses temas poderá dar aos eleitores uma ideia concreta do seu nível de seriedade e compromisso com o futuro do País.

O segundo conjunto de questões refere-se ao equilíbrio fiscal do País e suas consequências para o financiamento da educação. O setor público, em especial Estados e municípios, estão à beira da falência. Na área da educação, os gastos vêm aumentando acentuadamente, apesar da redução demográfica. O aumento de gastos é provocado, em grande parte, por políticas capitaneadas pelo governo federal, notadamente com a instituição de mecanismos como o Plano Nacional de Educação e a Lei do Piso Salarial. A situação é agravada pelo entendimento – ou falta dele pelo Ministério Público – de que é insano obrigar Estados e municípios a efetivar mais professores em tempos de vertiginosa redução demográfica. Essa discussão levará inevitavelmente a questões relacionadas ao pacto federativo e vai determinar se o candidato está preparado para mudar os rumos da educação ou vai manter a retórica de que “nunca faltarão recursos para boas ideias e bons projetos”.

Já o terceiro conjunto de questões diz respeito ao modelo fácil da expansão: mais escolas, mais vagas, mais bolsas, mais professores, mais salários, mais investimentos. Nada disso resultou em qualidade e eficiência. Felizmente, não há mais dinheiro para continuar essa gastança ineficaz. Os futuros governantes vão fazer mais do mesmo? Darão continuidade a políticas que comprovadamente não têm funcionado há décadas? Continuarão a ignorar as evidências científicas e as melhores práticas, cultivando extensas plantações de jabuticaba na paisagem educacional? Vão criar novos e inócuos programas, sempre lançados com pompa e circunstância? Vão promover ridículos “choques de gestão”? Afinal, o que os candidatos sabem sobre os reais problemas da educação? O que pretendem fazer para mudar o vetor atual? Ou, ao menos, por onde pretendem começar?

As propostas de cada candidato devem ser calibradas por uma análise do seu potencial impacto na qualidade, eficiência e equidade da educação. Aqui entram também as propostas para lidar com as questões da pobreza – principal determinante do sucesso escolar. Tudo isso é importante, mas a conta precisa fechar.

Nas últimas décadas houve importantes avanços tanto no campo da economia quanto no da educação. Hoje há conhecimentos e instrumentos que permitem lidar com gigantescas crises financeiras, como a que resultou da “nova matriz econômica”. Na área da educação, também existem conhecimentos científicos e experiências comprovadas que nos permitiriam dar saltos qualitativos em tempo relativamente reduzido. Das dezenas de reformas educativas de vulto empreendidas nos últimos 20 anos em todo o mundo, pelo menos uma boa dúzia levaram a modelos e ensinamentos que, conduzidos competente e adequadamente, poderiam melhorar a qualidade do nosso sistema educacional.

Programas de partidos políticos raramente serviram de critério para orientar votos e tanto no plano federal quanto no estadual e municipal é impossível identificar uma identidade partidária nas políticas educacionais. Ao contrário, o que se nota é um forte consenso em torno de equivocadas mesmices que, apesar da grandiloquência dos discursos e dos aplausos da plateia, não produziram frutos nem contribuíram sequer para dar início ao estabelecimento das bases de um sistema educativo de qualidade. O início da mudança começa com o debate, mas este precisa situar-se num patamar que só estadistas, estimulados por debatedores competentes, incisivos e bem preparados, conseguirão promover e sustentar.


(*) Presidente do Instituto Alfa e Beto

Chico Soares: Contribuição para o debate sobre competências

Contribuição para o debate sobre competências

CHICOsoares (*)

  1. Caveat

Mineiro e escaldado, entro no debate sobre competências com uma nota de precaução. Andrei Sakharov, cientista e prêmio Nobel da Paz, disse certa vez que ideias transformadoras aparecem apenas através de debates, nos quais há longa sequência de troca de argumentos, e nos quais seus participantes expressam tanto ideias já solidamente justificadas, como também dúvidas, perguntas e propostas de soluções ainda em estágio inicial de formulação.  Sei que isso é muito difícil de acontecer hoje no Brasil, um país dividido em tudo, mas assumo que isso é verdade nessa discussão.

