André Lara Resende: O Mal-Estar Contemporêano

De tudo que li nestas semanas sobre o sentido das manifestações de rua no Brasil, este texto de André Lara Resende, Publicado no Valor Econômico de 5 de julho, é provavelmente o que melhor interpreta o que vem ocorrendo, e por isto precisa ser lido com muita atenção e compartido. Estou fazendo minha parte.

O mal-estar contemporâneo

Por André Lara Resende 

Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo. Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a mobilização antes que surjam as lideranças

Na tentativa de interpretar o protesto das ruas nas grandes cidades brasileiras, há uma natural tentação de fazer um paralelo com os movimentos similares nos países avançados, sobretudo da Europa, mas também nos EUA – Occupy Wall Street – assim como com os da chamada Primavera Árabe. As condições objetivas são, contudo, muito distintas. A Primavera Árabe é um fenômeno de países totalitários, onde não há representação democrática. Não é o caso do Brasil. Na Europa, sobretudo nos países mediterrâneos periféricos mais atingidos pelos efeitos da crise financeira de 2008, houve uma drástica piora das condições de vida. O desemprego, especialmente entre os jovens, subiu para níveis dramáticos. Mais uma vez, não é o caso do Brasil.

Nem os críticos mais radicais ousariam argumentar que o Brasil de hoje não se enquadra nos moldes das democracias representativas do século XX. Podem-se culpar os desacertos da política econômica nos últimos seis anos. Embora devam ficar mais evidentes daqui para a frente, os efeitos negativos da incompetência da política econômica só muito recentemente se fizeram sentir. Fato é que, desde a estabilização do processo inflacionário crônico, houve grandes avanços nas condições econômicas de vida dos brasileiros. Nos últimos 20 anos, houve ganho substancial de renda entre os mais pobres. Ao contrário do que ocorreu em outras partes do mundo, até mesmo nos países avançados, a distribuição de renda melhorou. O desemprego está em seu mínimo histórico.

É verdade que a inflação, especialmente a de alimentos, que se faz sentir mais intensamente pelos assalariados, está em alta. Por mais consciente que se seja em relação aos riscos, políticos e econômicos, da inflação, é difícil atribuir à inflação o papel de catalisadora do movimento das ruas nas últimas semanas. Só agora a taxa de inflação superou o teto da banda – excessivamente generosa, é verdade – da meta do Banco Central.

Os dois elementos tradicionais da insatisfação popular – dificuldades econômicas e falta de representação democrática – definitivamente não estão presentes no Brasil de hoje. Inflação, desemprego, autoritarismo e falta de liberdade de expressão não podem ser invocados para explicar a explosão popular. O fenômeno é, portanto, novo. Procurar interpretá-lo de acordo com os cânones do passado parece-me o caminho certo para não o compreender.

O movimento de maio de 1968 na França tem sido lembrado diante das manifestações das últimas semanas. O paralelo se justifica, pois maio de 68 é o paradigma do movimento sem causas claras nem objetivos bem definidos, uma combustão espontânea surpreendente, que ocorre em condições políticas e econômicas relativamente favoráveis. Movimento que, uma vez detonado, canaliza um sentimento de frustração difusa – um “malaise”- com o estado das coisas, com tudo e todos, com a vida em geral.

A novidade mais evidente em relação a maio de 68 na França é a internet e as redes sociais. Embora não tivesse expressão clara na vida pública francesa, a insatisfação difusa poderia ter sido diagnosticada, ao menos entre os universitários parisienses. No Brasil de hoje, a irritação difusa podia ser claramente percebida na internet e nas redes sociais. O movimento pelo passe livre fez com que este mal-estar transbordasse do virtual para a realidade das ruas. Tanto os universitários franceses de 68, quanto os internautas do Brasil de hoje, não representam exatamente o que se poderia chamar de as massas ou o povão, mas funcionam igualmente como sensores e catalisadores de frustrações comuns.

Quais as causas do mal-estar difuso no Brasil de hoje, que transbordou da internet para a realidade e levou a população às ruas?

Parecem ter dois eixos principais. O primeiro, e mais evidente, é uma crise de representação. A sociedade não se reconhece nos poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – em todas suas esferas. O segundo é que o projeto do Estado brasileiro não corresponde mais aos anseios da população. O projeto do Estado, e não do governo, é importante que se note, pois a questão transcende governos e oposições. Este hiato entre o projeto do Estado e a sociedade explica em grande parte a crise de representação.

