IPSP: Democracia e Capitalismo

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Este texto é extraído do primeiro capítulo do International Panel for Social Progress que trata das grandes tendências e novas geografias sociais, de autoria de Peter Wagner (Universidade de Barcelona), Elisa Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e e Marcel Van Der Linden (Instituto Internacional de História Social, Amsterdam). O texto completo em inglês, aberto para comentários, está disponível aqui.

Democracia e Capitalismo

Na última década do Século 20, as expectativas de democratização e globalização econômica caminharam de mãos dadas, levantando esperanças quanto a um mundo plenamente democrático no qual as necessidade materiais seriam satisfeitas e a pobreza superada. Era como se o progresso político e o econômico estivessem bem definidos e firmemente estabelecidos.

Contudo, além das crises financeiras, o progresso econômico teve consequências marcadamente desiguais nas diferentes regiões do mundo. Além disso, embora as instituições democráticas estejam mais disseminadas, alguns processos de democratização falharam e desencadearam violência fora de controle. E mesmo onde as instituições democráticas funcionam plenamente, muitos cidadãos deixaram de acreditar que sua participação pode ter impacto sobre resultados de políticas e se afastam da política ou expressam seu descontentamento apoiando demagogos.

Por todas essas razões, o otimismo difuso do final do Século 20 esvaneceu-se. E, para uma avaliação mais adequada da situação atual, necessitamos primeiro dar um passo atrás para compreender como as expectativas de progresso social estavam relacionadas à difusão da democracia e do capitalismo.

Idéias associando o progresso da humanidade ao avanço da democracia e do capitalismo surgiram nos Séculos 17 e 18 e de certa forma retém até hoje sua relevância.

O período que se estende de 1500 a 1800, que os historiadores da Europa caracterizam como os primórdios da era moderna, assistiu à emergência de noções que os seres humanos tem direitos inalienáveis e que toda ordem política legitima deve emergir de um acordo entre aqueles que detém esses direitos. No final do Século 18 a idéia da democracia incarnava o progresso político.

Nessa mesma época, emerge a proposição do comércio como solução para os problemas do conflito permanente, das guerras, e da miséria. Se a natureza humana não podia ser mudada, a sociedade poderia transformar as interações humanas de tal forma a torna-las guiadas antes pelos interesses que pelas paixões. Montesquieu e Adam Smith introduzem a idéia do “comércio benéfico” como um recurso para promover a “riqueza das nações”.

Durante o Século 19, entretanto, emergiram as sociedades divididas por classes, a participação política institucional permaneceu restrita, e a abolição formal da escravidão foi muito tardia. Os primórdios do Século 20 assistem a coincidência da extensão da democracia com uma crise do capitalismo levando a uma situação explosiva. As demandas da população não podendo ser ignoradas ou reprimidas como nos períodos anteriores levaram à ruptura da democracia em diversos países e à ascensão de regimes autoritários.

A história mostra que tanto é errôneo pensar que a democracia e o capitalismo mantém uma harmonia básica entre si enquanto expressões da liberdade humana e da auto determinação, quanto supor que elas são intrinsecamente contraditórias e irreconciliáveis. Na verdade, existe uma tensão permanente no modus operandi delas. Por um lado, democracia é o termo que usamos para a idéia normativa de uma auto determinação coletiva livre e igualitária. Por outro, a ideia normativa da economia capitalista de mercado tem como base a busca dos interesses individuais, e o resultado coletivo não é visto senão como fruto da agregação de iniciativas individuais.

O argumento original sobre “comércio benéfico” e a “riqueza das nações” não implicava que todos os aspectos da vida social seriam beneficiados pela comercialização e mercantilização. Buscando entender “a ascensão e queda da sociedade de mercado” Karl Polanyi salientou corretamente que a economia de mercado precisa ser conscientemente imbricada na sociedade, e não tão desmembrada dela como o ideário do livre-mercado tende a sustentar.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o estado-nação democrático capitalista passou a ser percebido com a resposta à tensão entre democracia e capitalismo. Ele seria a expressão democrática da auto determinação coletiva de uma nação através do igualitarismo do sufrágio universal. Seria esse estado que asseguraria os benefícios da eficácia funcional da economia de mercado, embebendo-a no arcabouço nacional através da regulação do comércio exterior e da administração da demanda doméstica, vulgarmente referida como Keynesianismo. Além disso, a tributação poderia ser usada como um recurso de redistribuição social, financiando a construção de estados de bem estar.

As transformações recentes podem ser visas como uma nova dissociação das práticas capitalistas das instituições democráticas. A partir dos anos oitenta, os governos eliminaram crescentemente os obstáculos ao capitalismo global reorganizado, em parte com a esperança de aumentar a produtividade, em parte por medo da perda de ganhos econômicos na competição global.

As consequências políticas de tais políticas econômicas são limitar consideravelmente o alcance de processos democráticos de decisão: políticas relativas à tributação, relações industriais ou condições de trabalho passam a entrar diretamente na competição global pelo capital e tendem a ser descartadas se afetarem diretamente o “ambiente de negócios”. Outros aspectos tais como aqueles relativos ao bem estar ou a educação que dependem dos recursos do governo, são assim severamente afetados por políticas fiscais restritivas. Como resultado da combinação da ampliação do raio de atuação das práticas capitalistas por um lado, e a auto limitação no âmbito das práticas democráticas por outro, a capacidade efetiva de exercer auto determinação coletiva é radicalmente restringida em comparação com práticas democráticas em vigor em outros períodos históricos. Uma nova inserção da economia nas instituições sociais precisa ser concebida sem se limitar a prover um arcabouço estatal para o capitalismo.

O que fazer para que a reforma do ensino médio dê certo?

choicesA Medida Provisória sobre o ensino médio teve o grande mérito de deixar claro que o atual formato do ensino médio é inviável, e que é necessário dar aos estudantes a possibilidade de optar por diferentes áreas de concentração e aprofundamento, sejam mais acadêmicas, de preparação para o ensino superior, sejam mais práticas, de qualificação mais direta para o mercado de trabalho, ou ambas as coisas. Não custa repetir: apesar de obrigatório, 40% dos jovens brasileiros, hoje, não completa o ensino médio; dos que completam, um terço consegue ir para o ensino superior, e dois terços termina sem nenhuma qualificação útil para a vida profissional. Todo o ensino médio, praticamente, está organizado em um currículo único de preparação para o ENEM, que seleciona uns poucos que conseguem entrar nas universidades federais. Os gastos públicos por aluno se multiplicaram por quatro nos últimos 15 anos, mas a qualidade da educação continuou péssima e não melhora. A reforma é necessária, e vem sendo discutida há anos, mas o governo não explicou direito o que está propondo, e ainda existem muitas coisas a serem ajustadas e esclarecidas.

O caminho é, como em todo o mundo, criar diferentes opções de estudo, adequadas aos diferentes interesses e condições dos jovens, e fortalecer o lado mais prático e aplicado da educação média. A questão não é se o jovem, aos 15 anos de idade, já tem maturidade para fazer escolhas; a questão é que, tendo que estudar tudo e treinar para o ENEM, os jovens acabam não aprendendo praticamente nada.

Mas, ao diferenciar, o que deve permanecer como conhecimentos comuns, e quais devem ser as opções? Quanto tempo deve ser dedicado à parte comum e às partes opcionais? A MP transferiu a resposta da primeira pergunta para a Base Nacional Curricular Comum do ensino médio que ainda precisa ser escrita pelo Ministério da Educação; deu uma resposta equivocada à segunda, ao escolher mal as áreas opcionais; e propôs uma divisão arbitrária do tempo entre a parte geral e a parte opcional, sem maiores explicações. Sem lidar de forma correta com estas três coisas, existe um grande risco de que a reforma proposta não se concretize como deveria.

As áreas de concentração e aprofundamento

Idealmente, os estudantes deveriam ter liberdade de escolher os temas que queiram, ou uma combinação de temas. Na Europa, a primeira opção é seguir uma trilha mais acadêmica e outra mais profissional, cada uma delas oferecendo diferentes possibilidades de escolha. Assim, na Inglaterra, os estudantes que se dirigem ao ensino superior começam escolhendo quatro ou cinco temas, e depois se preparam em três para o exame de A Level, que dá acesso à universidade. No baccalauréat francês, os estudantes não escolhem temas, mas grandes áreas como ciências naturais, ciências econômicas e sociais ou literatura, que inclui filosofia, história e línguas, e que também dá acesso ao ensino superior. Para os que optam pelo ensino profissional, existe uma grande variedade de opções, como a aprendizagem profissional nas empresas, típica dos países germânicos, ou os diplomas técnicos e liceus profissionais na França. Os Estados Unidos não têm um sistema separado de formação profissional, mas existe uma grande variedade de opções, de nível e conteúdo, dentro das high schools, que são as escolas de nível médio, e que continuam nos community colleges de dois anos.