  1. Este debate é necessário

O tema da competência é importante. Afinal o uso desta opção de organização do trabalho pedagógico é uma das respostas possíveis para o problema dos conhecimentos inertes, usualmente associados com o texto The aims of Education de Alfred Whitehead. O autor diz que a inclusão de itens no currículo escolar deve ser baseada na sua relevância para a vida dos estudantes.  Crachay e Marcoux, em um texto construído em uma tradição muito crítica ao uso de competências na educação, reconhecem a importância nessa dimensão.

  1. Polissemia

Não há na literatura uma definição consensual do conceito de competência. Diferentes atores usam este termo com sentidos similares, mas cujas diferenças tem impactos pedagógicos. O conceito adotado mais amplamente no Brasil não é o mesmo adotado pelo PISA e OCDE, a definição mais influente no debate mundial educacional

  1. Definição – OCDE

Para a organização do PISA, a OCDE organizou um grupo de trabalho: DeSeCo – Defining and Selecting Key Competencies. O artigo de Weinert (2001) conclui que “não existe uma definição única do confeito de competência aceita amplamente nem uma teoria latente”. Assim sua recomendação, aceita por muitos, foi adotar uma definição funcional do conceito. Para ele,

“Competência é a capacidade atender com êxito demandas complexas em um contexto particular, através da mobilização de pré-requisitos psicossociais (incluindo aspectos cognitivos e não-cognitivos. Esta definição foi também adotada pela União Europeia que define competência como uma combinação de conhecimentos, habilidades (skills) e atitudes exigidas pelo contexto”.

Esta definição foi recentemente reafirmada pela OCDE no texto The Future of Education and Skills – The Future we want.

Há três polos nessa definição: contexto específico, mobilização e diversidade de recursos: conhecimentos, habilidades e atitudes. Nessa definição, o foco principal do conceito está nas ações, escolhas e maneira de se comportar com que cada pessoa enfrenta os problemas que a vida lhe põe.

  1. Nomenclatura

Nesta abordagem, as palavras “skill”e “competence”, traduzidos usualmente para o português do Brasil como habilidade e competências, referem-se a conceitos diferentes, ainda que associados. O relatório do DeSeCo é enfático ao afirmar que “nem os componentes cognitivos nem os aspectos motivacionais isoladamente constituem uma competência. Por exemplo, habilidades (skills) de pensamento crítico, habilidades analíticas, capacidade de solução de problemas gerais, ou persistência não são competências, porque não descrevem uma resposta individual completa a uma demanda específica.Constituem, no entanto, elementos valiosos, se não indispensáveis de competência de ação.” A ideia de que o conceito de competência está associado à capacidade de resolver problemas específicos e complexos, como são os da vida cotidiana, tem consequências tanto na organização do ensino como da avaliação

  1. Avaliação de Competências

O PISA é organizado por competências e, por isso, a OECD desenvolveu documentos conceituais que descrevem as competências que avalia: Leitura, Matemática e Ciências. Importante para o debate brasileiro notar que o PISA não descreve estas competências como um conjunto de habilidades.  Os itens incluídos nos testes do PISA são escolhidos analisando a relevância da tarefa proposta e sua adequação para expressar a competência a ser testada. Aceita a sua relevância, a etapa seguinte do processo de produção do item envolve uma análise detalhada do item para a identificação dos conhecimentos e habilidades necessários para que os estudantes produzam a resposta correta.  Ou seja, o PISA trabalha indo do conceito de competência para o de habilidades. A discussão no Brasil se organiza da forma oposta. Com frequência a instrução para a construção do item é o texto da habilidade.