O Estado brasileiro mantém-se preso a um projeto cuja formulação é do início da segunda metade do século passado. Um projeto que combina uma rede de proteção social com a industrialização forçada. A rede de proteção social inspirou-se nas reformas das economias capitalistas da Europa, entre as duas Grandes Guerras, reforçadas após a crise dos anos 1930. Foi introduzida no Brasil por Getúlio Vargas, para a organização do mercado de trabalho, baseado no modelo da Itália de Mussolini. A industrialização forçada através da substituição de importações, introduzida por Juscelino Kubitschek nos anos 1950, e reforçada pelo regime militar nos anos 1970, tem raízes mais autóctones. Suas origens intelectuais são o desenvolvimentismo latino-americano dos anos 1950, que defendia a ação direta do Estado, como empresário e planejador, para acelerar a industrialização.

Não nos interessa aqui fazer a análise crítica do projeto desenvolvimentista que, com altos e baixos, aos trancos e barrancos, cumpriu seu papel e levou o país às portas da modernidade neste início de século. Basta ressaltar que o desenvolvimentismo, em seus dois pilares – a industrialização forçada e a rede de proteção social – dependem da capacidade do Estado de extrair recursos da sociedade. Recursos que devem ser utilizados para financiar o investimento público e os benefícios da proteção social.

Diante da baixa taxa de poupança do setor privado e da precariedade da estrutura tributária do Estado, a inflação transferiu os recursos da sociedade para o Estado, até que nos anos 1980 viesse a se tornar completamente disfuncional. Com a inflação estabilizada, a partir do início dos anos 1990, o Estado se reorganizou para arrecadar por via fiscal também os recursos que extraía através do imposto inflacionário. A carga fiscal passou de menos de 15% da renda nacional, no início dos anos 1950, para em torno de 25%, nas décadas de 1970 a 90, até saltar para os atuais 36%, depois da estabilização da inflação. O Brasil tem hoje uma carga tributária comparável, ou mesmo superior, à das economias mais avançadas.

O projeto do PT no governo revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional- desenvolvimentismo

Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional. Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da sociedade? Parte, para a rede de proteção e assistência social, que se expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si mesmo. Os sinais dessa situação estão tão evidentes, que não é preciso conhecer e analisar os números. O Executivo, com 39 ministérios ausentes e inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.

O Estado foi também incapaz de perceber que seu projeto não corresponde mais ao que deseja a sociedade. O modelo desenvolvimentista do século passado tinha dois pilares. Primeiro, a convicção de que a industrialização era o único caminho para escapar do subdesenvolvimento. Países de economia primário-exportadora nunca poderiam almejar alcançar o estágio de desenvolvimento das economias industrializadas. Segundo, a convicção de que o capitalismo moderno exige a intervenção do Estado em três dimensões: para estabilizar as crises cíclicas das economias de mercado; para prover uma rede de proteção social; e, no caso dos países subdesenvolvidos, para liderar o processo de industrialização acelerada. As duas primeiras dimensões da ação do Estado são parte do consenso formado depois da crise dos anos 1930. A terceira decorre do sucesso do planejamento central soviético em transformar uma economia agrária, semifeudal, numa potência industrial em poucas décadas. A proteção tarifária do mercado interno, com o objetivo de proteger a indústria nascente e promover a substituição de importações, completava o cardápio com um toque de nacionalismo.

O nacional- desenvolvimentismo, fermentado nos anos 1950, teve sua primeira formulação como plano de ação do governo na proposta de Roberto Simonsen. Embora sempre combatido pelos defensores mais radicais do liberalismo econômico, como Eugênio Gudin, autor de famosa polêmica com Roberto Simonsen, e posteriormente por Roberto Campos, foi adotado tanto pela esquerda, como pela direita. Seu período de maior sucesso foi justamente o do “milagre econômico” do regime militar.

Na década de 1980, a inflação se acelera e se torna definitivamente disfuncional. As sucessivas e fracassadas tentativas de estabilização passam a dominar o cenário econômico. Com a estabilização do real, a partir da segunda metade da década de 1990, ainda com algum constrangimento em reconhecer que o nacional-desenvolvimentismo já não fazia sentido num mundo integrado pela globalização, o país parecia estar em busca de novos rumos. A vitória do PT foi, sem dúvida, parte da expressão desse anseio de mudança.