O que todos estes países têm em comum é que todas as opções estão associadas a sistemas claros de avaliação externa. Na Inglaterra, os A Levels são administrados por vários exam boards, que são instituições privadas ou agências independentes; os bac franceses são diplomas de validade nacional, assim como o Abitur alemão e o Matura na Suíça e outros países. Os Estados Unidos não têm um sistema de exames de Estado, mas duas instituições privadas, o College Board e o ACT Inc. oferecem diferentes testes gerais ou específicos por áreas e conhecimento, que os estudantes podem fazer e que são utilizados pelas diferentes universidades na seleção de seus alunos. Para o ensino profissional, os alunos são avaliados por diferentes agências e instituições profissionais, públicas ou privadas.

O formato proposto na MP não cria um sistema separado de ensino profissional, como na Europa, nem um sistema aberto com muitas opções e grande diferenciação interna, como nos Estados Unidos. O que ela faz é dividir o ensino médio em duas grandes alternativas, a formação acadêmica e a formação profissional, ambas associadas a uma base nacional comum, e cada qual com diferentes possibilidades de escolha: na alternativa acadêmica, ou propedêutica, as opções seriam linguagem, matemática, ciências da natureza e ciências humanas; as opções de formação profissional não estão especificadas, mas seria possível, em princípio, oferecer qualquer uma das quase duzentas áreas de formação profissional hoje existentes.

O Ministério da Educação não explicou as razões da escolha destas áreas, mas é fácil ver que elas são uma repetição do que está nos parâmetros nacionais curriculares da década de 90, que divide o conhecimento entre três grandes áreas: (1) linguagens, códigos e suas tecnologias; (2) Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias, e (3) ciências humanas e suas tecnologias. O único que a MP faz é separar as matemáticas das ciências naturais.

Esta classificação tem sua lógica do ponto de vista formal, mas as opções não têm relação com o modo em que as áreas de formação são geralmente agrupadas no mundo real, e são certamente inadequadas como áreas de formação a aprofundamento para o ensino médio.

De fato, a primeira área, das “linguagens”, tal como está nos parâmetros curriculares do MEC, inclui coisas totalmente diferentes: língua portuguesa, língua estrangeira, educação física, arte e informática. Ainda que se possa entender que todas estas coisas são “linguagens” em um sentido muito amplo, como formas de expressão e comunicação, a formação e o campo profissional de quem se dedica às línguas, à educação física e à computação (o termo “informática” caiu em desuso) são totalmente diferentes.

O mesmo problema ocorre com as outras duas áreas, ciências naturais e ciências humanas. As ciências naturais hoje são um grande universo de conhecimentos muito distintos, que podem ser agrupados em ciências exatas, dos objetos físicos, e ciências biológicas, dos seres vivos. A formação e a orientação profissional de quem se dedica a uma e outra área são totalmente diferentes, e não faz sentido agrupá-las como área única de concentração e aprofundamento. Na área das humanas, elas normalmente são divididas entre as ciências sociais (economia, sociologia, demografia, etc.), que utilizam métodos empíricos semelhantes aos das ciências naturais, e as humanidades propriamente ditas, que têm uma tradição de hermenêutica e interpretação de textos, como a literatura e a filosofia. Esta divisão não é estanque, porque a história, por exemplo, tem elementos das duas tradições, e a filosofia analítica está mais próxima da matemática é mais próxima da lógica e da matemática. Finalmente, a matemática, por si só, é uma matéria central da formação comum, e pode ser uma especialização de alto nível para quem quer se preparar para o magistério ou para a pesquisa matemática, mas, nas áreas de formação diferenciada do ensino médio, ela precisa ser dada no contexto das diversas áreas de formação, e não de forma isolada.

Quais seriam, então, as diversas áreas opcionais? Existem várias possibilidades, mas o princípio geral deve ser que elas não podem ser simples ampliações das áreas de formação geral, mas devem se aproximar, de forma ampla, das áreas de formação profissional superior que os alunos irão buscar no nível superior. (1) Uma delas, claramente, é o que em inglês tem sido denominado STEM, ou, em português, CTEM – ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Além da matemática, física e química, esta área deve incluir elementos de engenharia e tecnologia, tanto quanto possível de forma prática e aplicada, que a educação média brasileira não tem; é a opção para os jovens que querem se profissionalizar nas áreas da engenharia e da tecnologia de maneira geral. (2) A segunda área deve ser a das ciências biológicas e da saúde, para os que se interessam pela área de ciências médicas e de saúde de maneira geral. (3) A área que hoje se denomina de “humanas” deveria se dividir em duas, a das ciências sociais, centradas da economia, sociologia, antropologia e direito, para os que se destinam às profissões sociais como direito, administração, educação e outras; e a das (4) humanidades, que inclui as línguas, literatura e artes, que podem interessar mais aos que se dedicam à comunicação, ao jornalismo, à literatura e outras atividades culturais. É um formato parecido com o bac francês, com uma opção econômica e social, outra literária, e outra científica, com a diferença que esta última seria dividida entre CTEM e as ciências biológicas e da saúde

A base comum

Embora isto não esteja escrito em nenhum lugar, a interpretação que parece estar prevalecendo é que a parte comum seria uma espécie de versão resumida de todas as áreas opcionais, tais como definidas nos parâmetros curriculares que o Ministério da Educação tem adotado desde os anos 90, e as áreas de opção e aprofundamento seriam um detalhamento destas mesmas áreas. O resultado disto é que a parte comum corre o risco de ficar inchada, sem romper com o modelo enciclopédico que tem prevalecido até agora e não funciona, enquanto que as opções de formação ficam esvaziadas. Nas discussões havidas anteriormente no Conselho dos Secretários Estaduais de Educação, havia a ideia de que a parte comum não deveria ocupar mais do que 800 horas do total de 2400 que são o da grande maioria dos cursos de nível médio (deixando de lado as escolas de tempo integral, que é um assunto à parte). A MP aumentou este mínimo para “até 1200 horas”, e existem propostas de mudar a MP aumentando esta parte para 1800 horas, acabando, na prática, com a idéia da diversificação.

O princípio mais importante é que a base comum deveria ser pequena, e não engolir nem dominar as demais. O lugar da formação geral é na educação fundamental, até os 14 anos quando os alunos deveriam dominar a língua portuguesa, os conceitos matemáticos mais gerais, e conhecimentos amplos sobre as ciências naturais e sociais. Como, no Brasil, sabemos que a grande maioria dos estudantes chega ao ensino médio com grandes lacunas de capacitação em português e matemática, faz sentido continuar trabalhando nestas duas áreas com todos os estudantes ao longo do ensino médio, tanto quanto possível no contexto das diferentes áreas de formação e aperfeiçoamento. O inglês é hoje, reconhecidamente, a língua da comunicação internacional, cada vez mais requerida em todos os campos de atividade, e por isto deve constar também da base comum.

E o que mais? Existe muita coisa pesquisada e escrita sobre as competências gerais que todos os jovens devem ter para participar plenamente, como cidadão e profissional, na sociedade moderna. Além de saber ler, escrever e raciocinar com números, são importantes as chamadas competências emocionais, como a capacidade de trabalhar em grupo, a persistência, a curiosidade, o empreendedorismo, a autodisciplina e a estabilidade emocional. Estas competências podem e devem ser desenvolvidas na escola, mas de forma prática, no dia a dia do estudo, e não na forma de aulas tradicionais. O domínio das novas tecnologias de informação e comunicação é também considerado uma competência geral, mas o que importa aqui, para os que não são nem vão ser profissionais da área, é a competência para fazer uso dos instrumentos disponíveis, e não o conhecimento detalhado as tecnologias de ICT. Faz mais sentido desenvolver estes conhecimentos no contexto das áreas opcionais do que de forma separada.

Restam as ciências sociais, as ciências naturais, as artes e a filosofia. A MP foi muito criticada por ter, aparentemente, banido o ensino da sociologia, da filosofia, das artes e da educação física do ensino médio. O que ela fez, na verdade, foi suprimir a obrigatoriedade do ensino destas disciplinas, que podem perfeitamente continuar a ser dadas de diferentes formas, ao lado de outras igualmente importantes como a economia, o direito e a antropologia.