  1. Ensino por Competências

A opção por organizar por competências tem claro impacto na organização do ensino. Como consequência lógica da sua definição, o ensino organizado por competências deve ser organizado através da exposição dos estudantes a situações reais que exigem determinados conhecimentos, habilidades, atitudes e o discernimento possibilidade pelos valores.  Isso foi formalizado com a abordagem pedagógica denominada “situated learning theory”, introduzida por Lave e Wenger (1991),  que preconiza que qualquer conhecimento é criado apenas pela participação dos estudantes em ações concretas em diferentes contextos.

  1. Vocabulário comum

Na forma atual do debate, o termo competência é usado por diferentes atores e textos legais e normativos com sentidos diferentes. Como argumentado acima, a posição da OEDC não pode ser usada para justificar todas as posições no nosso debate, já que a definição daquela organização se baseia em pontos não considerados por muitos dos atores brasileiros:  a essencialidade de problemas concretos e a impossibilidade de reduzir a competência a seus componentes e a ênfase apenas em aspectos cognitivos.  Algum acordo conceitual é necessário.

  1. Alternativas conceituais

Além da abordagem por competência, pode-se considerar a alternativa de organização por objetivos de aprendizagem, usada nas experiências americanas, ou aquela defendida por  Michael Young, um sociólogo do currículo inglês que responde à questão: ‘Qual é o conhecimento a que os alunos têm direito?’ sugerindo uma organização disciplinar para as recomendações curriculares comuns de um país. Usa para apoiar sua posição o conceito de conhecimento poderoso.  Naturalmente todas estas opções se interconectam e não devem ser confundidas com opções sobre a pedagogia – a forma de ensinar – apropriada. O estudante do século 21 pede pedagogias ativas como: debates estruturados, discussões mediadas, discussão de eventos atuais, jogos cooperativos, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem pela participação em serviços

  1. Continuar o debate

Pessoalmente entendo que a solução para o problema dos conhecimentos inertes deve ser construída com a contribuição da noção de competência. No entanto, isso não resolve o problema de como organizar as recomendações curriculares comuns para os sistemas de ensino. Nos próximos meses é importante concentrar o debate na reorganização do ensino médio, considerando o que a lei que já estabelece.

Há uma parte obrigatória: Língua Portuguesa, Matemática e Língua estrangeira, constituída daquilo que todos os estudantes devem saber. Esta parte é continuação do Ensino Fundamental II, onde a organização por competências tem justificativas mais fortes, como mostra a experiência e os documentos do PISA, que é aplicado em estudantes, idealmente, no fim da educação obrigatória (que na maioria dos países é aos 15 ou 16 anos). A terceira parte do currículo do ensino médio preconizado pela lei consiste de uma parte específica – os itinerários propedêuticos e técnicos.  Nesta parte o estudante deve ser exposto às formas pelas quais o conhecimento é produzido e transferido, e não somente como é usado. Por isso, nesta etapa é fundamental a possibilidade de opção pessoal, diferentemente do Ensino Fundamental II, que deve ter muito claramente um núcleo comum.  Cada uma destas três etapas exige uma pedagogia específica.

  1. Coda

Termino reafirmando meu caveat inicial, desta vez com uma licença poética em um verso de Raul Seixas.  “E para aquele que mostrar que eu estou errado, eu tiro o meu chapéu”

  1. Referências

Crahay, M., & Marcoux, G. (2016). “Construir e mobilizar conhecimentos numa relação crítica com os saberes”. Cadernos de Pesquisa, 46(159), 260-273.

Figel, J. (2007). Key competences for lifelong learning-European reference framework. Luxembourg: Office for Official Publications of the European Communities. Retrieved May, 25, 2009.

Lave, J., & Wenger, E. (1991). Situated learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge University Press.

OECD.  2006. PISA 2006 Technical Report.

OECD. 2018. The Future of Education and Skills – The Future we want.

Weinert, F. E. (2001).” Concept of competence: A conceptual clarification”. In Rychen, D. S. E., & Salganik, L. H. E. (2001). Defining and selecting key competencies (pp. 45- 65) Gottingen, Germany: Hogrefe & Huber

Whitehead, A. N. (1959). The aims of education. Daedalus, 88(1), 192-205.