Nos dois primeiros anos do governo Lula, a política econômica foi essencialmente pautada pela necessidade de acalmar os mercados financeiros, sempre conservadores, assustados com a perspectiva de uma virada radical à esquerda. A partir daí, o PT passou a pôr em prática o seu projeto. Um projeto muito diferente do que defendia enquanto oposição. O projeto do PT no governo, frustrando as expectativas dos que esperavam mudanças, muito mais do que o aparente continuísmo dos primeiros anos do governo Lula, revelou-se flagrantemente retrógrado. É essencialmente a volta do nacional-desenvolvimentismo, inspirado no período em este que foi mais bem-sucedido: durante regime militar. A crise internacional de 2008 serviu para que o governo abandonasse o temor de desagradar aos mercados financeiros e, sob pretexto de fazer política macroeconômica anticíclica, promovesse definitivamente a volta do nacional-desenvolvimentismo estatal.

O PT acrescentou dois elementos novos em relação ao projeto nacional-desenvolvimentista do regime militar: a ampliação da rede de proteção social, com o Bolsa Família, e o loteamento do Estado. A ampliação da rede de proteção social se justifica, tanto como uma inciativa capaz de romper o impasse da pobreza absoluta, em que, apesar dos avanços da economia, grande parte da população brasileira se via aprisionada, quanto como forma de manter um mínimo de coerência com seu discurso histórico. Já a lógica por trás do loteamento do Estado é puramente pragmática. Ao contrário do regime militar, que não precisava de alianças difusas, o PT utilizou o loteamento do Estado, em todas suas instâncias, como moeda de troca para compor uma ampla base de sustentação. Sem nenhum pudor ideológico, juntou o sindicalismo de suas raízes com o fisiologismo do que já foi chamado de Centrão, atualmente representado principalmente pelo PMDB, no qual se encontra toda sorte de homens públicos, que, independentemente de suas origens, perderam suas convicções ao longo da estrada e hoje são essencialmente cínicos.

Há ainda um terceiro elemento do projeto de poder do PT. Trata-se da eleição de uma parte do empresariado como aliada estratégica. Tais aliados têm acesso privilegiado ao crédito favorecido dos bancos públicos e, sobretudo, à boa vontade do governo, para crescerem, absorverem empresas em dificuldades, consolidarem suas posições oligopolísticas no mercado interno e se aventurarem internacionalmente como “campeões nacionais”.

A combinação de um projeto anacrônico com o loteamento do Estado entre o sindicalismo e o fisiologismo político, ao contrário do pretendido, levou à sobrevalorização cambial e à desindustrialização. Só foi possível sustentar um crescimento econômico medíocre enquanto durou a alta dos preços dos produtos primários, puxados pela demanda da China. A ineficiência do Estado nas suas funções básicas – segurança, infraestrutura, saúde e educação – agravou-se significativamente. Ineficiência realçada pela redução da pobreza absoluta na população, que aumentou a demanda por serviços de qualidade.

A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento (na foto, manifestantes sobem ao teto do Congresso)

Loteado e inadimplente em suas funções essenciais, enquanto absorvia parcela cada vez maior da renda nacional para sua própria operação, o Estado passou a ser visto como um ilegítimo expropriador de recursos. Não apenas incapaz de devolver à sociedade o mínimo que dele se espera, mas também um criador de dificuldades. A combinação de uma excessiva regulamentação de todas as esferas da vida, com a truculência e a arrogância de seus agentes, consolidou o estranhamento da sociedade. Em todas as suas esferas, o Estado deixou de ser percebido como um aliado, representativo e prestador de serviço. Passou a ser visto como um insaciável expropriador, cujo único objetivo é criar vantagens para os que dele fazem parte, enquanto impõe dificuldades e cria obrigações para o resto da população. O contraste da realidade com o ufanismo da propaganda oficial só agravou o estranhamento e consolidou o divórcio entre a população e os que deveriam ser seus representantes e servidores.

A insatisfação com a democracia representativa não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. As razões dessa insatisfação ainda não estão claras, mas é possível que o modelo de representação democrática, constituído há dois séculos para sociedades menores e mais homogêneas, tenha deixado de cumprir seu papel num mundo interligado de 7 bilhões de pessoas, e precise ser revisto. O debate público deslocou-se das esferas tradicionais da política para a internet e as redes sociais. Ameaçada pelo crescimento da internet e habituada ao seu papel de agente da política tradicional, a mídia não percebeu que o debate havia se deslocado.