Quanto das ciências sociais deveriam estar na base comum? Existe um argumento convincente por continuar reforçando, entre todos os estudantes, a capacidade de entender como funcionam as instituições e quais são as questões sociais e econômicas na sociedade em que vivem: como funciona uma democracia representativa, qual são os papéis dos três poderes, como se organiza o sistema federativo, como está estruturada sociedade e a economia, o que são os direitos sociais, os problemas de pobreza e desigualdade, e assim por diante, no Brasil e no contexto internacional. É possível estudar estas coisas pela história, pela sociologia, pela economia ou pelo direito. A base comum poderia conter um componente com estes conteúdos, sem especificar a disciplina que em deveria ser ensinada. Ou seja, seria organizada por questões e problemas, e não por teorias ou conceitos abstratos.

E como lidar com as ciências naturais? É importante não cair na falácia de tentar ensinar o “método científico” ou ciência de maneira geral, sem conteúdos concretos. A questão de se existe ou não um método científico geral, que possa ser ensinado a todas pessoas e que vale para todas as ciências, é um tema filosófico especializado da epistemologia, que não cabe em um curso de nível médio; e não seria possível colocar, na base curricular comum, uma versão ainda mais resumida e superficial das diversas disciplinas científicas do que a que existe hoje no ensino médio. A alternativa seria escolher uma lista de temas de natureza científica e de grande relevância – energia, mudanças climáticas; doenças tropicais, os avanços da medicina, etc. – e a partir deles mostrar como eles são estudados, que resultados têm sido obtidos, etc. Tal como nas ciências sociais, não seria um curso de ciências, mas de temas de natureza científica e tecnológica.

E o que fazer com educação física e artes? A educação física, como área de estudo, faz parte da área de ciências biológicas e da saúde. Como prática, é importante, mas não é matéria disciplinar. O Ministério da Educação, ou as secretarias estaduais, podem requerer que as escolas ofereçam aos estudantes oportunidade para as práticas desportivas, mas isto não entra no currículo propriamente dito. Quanto às artes, elas podem ser matéria de estudo dentro da opção das humanidades, e as artes performáticas (dança, música, teatro) podem ser matérias de formação profissional, mas não faz sentido incluir artes em geral na base curricular comum obrigatória, da mesma maneira que não faz sentido incluir ciências sociais ou ciências naturais em geral.

Tempos e sequência

É importante evitar dois equívocos aqui, o de aumentar demasiadamente o tempo da parte comum, e o de juntar toda a parte comum no primeiro ou nos dois primeiros anos do ensino médio, deixando as opções para o final. Nos dois casos, trata-se de uma resistência ao que precisa ser feito, que é aproveitar ao máximo os três anos do ensino médio para o que os estudantes possam se aprofundar em suas áreas de formação. O correto seria não dedicar mais do que 1/3 do tempo do ensino médio para a parte comum, ou seja, 800 horas, e não 1200 como está na MP. Tanto quanto possível, os conteúdos da parte comum deveriam ser dados de forma articulada e no contexto das áreas opcionais de formação, e não de forma separada. Existem bons argumentos para fazer do primeiro ano do ensino médio um período de orientação, com mais matérias eletivas, levando a um maior afunilamento nos anos subsequentes.

A MP, além da diversificação do ensino médio, trata da criação de escolas de tempo integral. Não é algo que possa ser implementado a curto prazo. Só 3% dos alunos do ensino médio brasileiro estão em escolas de tempo integral hoje, e a previsão do governo é no máximo dobrar isto em 4 anos, e passar a conta para o Estados depois. Nas escolas de tempo integral, o tempo adicional deveria ser dedicado às áreas de formação e aprofundamento, e não ao aumento do tempo da parte comum. Infelizmente, a MP não tratou de um problema muito mais sério, que é o das escolas noturnas, aonde estão cerca de 25% dos estudantes de nível médio, em sua grande maioria jovens que precisam ter apoio e condições para estudar durante o dia.

A questão das avaliações e o ENEM

O ENEM atual é incompatível com uma educação média diversificada. No novo sistema, será necessário ter uma avaliação de competências gerais, em uso de língua portuguesa e matemática, e avaliações específicas para cada uma das áreas opcionais. O atual ENEM está feito para selecionar pessoas para as universidades, e por isto tem um sistema milimétrico de pontuação que não tem interpretação clara: não há nada que indique que o estudante que tire 750 na prova seja mais capacitado para fazer um curso superior do que um que tire 730. O novo ENEM deveria ser fortemente baseado em competências, e não em conteúdos, e os resultados deveriam ser apresentados do que eles significam – não em pontos, mas em termos do desempenho esperado – insatisfatório, satisfatório, bom, excelente, etc. A questão de como as universidades selecionam seus alunos é um problema delas, que têm autonomia para isto, e não pode ser resolvida colocando uma camisa de força sobre o ensino médio.

Não é possível desenvolver avaliações gerais para as áreas profissionais. Ao contrário das áreas acadêmicas, as áreas de formação profissional são muito dispersas, e não podem ser concentradas em um número pequeno de opções. O Ministério da Educação trabalha com um agrupamento de “eixos formativos”, mas basta olhar para o conteúdo dos eixos para vermos que se são coisas muito diferentes, que não poderiam ser avaliadas pelo mesmo teste. Assim, por exemplo, o eixo 1, de ambiente e saúde, inclui cerca de 30 cursos, incluindo análises clínicas, agentes comunitários de saúde, meio ambiente e enfermagem.

A solução para a formação técnica é a criação de um amplo sistema de certificação profissional, trabalhando com instituições existentes ou criando novas. O problema é menos complexo do que aparenta, porque, na realidade, as matrículas estão muito concentradas em alguns cursos: metade dos estudantes estão em 8 áreas (enfermagem, administração, informática, segurança do trabalho, edificações, logística, mecânica e eletrotécnica), e 80% em trinta. É possível começar com a certificação das áreas de maior demanda ou que sejam prioritárias por outras razões e ir ampliando aos poucos. Para as áreas sem certificação externa, valem os diplomas oferecidos pelas escolas credenciadas para dar os cursos.

O processo de diversificação e o ensino técnico: quem vai fazer o que?

Uma crítica que tem sido feita à proposta de diversificação é que as escolas não teriam professores e recursos oferecer as diversas opções, e que a redução da parte comum poderia levar à ociosidade de muitos professores. De fato, existe carência de professores qualificados, instalações e equipamentos, e isto precisa melhorar, mas não seria difícil para as escolas, desde já, reorganizarem os espaços e professores que têm atualmente em um novo formato. Assim, o professor de sociologia, por exemplo, teria mais tempo para se dedicar aos alunos que escolhessem a área de ciências sociais, e não seriam obrigados e ensinar as mesmas coisas para os estudantes de outras opções, que só precisariam da parte comum dos temas sociais. Nas cidades maiores, algumas escolas poderiam desenvolver mais determinadas áreas, e os alunos poderiam escolher as escolas de sua preferência.

As escolas tradicionais da rede pública teriam muito mais dificuldade em oferecer as opções de formação técnica e profissional, principalmente as que demandem equipamento e professores com prática profissional. Na educação profissional, a MP prevê a possibilidade de admitir professores por “notório saber”, ou seja, pelo reconhecimento de competências sem necessidade de licenciaturas convencionais, o que é uma necessidade. Não existe a obrigação nem a expectativa de que todas as escolas ofereçam opções de formação técnica. Hoje, no país, existem quase dois milhões de estudantes em cursos técnicos de nível médio proporcionados por sistemas estaduais, como o Centro Paula Souza em São Paulo; pelos institutos federais de ciência e tecnologia; por escolas particulares; e por escolas do SENAI, SESI e SESC, entre outras. A expectativa é que, no novo formato, estas instituições possam ampliar a provisão destes cursos, sozinhas ou em parcerias com as redes públicas. Um terço dos alunos de cursos técnicos são mais velhos e estão em cursos “subsequentes” ou seja, já terminaram o ensino médio e agora buscam uma qualificação técnica que tenha valor no mercado de trabalho. Este tipo de curso continuará sendo necessário, e precisa ser ampliado.

A nova legislação, se aperfeiçoada, pode abrir novas perspectiva para o ensino médio, mas, para que isto aconteça, vão ser necessárias políticas específicas de apoio técnico e financeiro, capacitação de professores, e um forte envolvimento do setor produtivo com a educação profissional. É um caminho logo e difícil para um país que nunca conseguiu fazer isto direito, mas é preciso começar, sabendo que não há muito perder com o atual sistema.