Young, M. (2014). “Superando a crise na teoria do currículo: uma abordagem baseada no conhecimento”. Cadernos Cenpec| Nova série, 3(2).


(*) José Francisco Soares, matemático e estatístico, é professor aposentado da UFMG, membro do Conselho Nacional de Educação e ex-presidente do INEP.

Chico Soares: Contribuição para o debate sobre competências

 

Contribuição para o debate sobre competências

CHICOsoares (*)

  1. Caveat

Mineiro e escaldado, entro no debate sobre competências com uma nota de precaução. Andrei Sakharov, cientista e prêmio Nobel da Paz, disse certa vez que ideias transformadoras aparecem apenas através de debates, nos quais há longa sequência de troca de argumentos, e nos quais seus participantes expressam tanto ideias já solidamente justificadas, como também dúvidas, perguntas e propostas de soluções ainda em estágio inicial de formulação.  Sei que isso é muito difícil de acontecer hoje no Brasil, um país dividido em tudo, mas assumo que isso é verdade nessa discussão.

  1. Este debate é necessário

O tema da competência é importante. Afinal o uso desta opção de organização do trabalho pedagógico é uma das respostas possíveis para o problema dos conhecimentos inertes, usualmente associados com o texto The aims of Education de Alfred Whitehead. O autor diz que a inclusão de itens no currículo escolar deve ser baseada na sua relevância para a vida dos estudantes.  Crachay e Marcoux, em um texto construído em uma tradição muito crítica ao uso de competências na educação, reconhecem a importância nessa dimensão.

  1. Polissemia

Não há na literatura uma definição consensual do conceito de competência. Diferentes atores usam este termo com sentidos similares, mas cujas diferenças tem impactos pedagógicos. O conceito adotado mais amplamente no Brasil não é o mesmo adotado pelo PISA e OCDE, a definição mais influente no debate mundial educacional

  1. Definição – OCDE

Para a organização do PISA, a OCDE organizou um grupo de trabalho: DeSeCo – Defining and Selecting Key Competencies. O artigo de Weinert (2001) conclui que “não existe uma definição única do confeito de competência aceita amplamente nem uma teoria latente”. Assim sua recomendação, aceita por muitos, foi adotar uma definição funcional do conceito. Para ele,

“Competência é a capacidade atender com êxito demandas complexas em um contexto particular, através da mobilização de pré-requisitos psicossociais (incluindo aspectos cognitivos e não-cognitivos. Esta definição foi também adotada pela União Europeia que define competência como uma combinação de conhecimentos, habilidades (skills) e atitudes exigidas pelo contexto”.

Esta definição foi recentemente reafirmada pela OCDE no texto The Future of Education and Skills – The Future we want.

Há três polos nessa definição: contexto específico, mobilização e diversidade de recursos: conhecimentos, habilidades e atitudes. Nessa definição, o foco principal do conceito está nas ações, escolhas e maneira de se comportar com que cada pessoa enfrenta os problemas que a vida lhe põe.

  1. Nomenclatura

Nesta abordagem, as palavras “skill”e “competence”, traduzidos usualmente para o português do Brasil como habilidade e competências, referem-se a conceitos diferentes, ainda que associados. O relatório do DeSeCo é enfático ao afirmar que “nem os componentes cognitivos nem os aspectos motivacionais isoladamente constituem uma competência. Por exemplo, habilidades (skills) de pensamento crítico, habilidades analíticas, capacidade de solução de problemas gerais, ou persistência não são competências, porque não descrevem uma resposta individual completa a uma demanda específica.Constituem, no entanto, elementos valiosos, se não indispensáveis de competência de ação.” A ideia de que o conceito de competência está associado à capacidade de resolver problemas específicos e complexos, como são os da vida cotidiana, tem consequências tanto na organização do ensino como da avaliação