No caso brasileiro, perplexa com sua aparente falta de repercussão e pressionada financeiramente pela competição da internet, uma parte da mídia desistiu do jornalismo de interesse público e passou a fazer um jornalismo de puro entretenimento. Mesmo os que resistiram, cederam, em maior ou menor escala, à lógica dos escândalos. Foram incapazes de compreender a razão da sua falta de repercussão, pois não se deram conta de que o público e o debate haviam se deslocado para a internet. Surpreendida pelo movimento de protestos, num primeiro momento, a mídia não foi capaz de avaliar a extensão da insatisfação. Transformou-se ela própria em alvo da irritação popular. Em seguida, aderiu sem convencer, sempre a reboque do debate e da mobilização através da internet. A favor da mídia, diga-se que ninguém foi capaz de captar a insatisfação latente antes da eclosão do movimento das ruas. As pesquisas apontavam, até muito recentemente, grande apoio à presidente da República, considerada praticamente imbatível, até mesmo por seus eventuais adversários nas próximas eleições. Nenhuma liderança soube captar e expressar o mal-estar contemporâneo. Este é provavelmente o seu elemento novo: a internet viabiliza a mobilização antes que surjam as lideranças. Tanto as possibilidades como os riscos são novos.

O projeto nacional-desenvolvimentista combina o consumismo das economias capitalistas avançadas com o produtivismo soviético. Ambos pressupõem que o crescimento material é o objetivo final da atividade humana. Aí está a essência de seu caráter anacrônico. Os avanços da informática permitiram a coleta de um volume extraordinário de evidências sobre a psicologia e os componentes do bem-estar. A relação entre renda e bem-estar só é claramente positiva até um nível relativamente baixo de renda, capaz de atender às necessidades básicas da vida. A partir daí, o aumento do bem-estar está associado ao que se pode chamar de qualidade de vida, cujos elementos fundamentais são o tempo com a família e os amigos, o sentido de comunidade e confiança nos concidadãos, a saúde e a ausência de estresse emocional.

Os estudos da moderna psicologia comprovam aquilo que de uma forma ou de outra, mais ou menos conscientemente, intuímos todos: nossa insaciabilidade de bens materiais advém do fato de que o bem-estar que nos trazem é efêmero. Para manter a sensação de bem-estar, precisamos de mais e novas aquisições. O consumismo material tem elementos parecidos com o do uso de substâncias entorpecentes que causam dependência física e psicológica.

No mundo todo, a população parece já ter intuído a exaustão do modelo consumista do século XX, mas ainda não encontrou nas esferas da política tradicional a capacidade de participar da formulação das alternativas. Apegada a fórmulas feitas, a política continua pautada pelos temas e objetivos de um mundo que não corresponde mais à realidade de hoje. As grandes propostas totalizantes já não fazem sentido. O nacionalismo, a obsessão com o crescimento material, a ênfase no consumo supérfluo, os grandes embates ideológicos, temas que dominaram a política nos últimos dois séculos, perderam importância. Hoje, o que importa são questões concretas, relativas ao cotidiano, questões de eficiência administrativa para garantir a qualidade de vida.

É significativo que os protestos no Brasil tenham começado com a reivindicação do passe livre nos transportes públicos urbanos. A questão da mobilidade nas grandes metrópoles é paradigmática da exaustão do modelo produtivista-consumista. A indústria automobilística foi o pilar da industrialização desenvolvimentista e o automóvel o símbolo supremo da aspiração consumista. O inferno do trânsito nas grandes cidades, que se agrava quanto mais bem-sucedido é o projeto desenvolvimentista, é a expressão máxima da completa inviabilidade de prosseguir sem uma revisão profunda de objetivos. Ao que parece, a sociedade intuiu a falência do projeto do século passado antes que o Estado e aqueles que deveriam representá-la – governo e oposição, Executivo, Legislativo e imprensa – tenham se dado conta de que hoje trabalham com objetivos anacrônicos.

A insatisfação difusa dos protestos pode vir a ser catalizadora de uma mudança profunda de rumo, que abra o caminho para um novo desenvolvimento, não mais baseado exclusivamente no crescimento do consumo material, mas na qualidade de vida. Para isso, é preciso que surjam lideranças capazes de exprimir, formular e executar o novo desenvolvimento.