Educação média e profissional no Brasil: situação e caminhos

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O objetivo deste livro é contribuir para a discussão sobre a reforma do ensino médio que foi precipitada pela Medida Provisória 746, de 22 de setembro de 2016, com atenção especial a um aspecto da reforma que tem sido negligenciado,  ou seja, o da importância e lugar da educação profissional. O livro foi publicado pela Fundação Santillana, e a versão digital em PDF está disponível aqui.

O livro foi escrito no contexto das discussões na Câmara de Deputados, Conselho Nacional de Secretários de Educação e outros forums sobre a necessidade de reformar o ensino médio brasileiro e fortalecer o ensino profissional, na esperança de que a reforma se consolide, e pretende contribuir para este processo.

O livro está organizado em três partes. A primeira, do contexto, procura apresentar os grandes temas da educação dos jovens e as alternativas de formação profissional no mundo; a segunda olha especificamente para a educação média e profissional brasileira; e a terceira trata das iniciativas mais recentes e das perspectivas em transição para um novo modelo.

Na primeira parte, o capítulo 1 lida com o tema da juventude e seu relacionamento com o mundo da educação e do trabalho. Seus temas centrais são: as características dessa etapa da vida como um momento especial no desenvolvimento emocional e intelectual do indivíduo; a desigualdade; a inserção dos jovens no mercado de trabalho; e como essas questões afetam a natureza e o entendimento do papel da educação dos jovens.

O capítulo 2 dá um panorama de como a educação secundária e vocacional está organizada em diversos países do mundo, seja em sistemas separados, como na Europa e na Ásia, com forte atuação dos setores público e privado na formação vocacional, seja nos Estados Unidos, onde as diferenciações acontecem no interior de um sistema aparentemente único, que é o das high schools. Esse capítulo resume, ainda, alguns debates que vêm ocorrendo nos Estados Unidos sobre o tema da educação vocacional, de interesse mais geral, e discute em detalhe a questão da educação por competências e os marcos nacionais de qualificação, que têm sido adotados, assim como questionados, em grande parte do mundo, assunto também presente no Brasil.

Na segunda parte, o capítulo 3 retoma o tema da educação e trabalho dos jovens, agora com base nas informações mais recentes sobre acesso e desempenho no Brasil, tanto no sistema educacional como no mercado de trabalho. Além disso, inclui a discussão e o questionamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que contribui para enrijecer o modelo único de ensino médio e funciona como grande funil acentuador das desigualdades existentes no atual modelo unificado.

O capítulo 4 revela como as políticas relativas ao ensino vocacional têm sido concebidas no Brasil ao longo do tempo pelo governo e como elas vêm se transfomando. O capítulo 5 mostra em detalhe como evoluiu e como se encontra hoje a educação profissional no país em suas diversas modalidades, entre as quais o ensino técnico de nível médio é somente uma.

Na terceira parte, o capítulo 6 discute algumas das políticas mais recentes para a educação vocacional, incluindo a tentativa de criar um sistema nacional de qualificações, as experiências de ensino geral e técnico de nível médio integrados, a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).

É possível dizer, hoje, que há grande consenso sobre a necessidade de reformar o ensino médio brasileiro. A implementação do novo formato, no entanto, não será nada trivial, e é esse o tema do último capítulo.

O livro incorpora contribuições de Elenice Monteiro Leite, sobre a situação e tendências do ensino técnico e profissional no Brasil; de Ricardo Chaves de Rezende Martins, sobre as transformações do entendimento a respeito do ensino técnico no país desde os anos 1950, tal como aparecem nos debates e legislações aprovadas pelo Congresso Nacional; de Maria Helena de Magalhães Castro, sobre sistemas de qualificação e certificação profissional; e de Thereza Barreto, sobre a experiência de ensino médio integrado no Ceará. O anexo, preparado por B. Amin Aur, apresenta em detalhe a evolução e o estágio atual da legislação e normas brasileiras sobre educação secundária e vocacional.

O trabalho contou com o apoio inestimável do Itau BBA e Instituto Unibanco, mas a responsabilidade única pelo que está dito é do autor.

Os pós-doutorados e as prioridades da pesquisa

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Agora que o Brasil forma quase vinte mil doutores por ano (Ph.Ds., não confundir com médicos), parece que o título já não vale tanto quanto antigamente, e surgiu um novo “grau” acadêmico aparentemente mais alto, mas que só existe entre nós, o de pós-doutor.  No resto do mundo, os “postdoc” são jovens doutores recém-formados em trabalhos temporários de assistentes de ensino ou pesquisa, enquanto buscam um emprego regular. No Brasil, o “pós-doutor” é geralmente um professor universitário com doutorado que passou depois um período em alguma universidade no exterior, geralmente com uma bolsa de estudos do governo.

Muitas vezes recebo projetos de bolsas de pós-doutorado da CAPES e do CNPq para avaliar, e minha experiência é que eles podem ser divididos em três grupos. Em uma ponta, raros, estão projetos interessantes e inovadores de trabalho em parceria com pesquisadores qualificados de uma universidade reconhecida no exterior. No meio estão projetos interessantes e de qualidade, mas não existe colaboração efetiva com pesquisadores estrangeiros. Nestes casos, há sempre uma carta mais ou menos formal de um professor ou chefe de departamento de outro país dizendo que teria muito prazer em hospedar por um tempo com o professor fulano de tal, etc., mas nada além disto. E na outra ponta estão projetos de pouca qualidade e relevância, mas sempre  também com uma carta formal de aceitação (que afinal não custa nada, já que é o governo brasileiro que paga a conta)

É relativamente fácil avaliar os pedidos extremos – recomendar os primeiros e não os últimos. Fica mais difícil avaliar os do meio: o projeto é bom e interessante, o candidato tem um bom currículo, mas ele precisa realmente passar um ano em Paris, Londres ou Boston, por exemplo, às custas do contribuinte brasileiro?

A única maneira de decidir isto seria comparar cada projeto com outros semelhantes, sabendo de quantos recursos dispomos para este tipo de auxílio. Imagino que as agências de financiamento façam isto de algum modo, mas eu, como parecerista, nunca sou informado sobre quantas propostas existem e o destino das que ajudei a avaliar. Quais foram os critérios usados? Será que aquele projeto horrível que rejeitei acabou sendo aprovado, porque outros pareceristas gostaram? Será que aquele projeto excelente que eu recomendei foi recusado? Porque minha área de pesquisa tem menos (ou mais) recursos do que a do departamento vizinho?

O sistema de avaliação por pares, adotado há anos pela CAPES, CNPq, FAPESP e outras agências de financiamento de pesquisa, é muito melhor do que seria se os projetos fossem avaliados por funcionários que entendem menos dos conteúdos do que os candidatos. Mas está longe de ser infalível, por duas razões principais. A primeira é que os membros dos comités assessores são indicados por professores e pesquisadores da área, e por isto podem tender a aprovar projetos que representam os diferentes interesses de suas áreas ou regiões, e não necessariamente os melhores. Este problema é especialmente sério em áreas mais controversas e cientificamente menos consolidadas, como as ciências sociais, do que nas ciências exatas. E segundo, porque é difícil dividir de maneira adequada os recursos entre as diversas áreas de pesquisa – cada uma, naturalmente, tende a puxar a brasa para sua sardinha. Estes problemas se tornam mais agudos em situações como a de agora, em que os recursos para a pesquisa estão se tornando mais escassos, e deveriam ser utilizados da melhor maneira possível.

Acredito que está na hora de mexer nisto. Minha primeira sugestão seria deixar claro que o “pós-doutorado” não é um título acadêmico ao qual todos os professores universitários devam aspirar, e que bolsas de estágios avançados no exterior só deveriam ser concedidas se houver, além da qualidade e relevância, cooperação efetiva entre o pesquisador brasileiro e o de outra instituição, o que ocorre, por exemplo, quando a instituição no exterior contribui para cobrir os custos do projeto. Nenhuma universidade no mundo outorga ou reconhece o título de “pós-doutorado”.

Segundo, as agências de financiamento precisam tornar mais transparentes, divulgando, para cada área do conhecimento, quantos pedidos receberam, quantos  e quais foram apoiados, e quantos recursos foram alocados para cada uma área, conforme quais critérios. E faz parte desta transparência informar aos avaliadores internos e externos o resultado final de cada avaliação da qual participaram. Isto vale para toda a área de apoio à pesquisa e pós-graduação, e não somente para os  pedidos de bolsas de pós-doutorado.