  1. Avaliação de Competências

O PISA é organizado por competências e, por isso, a OECD desenvolveu documentos conceituais que descrevem as competências que avalia: Leitura, Matemática e Ciências. Importante para o debate brasileiro notar que o PISA não descreve estas competências como um conjunto de habilidades.  Os itens incluídos nos testes do PISA são escolhidos analisando a relevância da tarefa proposta e sua adequação para expressar a competência a ser testada. Aceita a sua relevância, a etapa seguinte do processo de produção do item envolve uma análise detalhada do item para a identificação dos conhecimentos e habilidades necessários para que os estudantes produzam a resposta correta.  Ou seja, o PISA trabalha indo do conceito de competência para o de habilidades. A discussão no Brasil se organiza da forma oposta. Com frequência a instrução para a construção do item é o texto da habilidade.

  1. Ensino por Competências

A opção por organizar por competências tem claro impacto na organização do ensino. Como consequência lógica da sua definição, o ensino organizado por competências deve ser organizado através da exposição dos estudantes a situações reais que exigem determinados conhecimentos, habilidades, atitudes e o discernimento possibilidade pelos valores.  Isso foi formalizado com a abordagem pedagógica denominada “situated learning theory”, introduzida por Lave e Wenger (1991),  que preconiza que qualquer conhecimento é criado apenas pela participação dos estudantes em ações concretas em diferentes contextos.

  1. Vocabulário comum

Na forma atual do debate, o termo competência é usado por diferentes atores e textos legais e normativos com sentidos diferentes. Como argumentado acima, a posição da OEDC não pode ser usada para justificar todas as posições no nosso debate, já que a definição daquela organização se baseia em pontos não considerados por muitos dos atores brasileiros:  a essencialidade de problemas concretos e a impossibilidade de reduzir a competência a seus componentes e a ênfase apenas em aspectos cognitivos.  Algum acordo conceitual é necessário.

  1. Alternativas conceituais

Além da abordagem por competência, pode-se considerar a alternativa de organização por objetivos de aprendizagem, usada nas experiências americanas, ou aquela defendida por  Michael Young, um sociólogo do currículo inglês que responde à questão: ‘Qual é o conhecimento a que os alunos têm direito?’ sugerindo uma organização disciplinar para as recomendações curriculares comuns de um país. Usa para apoiar sua posição o conceito de conhecimento poderoso.  Naturalmente todas estas opções se interconectam e não devem ser confundidas com opções sobre a pedagogia – a forma de ensinar – apropriada. O estudante do século 21 pede pedagogias ativas como: debates estruturados, discussões mediadas, discussão de eventos atuais, jogos cooperativos, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem pela participação em serviços

  1. Continuar o debate

Pessoalmente entendo que a solução para o problema dos conhecimentos inertes deve ser construída com a contribuição da noção de competência. No entanto, isso não resolve o problema de como organizar as recomendações curriculares comuns para os sistemas de ensino. Nos próximos meses é importante concentrar o debate na reorganização do ensino médio, considerando o que a lei que já estabelece.

Há uma parte obrigatória: Língua Portuguesa, Matemática e Língua estrangeira, constituída daquilo que todos os estudantes devem saber. Esta parte é continuação do Ensino Fundamental II, onde a organização por competências tem justificativas mais fortes, como mostra a experiência e os documentos do PISA, que é aplicado em estudantes, idealmente, no fim da educação obrigatória (que na maioria dos países é aos 15 ou 16 anos). A terceira parte do currículo do ensino médio preconizado pela lei consiste de uma parte específica – os itinerários propedêuticos e técnicos.  Nesta parte o estudante deve ser exposto às formas pelas quais o conhecimento é produzido e transferido, e não somente como é usado. Por isso, nesta etapa é fundamental a possibilidade de opção pessoal, diferentemente do Ensino Fundamental II, que deve ter muito claramente um núcleo comum.  Cada uma destas três etapas exige uma pedagogia específica.