André Lara Resende é economista. Este texto será apresentado na Festa Literária de Paraty (Flip), em debate com o filósofo Marcos Nobre, que ocorre neste sábado.

A importação de médicos e o ato médico

nurse_pictureEnquanto o governo responde às demandas da população por melhores serviços de saúde propondo a importação de milhares de médicos, presumivelmente de Cuba, o Senado aprova a chamada “Lei do Ato Médico” que restringe a atividade profissional de enfermeiros, psicólogos e outros profissionais da saúde, que já era bastante restrita mesmo antes da lei (nos Estados Unidos e outros países, por exemplo, exames de vista podem ser feitos por optometristas, e enfermeiros certificados podem fazer consultas e receitar medicamentos, dentro de certos limites).  No mundo inteiro, a tendência é aumentar o número e as atribuições profissionais de enfermeiros e outros profissionais da saúde, ao invés de restringir suas atividades, como pretende fazer a lei do Ato Médico.

Assim, segundo a OECD, “Em 2009, a relação enfermeiro-médico variou de cinco enfermeiros por médico na Irlanda para menos de um enfermeiro por médico no Chile, Grécia e Turquia. O número de enfermeiros por médico também é relativamente baixo na Itália, México, Israel, Portugal e Espanha. A média dos países da OCDE é de pouco menos de três enfermeiros por médico [no Brasil é de menos de um] Na Grécia e na Itália, há indícios de um excesso de oferta de médicos e sub-fornecimento de enfermeiros, resultando em uma alocação ineficiente de recursos. Em resposta à escassez de médicos e para garantir o acesso adequado aos cuidados, alguns países têm nos últimos anos atribuído funções mais avançadas para os enfermeiros. As avaliações nos  Estados Unidos, Canadá e Reino Unido mostram que  enfermeiros qualificados podem melhorar o acesso aos serviços e reduzir os tempos de espera, além de oferecer a mesma qualidade de atendimento que os médicos para muitos pacientes, incluindo aqueles com doenças menores e  que necessitam de acompanhamento de rotina. A maioria das avaliações mostram um alto índice de satisfação dos pacientes, enquanto que os custos se reduzem ou não se alteram”.

Existe certamente carência de profissionais da saúde em muitas partes do país, sobretudo no interior, mas os protestos contra a má qualidade dos serviços de saúde se deram sobretudo nas grandes cidades, aonde não faltam médicos. Há muito a fazer para melhorar os serviços de saúde no país, começando por uma reforma administrativa inteligente do SUS (quem quiser se aprofundar pode ver as discussões no Monitor de Saúde aqui), mas fortalecer a reserva de mercado de trabalho dos médicos, à contramão do resto do mundo, não parece ser o melhor caminho.

Existe uma petição pública na Internet pedindo à Presidente Dilma Rousseff que vete a lei do Ato Médico. Para quem se interessar e quiser assinar, ela está disponível aqui.

 

Geraldo Martins: Duas Verdades e Oito Mentiras

Ponto de vista de Geraldo M. Martins ( educador, sociólogo e administrador. Atualmente, coordenador da Pastoral da Ecologia da Diocese da Campanha. gemartins@uol.com.br)

DUAS VERDADES E OITO MENTIRAS

Penso que a maioria dos brasileiros deve ter ficado decepcionada com pronunciamento da Presidente Dilma na noite dessa sexta feira, 21 de junho. Minha expectativa era de que nossa Chefa de Estado anunciaria algo mais contundente para responder aos anseios que o povo vem progressivamente manifestando nas ruas. Esperava por exemplo o anúncio de sua convincente decisão de que estaria enviando ao Congresso, com urgência urgentíssima, um projeto de emenda constitucional para convocação imediata de uma Assembleia Constituinte exclusiva para que possamos ter a esperada reforma política. Podia até ser uma medida heroica, pois todo mundo sabe da falência moral e representativa da maioria dos parlamentares. Mas, pelo menos estaria ficando ao lado do clamor popular. Por isso, foi um discurso longo e decepcionante que pode ser resumido em duas verdades e oito mentiras.