Finalmente, para evitar o corporativismo inerente à avaliação por pares, é necessário subir um degrau, submetendo os resultados gerais das políticas de apoio à pós-graduação e pesquisa, em conjunto e em cada área de pesquisa, a avaliações externas internacionais. O Brasil tem experiências deste tipo, que deveriam se tornar sistemáticas.

Já foi o tempo, se é que ele existiu um dia, em que as políticas de educação superior, ciência, tecnologia e inovação se limitavam a avaliar e financiar os bons projetos, tal como entendidos pelos colegas mais próximos. É necessário definir prioridades, não só dentro do setor de ciência e tecnologia, mas inclusive em relação a outras áreas de políticas públicas igualmente carentes de recursos, que precisam de evidências claras e específicas sobre a importância dos investimentos em pesquisa e formação de alto nível. Ninguém gosta de ter que definir prioridades, mas, sem isto, elas acabam se formando debaixo dos panos, e quase sempre na direção errada.

 

IPSP – Repensando a Sociedade para o Século XXI – Aberto para comentários

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A versão preliminar do Painel Internacional do Progresso Social (IPSP), “Repensando a Sociedade para o Século XXI” está disponível para comentários, que são muito bem vindos e podem ser feitos  na plataforma on-line https://comment.ipsp.org/, de onde os diversos capítulos podem ser lidos ou baixados

Participei como um dos autores do capítulo 19, sobre educação, e acredito que ele pode e deve ser muito melhorado.  Quem preferir, pode colocar seus comentários sobre este capítulo  neste blog ou enviar para mim, em inglês ou português, que serão considerados.

Este relatório é produto de uma iniciativa global. É a primeira síntese abrangente do estado da arte dos conhecimentos das ciências sociais sobre as principais questões que a humanidade enfrenta hoje, e a primeira iniciativa colaborativa e participativa deste tipo.

Suas principais características são:

  • Escrito por mais de 250 preeminentes professores e pesquisadores de todo o mundo;
  • Adota uma abordagem holística sobre o progresso social: não só a economia, mas também saúde, educação, relações de gênero, participação política;
  • Centra-se sobre as consequências da globalização e da desigualdade, com um foco normativo na busca da justiça, entendida de forma ampla;
  • Identifica tanto o consenso acadêmico quanto divergências;
  • Cada capítulo conclui com recomendações para os responsáveis por decisões de mudança
  • É o primeiro documento de colaboração internacional deste tipo. O relatório destaca a importância da contribuição da pesquisa social para as transformações sociais e políticas, e será futuramente publicado pela Cambridge University Press.

Enquanto isso, ele está aberto à ampla discussão pública. Convidamos comentários de todos os cidadãos interessados – incluindo, mas não exclusivamente, ONGs, grupos de reflexão, e empreendedores sociais. Comentários inseridos na plataforma on-line antes do final de 2016 serão considerados para versão final do relatório.

Por favor, comente, circule e divulgue!

Chico Soares: As meias-verdades do ENEM por Escola

rankingComparto texto de José Francisco Soares, membro do Conselho Nacional de Educação e ex-presidente do INEP, sobre o significado dos dados do ENEM por escola, que acabam de ser divulgados:

As meias-verdades do ENEM por Escola

José Francisco Soares

O ranking do ENEM simplesmente consagra as escolas que fazem seleção de seus alunos. Entre as escolas bem classificadas, as privadas selecionam seus alunos pela renda e entre os que podem pagar escolhem os alunos que se saem bem em provas. Esta seleção interna é frequentemente feita ao longo da trajetória escolar dos alunos. A escola alega que o estudante não se adequou ao projeto pedagógico e convida os alunos seus alunos mais fracos a saírem As escolas públicas, que estão entre nas melhores colocações, são aquelas que admitem seus alunos através de difíceis vestibulares.

Depois da divulgação, as escolas privadas pertencentes a redes de ensino comprarão páginas de jornal para convencer as famílias que qualquer escola da rede é igualmente boa. Por outro lado, os gestores públicos das escolas bem classificadas darão declarações dizendo que o ensino público pode ser de excelência, não enfatizando nem a seleção nem o custo de suas escolas.

Em ambos os casos a sociedade recebe meias verdades. A dura realidade é que os projetos pedagógicos das escolas bem classificadas no ENEM são projetos excludentes socialmente, comuns em um Brasil que aceita, sem critica, dar tudo para poucos e nada para muitos.
Expor a fragilidade do argumento que a boa escola é aquela mais bem posicionada no ranking do ENEM, não deve obscurecer o fato de que, entre as escolas lideres, há projetos de muito boa qualidade pedagógica, que precisam ser conhecidos e que podem inspirar as mudanças que o sistema de educação básica brasileira precisa. Se a viabilidade destes projetos vem das boas condições de funcionamento e dos alunos selecionados, por outro lado são experiências feitas com estudantes e professores brasileiros, e, portanto, úteis para indicar formas de organização do ensino médio que podem ser usadas em escolas públicas abertas e todos os estudantes.

No entanto, a divulgação do ranking do ENEM, mesmo com suas limitações, permite discussões importantes pedagogicamente. Se a escola privada escolhida pela família for grande e mantiver seus alunos ao longo de sua trajetória escolar, não ficará nas primeiras posições do ranking. No entanto, manter os filhos nestas escolas é uma opção racional. Por um lado, garante-se um ambiente de formação humana mais diversificada, que o maior número de alunos permite, e, por outro lado, permite a convivência dos filhos com estudantes de alto desempenho, que serão uma fonte de desafio. Para identificar estas escolas o INEP criou dois indicadores. O primeiro mostra o percentual de alunos matriculados há vários anos na escola e o segundo é a média de desempenho dos 30 melhores alunos de cada escola.
Há escolas públicas e privadas que não selecionam seus alunos e cujo alunado é de baixo nível socioeconômico. Também há escolas privadas que acolhem número substancial de alunos bolsistas. As escolas com este perfil, cujos alunos tem bom desempenho, precisam ter seus projetos reconhecidos; outro efeito da divulgação do ranking, contextualizados com indicadores escolares e sociais.

Meu projeto de lei para o ensino médio

Desde 2015, pelo menos, tenho estudado e participado das discussões sobre o ensino médio e profissional no Brasil. Na época, o Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED – estava interessado em  modificar a legislação existente, e tive a oportunidade de apresentar uma sugestão de como uma nova lei poderia ser. Sem ser especialista no emaranhado de leis,  decretos, regulamentos e pareceres que tornam a educação brasileira tão complicada e ineficiente, tive a liberdade de propor, somente, as coisas que me pareciam mais importantes. Acho que contribui de alguma maneira para o resultado deste processo, que culminou com a Medida Provisória recentemente publicada por iniciativa do Ministério da Educação. A MP, naturalmente,  não encerra o assunto, e por isto achei que vale a pena divulgar esta proposta, assim como sua justificativa, para quem tiver interesse em cotejar.

Proposta de Reformulação do Ensino Médio e Técnico (Versão 17/08/15)

Esta lei cria alternativas de formação de nível médio, e especifica os requisitos para que os alunos do ensino médio recebam os respectivos diplomas e certificados.

Da organização do currículo ensino médio.

Artigo 1. – O currículo do ensino médio, cujos objetivos são definidos no artigo 35 da Lei 9364, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, constará de uma parte mínima de conteúdo obrigatório e de uma parte opcional de formação e aprofundamento, de natureza acadêmica ou técnico-profissional.

I – Dos conteúdos mínimos exigidos

Artigo 2. Para obter o diploma de nível médio, os alunos devem completar os seguintes cursos de um ano de duração:

• Três cursos de língua portuguesa;
• Dois cursos de matemática, incluindo álgebra e estatística aplicada
• Dois cursos em ciências naturais, incluindo biologia e ciências físicas.
• Dois cursos de ciências sociais, incluindo história e geografia do Brasil, história e geografia do mundo, um semestre sobre instituições políticas brasileiras, e um semestre de economia.
• Um curso de língua inglesa
• Um curso de artes visuais ou desempenho artístico, ou um curso de formação para o mundo do trabalho

§1 A formação de nível médio deverá assegurar o domínio do uso das tecnologias de informação e comunicação social em nível compatível com seus usos no mundo do trabalho e das relações sociais.
§2 – Os Conselhos Estaduais de educação podem suplementar estes requisitos mínimos para atender a especificidades regionais.
§3 – o total dos cursos obrigatórios, incluindo os cursos definidos pelos Conselhos Estaduais, não poderá superar o total de 1.200 horas.
II – Das modalidades alternativas de formação.