  1. Coda

Termino reafirmando meu caveat inicial, desta vez com uma licença poética em um verso de Raul Seixas.  “E para aquele que mostrar que eu estou errado, eu tiro o meu chapéu”

  1. Referências

Crahay, M., & Marcoux, G. (2016). “Construir e mobilizar conhecimentos numa relação crítica com os saberes”. Cadernos de Pesquisa, 46(159), 260-273.

Figel, J. (2007). Key competences for lifelong learning-European reference framework. Luxembourg: Office for Official Publications of the European Communities. Retrieved May, 25, 2009.

Lave, J., & Wenger, E. (1991). Situated learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge University Press.

OECD.  2006. PISA 2006 Technical Report.

OECD. 2018. The Future of Education and Skills – The Future we want.

Weinert, F. E. (2001).” Concept of competence: A conceptual clarification”. In Rychen, D. S. E., & Salganik, L. H. E. (2001). Defining and selecting key competencies (pp. 45- 65) Gottingen, Germany: Hogrefe & Huber

Whitehead, A. N. (1959). The aims of education. Daedalus, 88(1), 192-205.

Young, M. (2014). “Superando a crise na teoria do currículo: uma abordagem baseada no conhecimento”. Cadernos Cenpec| Nova série, 3(2).


(*) José Francisco Soares, matemático e estatístico, é professor aposentado da UFMG, membro do Conselho Nacional de Educação e ex-presidente do INEP.

Educação por competências: qual é a questão?

O tema da educação por competências, central na proposta do Ministério da Educação para a Base Nacional Curricular Comum do Ensino Médio, merece uma discussão aprofundada. Em meu comentário, eu afirmei que o documento procura fugir, de propósito, da organização do conhecimento em disciplinas e linhas de pesquisa e estudo, que é a forma em que o conhecimento se dá e é transmitido na prática, e procura substitui-los por uma linguagem formal e abstrata de ‘competências’ e ‘habilidades’  que pode ser útil em processos muito específicos de treinamento para atividades práticas, mas é muito questionável quando se pretende aplicá-la a processos formativos mais amplos.  Claudia Costin, em uma mensagem, discordou, dizendo que  “todos os currículos mais atualizados de países desenvolvidos trabalham com competências”.  Charbel El-Hani lembrou que o termo “competências” pode significar coisas muito distintas: para o suíço Phillipe Perrenaud, cujo trabalho é bem conhecido no Brasil, o foco são as competências para a vida, enquanto que, para a OECD, o foco seriam as competências para o mercado de trabalho.

É verdade que abordagens de educação por competências tem sido adotadas em muitas partes do mundo, mas não em todas, como Claudia Costin faz crer. Uma análise da adoção internacional desta abordagem mostra que  que ela tem sido promovida por organizações internacionais como a OECD e usada em muitos países da Europa, África e América Latina, mas não nos Estados Unidos nem nos países asiáticos; que em muitos casos, como na Inglaterra e na África do Sul, reformas curriculares baseadas em competências foram revertidas; e que o que se entende por “educação baseada em competências” varia muito de país a país e entre diferentes níveis educacionais (Anderson-Levitt 2017).

Mas do que se trata, afinal?  Como o termo tem sido usado de maneiras muito diferentes, não existe uma resposta única. O conceito tem origem na área de educação vocacional nos Estados Unidos nos anos 70, e a ideia principal é identificar com clareza as aptidões que os trabalhadores deveriam adquirir para o desempenho de atividades específicas no mercado de trabalho, concentrando a capacitação no desenvolvimento das competências e habilidades, e não na formação mais teórica ou formal. Em uma análise que se tornou clássica, a socióloga inglesa Alyson Wolf mostra como esta ideia foi adotada entusiasticamente na Inglaterra nos anos 80 para a elaboração do que ficou conhecido como o “National Vocational Qualifications Framework”, como isto não funcionou, e ela mesma foi uma das principais responsáveis por fazer com que esta orientação fosse mais tarde abandonada (Wolf 1995, 2011).