VERDADE 1 – VIOLÊNCIA – Ninguém discordará da convocação da Presidente: “Não podemos conviver com essa violência que envergonha o Brasil”. Foi também o apelo da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros – CNBB. Apenas teria que ser complementada que essa vergonha não esta só nas depredações ocorridas nas manifestações. Haveria de ser incluída a violência gigantesca contra as populações indígenas, contra o meio ambiente, contra os direitos humanos e uma lista enorme de outras como a violência do trânsito, do tráfico, da carga tributária, da falta de atendimento médico que matam diariamente mais de mil pessoas.

VERDADE 2 – DEMOCRACIA – Ninguém poderá discordar também que a democracia precisa ser fortalecida, defendida e aprimorada. Dilma se lembrou da sua geração afirmando que “O Brasil lutou muito para se tornar um país democrático”, mesmo tendo que pegar em armas, assaltar bancos e partir para a guerrilha. Sem dúvida, a democracia e seu corolário, a liberdade é o maior valor e a maior conquista da sociedade para a convivência cívica. Ruy Barbosa já sentenciava: A pior democracia é preferível à melhor das ditaduras. Mas também não podemos nos iludir com uma falsa democracia sequestrada e vilipendiada pelos donos do poder, pelos políticos e por todas as formas de corrupção. Indiscutivelmente, não temos uma democracia participativa.

ENGANAÇÃO 1 – REFORMA POLÍTICA – Reconhecendo que um dos principais focos dos protestos é a rejeição do sistema político vigente que está falido e extremamente corrompido, a Presidente prometeu que agora vai se esforçar para promover uma ampla reforma política. Mas o que fez o governo até agora? Esse é o mote de todas aas campanhas eleitorais e nessa última foi veementemente defendida pela candidata. Bom, agora até faz sentido, pois a campanha para 2014 já está nas ruas. Mas não deixa de ser uma tremenda enganação. Se a promessa fosse uma prioridade para valer, teria defendido e anunciado uma imediata convocação de uma ASSEMBLEIA CONSTITUINTE ESPECÍFICA para tratar dessa reforma. Uma representação política autêntica precisa ter legitimidade e não apenas o cumprimento das formalidades eleitorais.

ENGANAÇÃO 2 – GASTOS COM A COPA DO MUNDO – A Presidente minimizou os gastos afirmando que o dinheiro não saiu dos cofres públicos, mas das empresas e dos Estados. Ora o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público e a imprensa já se fartaram de denunciar o superfaturamento, os custos elevados e os desvios de recursos públicos para obras dos estádios, aeroportos, etc. O pior é que a maioria delas foram obras faraônicas e afrontosas diante de muitas carências da população principalmente nas áreas de saúde de saneamento.

ENGANAÇÃO 3 – MOBILIDADE URBANA – Dilma anunciou que convidará governadores e prefeitos para aperfeiçoar as instituições e anunciar novos planos de ação, como o Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Ora, para a realização da Copa estão sendo gastos 12 bilhões de reais contemplando apenas os acessos viários de carros para estádios, hotéis e aeroportos. Nenhuma prioridade foi dada ao transporte coletivo para as massas de trabalhadores urbanos. As ruas estão congestionadas. Além do preço das passagens, há que se pagar um enorme desperdício de tempo. Quem estimulou o transporte individual isentando os carros do IPI?

ENGANAÇÃO 4 – AS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS – O discurso defendeu os partidos e o sistema eleitoral sem os quais não poderia haver uma verdadeira democracia. Mas será que o voto é realmente livre? Não vivemos sob uma ditadura dos partidos que impigem aos eleitores seus candidatos? Por outro lado, é impossível ignorar o anacronismo e o abastardamento do regime presidencialista que depende de coalizões espúrias e barganhas interesseiras e nefastas, como é hoje chamado o peemedemismo e os partidos de mentirinha, segundo o Ministro Barbosa.

ENGANAÇÃO 5 – LIVRE ACESSO Á INFORMAÇÃO – Mais uma conversa para engamelar, pois a Lei de Acesso à Informação já existe há tempo para todos os poderes da República e governos estaduais e municipais. Porque estão o Planalto decreta sigilo sobre todas as informações de gastos das viagens presidenciais ao exterior? Porque o governo apoia a PEC 37,  já conhecida como PEC da impunidade, pois pretende tirar o poder de investigação do Ministério Público?. Caso seja aprovada, ela inviabilizará algumas investigações como: desvio de verbas, crime organizado, abusos cometidos por agentes dos Estados e violações de direitos humanos. E depois, a presidente fala em tom solene que “a melhor forma de combater a corrupção é com transparência e rigor”.