Artigo 3. – Os Conselhos Estaduais de Educação poderão aprovar formas alternativas de implementação dos cursos prescritos por parte das escolas, incluindo:

• Demonstração prática de habilidades e competências
• Experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência fora da escola
• Aulas de educação técnica em carreiras oferecidas em escolas de ensino médio
• Cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais regionais
• Estudo interdisciplinar
• Estudo independente
• Créditos obtidos em uma instituição pós-secundária

III – Das opções de formação e aprofundamento

Artigo 4. – Os estabelecimentos que proporcionam ensino médio, públicos ou privados, poderão oferecer diferentes opções de formação e aprofundamento no ensino médio, quer aumentando as exigências de formação previstas no currículo mínimo para áreas específicas, quer acrescentando conteúdos adicionais de formação.

Artigo 5. – São as seguintes as possíveis áreas de formação e aprofundamento:

• Ciências físicas
• Ciências biológicas
• Humanidades (história, literatura, filosofia)
• Ciências sociais (economia, administração, direito)
• Formação técnica e profissional
• Formação e desempenho artístico

Artigo 6. – Os estabelecimentos escolares devidamente autorizados pelos Conselhos Estaduais de educação dos respectivos Estados terão autonomia para definir as áreas de formação e aprofundamento que serão oferecidas a seus alunos, emitindo os diplomas de conclusão do ensino médio, com menção da área ou áreas formação e aprofundamento.
V – Da formação técnica e profissional de nível médio

Artigo 7. A formação técnica e profissional é uma das alternativas de formação de nível médio.

Artigo 8. Os objetivos da formação técnica e profissional são capacitar os estudantes para o mundo do trabalho nos diversos de formação profissional, assim como para posterior especialização em cursos pós-secundários.

Artigo 9. O setor público e o privado poderão estabelecer escolas técnicas especializadas que ofereçam cursos em uma ou mais áreas específicas de formação, devendo atender aos requisitos mínimos de conteúdo especificados nesta lei, de forma aplicada e adaptada à sua especialização e vocação.

§ 1 – As escolas poderão também oferecer cursos experimentais em áreas que não constem do Catálogo Nacional, requerendo sua aprovação posterior pelo Ministério da Educação.

Artigo 10. – Os cursos técnicos deverão incluir, obrigatoriamente, experiência prática de trabalho no setor produtivo, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, das possibilidades estabelecidas pela legislação sobre aprendizagem profissional.
IV – Dos sistemas de avaliação e certificação

Artigo 11. Todos os alunos que concluírem os requisitos mínimos e mais os requisitos adicionais de formação requeridos pelos seus estabelecimentos de ensino receberão um diploma de conclusão de curso médio de validade nacional.

Artigo 12. O governo federal estabelecerá os padrões nacionais de competências de uso da língua portuguesa e de raciocínio matemático desejados para o ensino médio, assim como para as diversas áreas de formação e aprofundamento, que servirão de referencia para sistemas de avaliação a serem implementados pelo governo federal ou governos estaduais.

Artigo 13. Os padrões de competência e sistemas de avaliação nas áreas de formação profissional deverão ser desenvolvidos, preferentemente, em parceria com organizações do setor produtivo, inclusive as do sistema nacional de aprendizagem.

Artigo 14. Os resultados das avaliações serão classificados como inadequados, aceitáveis, bons ou excelentes, e serão objeto de certificados a serem emitidos pelas instituições avaliadoras.

Artigo 15. Pessoas que não completaram a educação média formal, mas que obtiverem resultados pelo menos satisfatórios nas avaliações de competência em linguagem, raciocínio matemático e uma área específica de formação, obterão um certificado de conclusão do ensino médio.

Artigo 16. – Pessoas que não completaram a educação média formal, mas que obtiverem resultados satisfatórios nas avaliações de específica de competência, obterão um certificado de competência profissional que equivalerá, para efeitos legais, a um diploma de nível médio.

Artigo 17. Revogam-se as disposições em contrário.
Justificativa

A educação média brasileira, prevista em princípio para os jovens de 15 a 17 anos que terminam a educação fundamental, tem crescido muito nos últimos anos, e deverá crescer ainda mais, com a obrigatoriedade legal de 12 anos de educação formal a vigorar a partir de 2017. Dados do início de 2015 mostram que cerca de metade dos jovens de 15 a 17 anos de idade estavam matriculados no ensino médio, e cerca de 60% das pessoas de 25 anos de idade haviam concluído o ensino médio. Ao mesmo tempo, os resultados das avaliações nacionais e internacionais do ensino médio mostram que a grande maioria dos estudantes não adquire o mínimo de competências esperado no uso da língua e no raciocínio matemático, resultado corroborado também pelo Exame Nacional do Ensino Médio.

As causas deste problema de qualidade são inúmeras, e incluem problemas de formação inadequada de professores, mal funcionamento das escolas e a persistência de cursos noturnos para grande parte dos estudantes. Além disto, muitos estudantes chegam ao nível médio com limitações sérias de formação básica, fortemente correlacionadas com as condições sociais de suas famílias e com os problemas de organização e funcionamento das escolas de onde se originam.

Currículo mínimo e diferenciação

O formato do ensino médio no Brasil, adaptado da França no início dos anos 40 e com poucas alterações de concepção deste então, é reconhecidamente incapaz de atender a toda esta população de forma minimamente adequada. No passado, no Brasil, como em outras partes do mundo, o ensino médio era concebido como um verniz cultural ou uma preparação para os cursos universitários, para uma pequena parcela da população que conseguia chegar até este nível. Com a universalização do ensino médio, todos os países tiveram que lidar com a grande diversidade de interesses, motivações e competências deste universo de estudantes, e também com o fato de que o antigo ideal de formação geral, humanista e universal era incompatível com a grande expansão e diversificação do conhecimento em todos os campos, e acabava por reproduzir a cultura específica de determinados estratos sociais. A solução foi criar escolas abrangentes, “comprehensive”, como as high schools americanas, responsáveis por oferecer um amplo leque de opções e especializações para seus estudantes, das mais acadêmicas e exigentes às mais práticas e de conteúdo mais simples, ou, como na Europa e na maioria dos países asiáticos, diferentes redes de atendimento escolar, umas acadêmicas, outras técnicas e profissionais.

O Brasil não só não diversificou seu sistema de ensino médio, como, em uma interpretação enviesada da Lei de Diretrizes e Bases, aumentou cada vez sua carga de conteúdos obrigatórios, e eliminou as possibilidades de diferenciação que a lei permitia. De fato, a LDB, no parágrafo 2 do artigo 35, estabelece que “o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas”, e, no parágrafo 3, que “os cursos do ensino médio terão equivalência legal e habilitarão ao prosseguimento de estudos”. No entanto, a legislação tem sido interpretada como havendo somente uma modalidade de ensino médio, de tipo geral, deixando a formação profissional (com a denominação de “educação técnica”) como uma qualificação adicional, a ser obtida de forma integrada, concomitante ou subsequente. Este entendimento é claramente atípico, fazendo da educação média brasileira uma anomalia em termos internacionais.

Avaliação e Certificação

O dilema que os países precisam enfrentar é entre manter padrões altamente exigentes para o ensino médio em todas as suas modalidades, e com isto excluir uma parte significativa de sua população que não consegue acompanhar, ou criar diferentes caminhos e níveis de formação para diferentes setores da população, com o risco de reforçar, pela educação, as desigualdades sociais existentes. Os sistemas diferenciados europeus, que têm uma história reconhecida de bons resultados em termos de capacitação para o trabalho e alta empregabilidade de seus formados, hoje estão sendo revistos no sentido de ampliar o período de formação comum para os jovens até os 15 anos de idade, e combinar a formação técnica com o desenvolvimento de competências mais amplas e transferíveis entre diferentes tipos de atividades, reduzindo o grande número de áreas de capacitação extremamente detalhadas e altamente suscetíveis a se tornar obsoletas pela evolução da tecnologia e as transformações do mercado de trabalho.

O ensino médio brasileiro hoje, embora homogêneo quanto a seu formato, é altamente diferenciado em termos de qualidade, com estabelecimentos federais, estaduais municipais, públicos e privados, diurnos, noturnos e de tempo integral. Estabelecer por lei um padrão altamente exigente de organização e qualidade de desempenho, medido por exames periódicos rigorosos, pode significar, simplesmente, que a lei não será cumprida pela grande maioria dos estabelecimentos, e a grande maioria dos estudantes ficará sem certificação de nível médio, com graves problemas de acesso ao mercado de trabalho. O Brasil já tem uma experiência negativa em relação a isto, que foi a lei da reforma universitária de 1966, que pretendeu implantar o modelo norte-americano de universidade de pesquisa para todo o sistema, e que, cinquenta anos depois, está mais distante da realidade do que nunca.