Mas a educação por competências passou a ser adotada também em muitas partes para a educação geral e a educação superior, com diversas perspectivas e abordagens. É um movimento que tem sido fortemente criticado por ignorar os conteúdos formativos e culturais que, em todos os níveis, devem fazer parte de qualquer processo educativo, e substitui-los por uma visão estritamente comportamentalista (Preston 2017).  No outro extremo, a proposta da Base Nacional do Ministério da Educação pode ser caracterizada como tendo uma visão relativista e “pós-moderna” que também ignora os processos educativos e culturais mais básicos, como evidenciado pelos comentários de Claudio de Moura Castro.

Vários documentos recentes da OECD elaboram o que denominam de “competências para o século XXI”, propostas como o caminho para a educação para as próximas décadas (OECD 2018). Em um esquema bastante instrutivo, o texto da OECD divide as competências em três categorias, o conhecimento (disciplinar, interdisciplinar, epistêmico e procedural), as habilidades (skills) (cognitivas e meta-cognitivas, sociais e emocionais, e físicas e práticas) e as atitudes e valores (pessoais, locais, societais e globais). Diz o documento da OECD:

“O conceito de competência implica mais do que apenas a aquisição de conhecimentos e habilidades; envolve a mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para atender demandas complexas. Alunos preparados para o futuro precisarão de conhecimento amplo e especializado. O conhecimento disciplinar continuará a ser importante, como a matéria-prima a partir da qual o novo conhecimento é desenvolvido, juntamente com a capacidade de pensar além das fronteiras das disciplinas e “conectar os pontos”. Conhecimento epistêmico, ou conhecimento sobre as disciplinas, como saber pensar como um matemático, historiador ou cientista, também será significativo, permitindo que os estudantes ampliem seus conhecimentos disciplinares. O conhecimento processual é adquirido pela compreensão de como algo é feito – a série de passos ou ações necessárias para atingir um objetivo. Alguns conhecimentos procedurais são específicos de determinados domínios, outros transferíveis entre domínios. Ele geralmente se desenvolve através da solução prática de problemas, como por meio do design thinking e do pensamento sistêmico.” (p. 5, tradução e grifos meus).

Em outras palavras, a interdisciplinaridade, o pensamento crítico, as atitudes, valores e tudo mais não se desenvolvem no lugar da formação básica nas disciplinas, mas em adição a elas.

Em uma análise detalhada dos diferentes sentidos e usos do conceito de educação por competências, o professor Elio Carlos Ricardo, da Universidade de São Paulo, escrevia em 2010 que “não caberia colocar a noção de competências em meio a falsas dicotomias, como competências versus conteúdos, cultura geral versus utilitarismo ou teoria versus prática. Ao contrário, todas essas dimensões dos saberes integram as competências que são pertinentes tanto quanto responderem a situações desconhecidas”. Sobre as diretrizes curriculares do ensino médio então aprovadas pelo governo, ele assinalava que “ao mesmo tempo em que as DCNEM sugerem uma estrutura curricular na perspectiva das competências, não houve uma discussão teórica que apresentasse a noção de competência como alternativa didática viável para enfrentar os problemas de ensino e aprendizagem” (Ricardo 2010).

É esta a discussão e esclarecimento de ideias que ainda precisam ser feitos.

Referências

Anderson-Levitt, Kathryn. 2017. “Global Flows of Competence-based Approaches in Primary and Secondary Education.”  Cahiers de la recherche sur l’éducation et les savoirs(16):47-72.

OECD. 2018. The Future of Education and Skills – The Future we want.

Preston, John. 2017. Competence Based Education and Training (CBET) and the End of Human Learning – The Existential Threat of Competency: Palgrave Macmillan.

Ricardo, Elio Carlos. 2010. “Discussão acerca do Ensino por competências: problemas e alternativas.”  Cadernos de Pesquisa 40 (140).

Wolf, Alison. 1995. Competence-based assessment, Assessing assessment. Buckingham England;, Philadelphia: Open University Press.

Wolf, Alison. 2011. Review of Vocational Education – The Wolf Report. London: Stationary Office.

 

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