A alternativa é estabelecer um padrão mínimo de exigências, deixando espaço para diferentes modalidades de formação e qualificação, e criar e desenvolver, ao mesmo tempo, padrões de competências que identifiquem os diversos níveis de desempenho considerados aceitáveis, a partir dos quais tanto o setor privado quanto os estudantes e o setor público sejam estimulados e possam favorecer a melhoria e fortalecimento contínuo do setor.

É necessário também permitir que os estudantes façam escolhas em função de seus interesses, motivações e capacitação prévia, não só entre áreas de conhecimento, mas também em áreas de formação técnica de nível médio, que pode ser proporcionada em conjunto com os requisitos mínimos de formação.

Um sistema de ensino médio diferenciado é incompatível com o atual Exame Nacional de Ensino Médio, que hoje reforça o padrão único que existe até aqui. É necessário haver um ou mais sistemas de avaliação de competências gerais em linguagem e raciocínio matemático, que toda a população precisa adquirir, e permitir que surjam ou se desenvolvam diferentes sistemas de avaliação e certificação das diferentes áreas de formação, a serem implementados por governos estaduais e instituições associadas, incluindo universidades e associações profissionais.

Este projeto estabelece uma diferença clara entre o diploma de nível médio, que é outorgado pelas escolas devidamente autorizadas para funcionar, e as certificações resultantes de avaliações externa. Para a formação acadêmica, a certificação informa se a pessoa tem um nível de competências adequado na parte geral e na parte específica de sua formação. Para a formação técnica, a certificação pode corresponder ao credenciamento para o exercício determinadas profissões, e por isto deve ser administrada em cooperação com as instituições por este credenciamento, quando for o caso.

Os sistemas de avaliação produzem escalas numéricas de pontuações, mas as interpretações dos resultados são normalmente agrupadas em poucos níveis, de insatisfatório a excelente. Este projeto estabelece que os resultados das avaliações sejam expressos nestes níveis.

Ensino Técnico

O ensino técnico tem uma natureza peculiar, na qual se destaca a necessidade de experiência prática profissional, e precisa estabelecer seus próprios sistemas de avaliação e certificação, começando pelas áreas de maior demanda e mais estruturadas, contando para isto com a experiência e a colaboração do Sistema S, dos Institutos federais, do Centro Paula Souza e outros sistemas públicos e privados do país. É importante que os alunos que seguem o ensino técnico desenvolvam competências gerais no uso de linguagem, raciocínio matemático, conhecimentos científicos e sociais, que são parte geral requerida para completar a educação secundária. Estes conteúdos, no entanto, devem ser desenvolvidos preferentemente de forma associada à área de formação especializada no estudante, e não de forma geral e disassociada.

O papel dos Estados e do Governo Federal

Finalmente, a educação média, constitucionalmente, é da responsabilidade dos Estados, e este projeto procura devolver aos Estados esta responsabilidade, em muitos aspectos. Isto é importante não só por cumprir um preceito legal, mas também porque é uma maneira de estimular a diversificação a experimentação, sem que o governo federal deixe de ter o papel importante de apoiar os estados financeira e tecnicamente, e difundir as boas práticas.

A Medida Provisória da Educação Média

A medida provisória da educação média, promulgada ontem pelo MEC, é um grande avanço em relação ao sistema que temos hoje. Ele elimina o absurdo de obrigar a todos à mesma carga de 13 ou 15 matérias obrigatórias, e permite que os estudantes escolham as áreas de estudo e aprofundamento que querem seguir. Ele também faz da formação técnica e profissional uma das possíveis áreas de formação de ensino médio, deixando de ser, como até agora, um curso adicional.

Minha principal dúvida é que, na forma em que a medida provisória está redigida, tudo está atrelado a uma Base Nacional Curricular Comum para o ensino médio que não existe, lembrando que o Ministério, em boa hora, havia decidido retirar o ensino médio do projeto da Base que está em discussão.

Se a Base Nacional para o ensino médio for elaborada como deve ser, concentrando-se somente naquilo que é básico e essencial para  todos (essencialmente, português e matemática e pouco mais), então estaremos no bom caminho. Se ela pretender, no entanto, trazer de volta, de contrabando, toda a carga de conteúdos obrigatórios que hoje está sendo eliminada, ficaremos, infelizmente, no mesmo lugar.

 

 

O Painel Internacional de Progresso Social – IPSP

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O IPSP é uma ambiciosa iniciativa um grande número de cientistas sociais de todas as disciplinas, coordenados por um Conselho Consultivo internacional presidido por Amartya Sen, de pensar os grandes problemas sociais do século XXI e propor soluções e caminhos, baseados das contribuições das ciências sociais.  As informações sobre o painel, organizadores e participantes dos 22 grupos de trabalho constituídos para discutir os diversos temas estão disponíveis no site do painel neste link. Reproduzo abaixa versão em português do manifesto de lançamento do IPSP, publicado no Le Monde em junho de 2016.   A versão preliminar do documento que está sendo produzido pelo IPSP está sendo aberta na internet para discussão e pode ser vista neste link, e todos estarão convidados a participar e opinar.

Manifesto Pelo Progresso Social

O mundo contemporâneo está sob tensão. Enfrentamos uma rápida aceleração de crises na economia, sociedade, política, cultura, ambiente, assim como nos padrões morais das pessoas. Estamos diante de um mundo que é instável, imprevisível e, assim cheio de ansiedade – uma ansiedade que ameaça a paz e a coesão social. Isto é alimentado pela falta de perspectivas e oportunidades para grandes segmentos da população, tais como os trabalhadores pouco qualificados, os jovens sem emprego, os migrantes e refugiados.

A precariedade e a insegurança real ou percebida, o aumento das desigualdades estruturais que por sua vez geram uma forte redução da mobilidade social intergeracional, afetam hoje uma grande maioria da população mundial.

Frente a esses desafios, o que vemos? Os partidos políticos tradicionais não oferecem nenhuma perspectiva atraente e se concentram na gestão das restrições financeiras existentes, escondendo sua impotência em um discurso focado em questões morais ou questões sociais de menor importância (ou seja, o aborto, o véu muçulmano, etc).

As incertezas e disfunções na condução das políticas públicas nacionais são agravadas pela cooperação cada vez menor nos organismos internacionais (por exemplo, a Organização Mundial do Comércio ou da União Europeia). No pior dos cenários, isso pode resultar na volta ou surgimento de formas alternativas, autoritárias ou populistas, de governo. A ausência de uma visão positiva de longo prazo leva a políticas inadequadas. Os movimentos de protesto que abalam as elites nos países desenvolvidos ( “occupy”, Indignados, Nuit Debout) ou que derrubaram ditaduras nos países emergentes (Primavera Árabe) têm dificuldade em encontrar idéias que motivem e unam as pessoas e formem estruturas organizadas em torno de programas consistentes.

Há uma escassez de alternativas, e políticos que se aproveitam da ira popular para explorar a instabilidade sem oferecer perspectivas sérias. Para enfrentar coletivamente estes muitos desafios, ativistas e formuladores de políticas precisam ter ferramentas para compreender a evolução das economias e sociedades, os obstáculos que impedem a identificação e / ou a implementação de soluções duradouras e que ameaçam o bem comum, e as possibilidades de transformação, com a riscos associados.

Somos mais de 300 pesquisadores em ciências humanas e sociais em todo o mundo, que tomaram a iniciativa de responder a esta necessidade oferecendo uma contribuição colegiada singular no coração dos debates públicos. Nos reunimos no Painel Internacional sobre o Progresso Social (www.ipsp.org) para produzir coletivamente um relatório sobre as iniciativas que podem conduzir as instituições e e tomadores de decisão na direção de sociedades mais justas nas próximas décadas.

Todas as disciplinas estão incluídas: história, economia, sociologia, ciência política, direito, antropologia, o estudo da ciência e tecnologia, filosofia. Nos últimos vinte anos, vários painéis internacionais de especialistas foram criados para avaliar o conhecimento científico disponível sobre vários temas de interesse para o futuro de nosso planeta: alterações climáticas, biodiversidade, poluição química, segurança alimentar, ou a proliferação nuclear. Nós somos o primeiro painel a assumir o desafio de progresso social.

Por que um painel tão grande? Desenvolvimentos consideráveis em ciências sociais e humanas ocorreram nos últimos trinta anos, e resultaram em uma melhor compreensão do que o progresso social pode servir e, mais criticamente, como alcançá-lo. Estes desenvolvimentos importantes coincidiram com uma especialização crescente do conhecimento dentro e entre as disciplinas, e uma diversificação das perspectivas culturais regionais em um mundo onde as instituições, os níveis de desenvolvimento e as dinâmicas de cresimento estão mudando rapidamente. Tornou-se impossível para um pesquisador individual, ou um pequeno grupo de especialistas, sintetizar o conhecimento acumulado por diferentes disciplinas. Produzir uma síntese desse conhecimento que seja acessível aos agentes políticos e sociais locais, nacionais e transnacionais, requer um grande esforço como o que estamos desenvolvendo, reunindo as análises de um grupo transnacional de especialistas representantativos de disciplinas, gêneros e culturas.

Na primeira parte do relatório, vamos considerar as transformações socioeconômicas, explorando as perspectivas de crescimento e restrições ambientais, as desigualdades, o futuro do trabalho, a urbanização, mercados, empresas e do estado de bem-estar. A segunda parte vai considerar os principais desenvolvimentos das políticas públicas, questionando o futuro das instituições democráticas, o Estado de direito, organizações transnacionais, governança global, os conflitos e a gestão de crises e da violência, e o papel dos meios de comunicação e formas de comunicação. Finalmente, a terceira parte será dedicada às transformações de culturas e valores, religiões, famílias, saúde e a manipulação da vida e da morte, bem como as transformações em identidades e relações sociais. A grande escopo do relatório nos permitirá propor uma perspectiva sistêmica da evolução das sociedades nas diferentes partes do mundo.

A principal mensagem a sair deste trabalho será positiva e pró-ativa. Existem oportunidades consideráveis que podem melhorar a condição humana, em quase todo o mundo. É possível erradicar a pobreza preservando o meio ambiente, viabilizar o estado de bem-estar social atacando as desigualdades de renda originárias dos mercados, liberar as políticas públicas das pressões financeiras e democratizar as decisões econômicas que determinam o destino das populações. No entanto, para alcançar essas oportunidades, temos de encontrar caminhos e superar obstáculos e resistências consideráveis. Acreditamos que uma visão dessas oportunidades, abraçada pelos cidadãos e agentes de mudança, pode contribuir para o surgimento de uma dinâmica de progresso social.

Pode um grupo diversificado produzir uma mensagem forte? Muitas vezes ouvimos que as ciências humanas e sociais discordam entre si todo tempo. Para evitar essa armadilha, nosso painel apresentará com honestidade pontos de concordância e controvérsia. Nsso painel é, em si mesmo, um experimento sobre a capacidade das ciências humanas e sociais de desempenhar um papel central na promoção concreta do progresso social. Além disso, durante o processo, ofereceremos uma plataforma com a finalidade de gerar comentários e debates públicos. Os especialistas dos governos, ONGs, think tanks, os representantes da sociedade civil e todos os cidadãos interessados são convidados a reagir à primeira versão do relatório que será colocada on-line e acessível a todos, de julho a dezembro de 2016, em www.ipsp.org. Essa interação nos permitirá permanecer tão conectados quanto possível aos grandes debates de nosso tempo.

Pode nosso painel pretender, com legitimidade, aconselhar a sociedade? A ciência moderna foi construída com a promessa de contribuir para a melhoria da espécie humana e o progresso das sociedades. Muitas esperanças foram cumpridas, mas outras permanecem cruelmente à espera de sua realização. No início do século XXI, as sociedades ainda estão sujeitas a guerras, violência, o terrorismo; desigualdades consideráveis, antigas e novas, corroem os vínculos sociais; desafios à manutenção do nosso ambiente sustentável atingem uma escala sem precedentes. A ambição do nosso painel, composto por cientistas reconhecidos, não é impor uma contribuição especializada e unilateral, mas para ajudar a estimular e nutrir um grande debate sobre o futuro das sociedades humanas e reavivar a dinâmica do progresso social.

Os dois senhores da educação média

matthew-624-10-03-13O Jornal Folha de São Paulo publica hoje, 31 de agosto de 2016, um rico caderno  especial sobre o tema do ensino médio e técnico no Brasil, para o qual contribui com o texto abaixo:

Os Dois Senhores da Educação Média

A educação média, no mundo de hoje, é chamada a atender a dois senhores: o da qualificação para as atividades profissionais e acesso ao mercado de trabalho, e o da equidade social.

No passado, a questão da equidade não se colocava: os jovens das famílias mais ricas estudavam nas escolas de elite para as profissões de mais prestígio e mais bem pagas, e os mais pobres, ou não estudavam, ou iam para cursos práticos onde eram preparados para empregos de menor prestígio e baixos salários. O Brasil, nos anos 40, que até então mal educava suas elites, tentou copiar o modelo europeu, dividindo a educação média entre cursos gerais, para os poucos que se preparavam para as universidades, e cursos profissionais (industriais, agrícolas, comerciais) para os filhos dos trabalhadores. Na Europa, com isto, foi possível ampliar a educação e criar um operariado competente que se beneficiou do crescimento da economia, sem, entretanto, eliminar as diferenças sociais entre os dois tipos de educação. No Brasil, a educação profissional de nível médio estagnou, e os empresários, com fortes subsídios, tomaram em suas mãos a aprendizagem dos trabalhadores com o Sistema “S”.

No Brasil e no mundo, agora, as coisas mudaram. Na Europa, o setor industrial diminuiu, os empregos para as qualificações profissionais mais simples se reduziram, e a divisão rígida entre educação geral e educação profissional começou a ser vista como discriminatória e em grande parte disfuncional. Enquanto isto, o Brasil ampliou o acesso ao ensino médio, que hoje é obrigatório por lei, e eliminou de vez a possibilidade de trilhas diferentes de formação – a educação técnica, que antes era uma opção, hoje só é aceita como um estudo complementar ao ensino convencional.

Na Europa, ninguém pensa em acabar com os diferentes tipos de formação para a juventude, não só porque a economia moderna requer pessoas com perfis muito distintos, mas também porque as pessoas diferem em seus interesses, motivações e capacidade de estudar e aprender, e não podem ser colocadas em um molde único. Nos diferentes países europeus, a educação comum, que terminava aos 11 ou 12 anos, agora vai até os 15 ou 16, os conteúdos gerais de linguagem, computação e raciocínio matemático dos cursos técnicos são reforçados, e os certificados técnicos de nível médio, como bac técnico francês, são valorizados e dão acesso à educação superior.

A opção brasileira por um currículo médio único, pautado por um Exame Nacional também único, tem uma explicação prática, e outra ideológica. A prática é que o prestígio e a renda proporcionados pelos diplomas universitários ainda são relativamente muito altos,  quando comparados os os diplomas de nível médio, e o ensino técnico, com a exceção dos cursos altamente seletivos dos institutos federais e estaduais, ainda é visto pela população como um caminho menos desejado. A ideológica é a noção, buscada nos escritos de Gramsci dos anos 20, e adotada pelo Ministério da Educação, de que a educação técnica, voltada para as necessidades do mercado de trabalho, aliena os trabalhadores e os impede de desenvolver a consciência crítica e revolucionária que só uma educação clássica tradicional poderia proporcionar.

O resultado desta opção foi que ela não consegue atender a nenhum de seus dois senhores. A educação geral é de péssima qualidade, e não produz os quadros técnicos e profissionais com a qualidade e a quantidade necessários para economia moderna; e o sistema escolar é fortemente estratificado, com milhões de estudantes submetidos a um currículo tradicional que poucos conseguem acompanhar, na disputa encarniçada no ENEM pelas poucas vagas disponíveis na educação superior de qualidade. Parece uma competição por competências, mas por detrás dela estão as profundas diferenças de condições de vida e oportunidades que persistem na sociedade brasileira.

É este duplo fracasso, de relevância econômica e equidade social, que leva à necessidade de se transformar profundamente o ensino médio brasileiro, aproximando-o do que ocorre no resto do mundo, com uma pluralidade de caminhos e alternativas, gerais e profissionais, teóricas e práticas, capazes de dar oportunidades e atender às condições e necessidades de uma população heterogênea e de uma economia que precisa de pessoas capacitadas em todos os níveis para se desenvolver.

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