ENGANAÇÃO 6 – ROYALTIES PARA A EDUCAÇÃO – Essa ladainha já rola desde o primeiro mandato de Lula. Quem vai acreditar que o Congresso Nacional irá destinar 100% dos royalties para a educação? Seria essa a fórmula salomônica de resolver a disputa entre os estados produtores e não produtores? Como explicar essa prioridade se o governo está financiando universidades na África?

ENGANAÇÃO 7 – MELHORIA DO SUS – A presidente prometeu “trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde”. Só se forem médicos desempregados na Europa ou de países em crise econômica que estejam dispostos a aceitar a remuneração miserável que os médicos brasileiros recebem e por isso se veem forçados a abandonar o SUS para sobrevirem. E o que dizer do estado caótico dos hospitais com suas filas enormes de pacientes sem atendimento? Imaginem quantos hospitais não poderiam ter sido construídos e equipados com os gastos de apenas um dos estádios megalomaníacos?

ENGANAÇÃO 8 – COMBATE À CORRUPÇÃO – Bom, essa mentira não precisa de comentários. Basta ver as negociatas com congressistas e a leniência com as obras superfaturadas. Não seria enganação se a presidente anunciasse que iria reduzir pela metade os quarenta ministérios que expressam uma autêntica corrupção institucional.

 

Bernardo Sorj: A política além da Internet

philippoteaux_LamartinePareceria que Maio de 68 nunca aconteceu. Menos ainda a Revolução Francesa. A razão é simples, na época ainda não existiam nem o telefone celular nem Internet. Esta parece ser a conclusão lógica de certas analises que explicam as mobilizações que o Brasil está vivendo pelo papel das redes virtuais. Certamente os novos sistemas de comunicação são mais rápidos e eficientes que o texto mimeografado utilizado pelos estudantes nos anos sessenta, o folheto tipografado pelos revolucionários dos séculos passados, ou a pichação de paredes ou textos manuscritos pregados em praças públicas antes da invenção da imprensa. Mas as razões pelas quais as pessoas decidem exprimir insatisfação e anseios de mudança devem ser procuradas em mentes e corações e não nas maquinas.

As tecnologias de comunicação influenciam os processos sociais, pois elas são uma expressão e extensão de nossos sentidos e habilidades, como lembra McLuhan. Os novos meios de comunicação disseminam a informação em tempo real e em forma viral, facilitando chamados de protesto e concentração de pessoas. Num contexto como o brasileiro, onde a apatia política tinha tomado conta da sociedade, as novas tecnologias passaram a ser particularmente relevantes por causa da incapacidade ou falta de vontade dos partidos políticos, sindicatos e grêmios estudantis de mobilizar a população no espaço publico. O que antes era possível e normal sem as redes virtuais hoje só parece viável graças às novas tecnologias. Mas o novo hoje no Brasil é o povo na rua e não o uso da Internet. Lembremos que ela foi utilizada recentemente no abaixo-assinado pedindo que Renan Calheiros não assuma a presidência do Senado, e mais de 1,5 milhões de assinaturas foram inoperantes.

O característico das manifestações que o Brasil está vivendo, assim como em outros lugares do planeta, é a confluência de novos meios de comunicação extremamente eficazes com instituições políticas incapazes de dar voz a diversos segmentos da população. Esta confluência possui uma afinidade eletiva: as mensagens curtas dos MSN e das redes sociais são as mais adequadas para criar sinergias entre indivíduos que não possuem nem estão à procura de discursos ideológicos, algo que os marqueteiros políticos já tinham entendido.

Aterrissando no que está acontecendo no Brasil, não se trata de argumentar que a explosão social era previsível. Explosões sociais não são previsíveis. Menos ainda no caso brasileiro, onde dez anos de governo do PT, que antes da chegada ao poder era o principal canal de mobilização de massas, neutralizou a disposição ao protesto de rua das organizações sindicais – em particular de funcionários públicos, historicamente os mais militantes-, da sociedade civil, dos movimentos sociais e grêmios estudantis. A capacidade de cooptação politica do PT foi extremamente eficiente, e os grupos que ela não atingia pareciam ter caído na apatia politica, em parte pela incapacidade das oposições de mobilizá-las.

No novo cenário social brasileiro surgiram camadas que não estão ligadas à malha institucional controlada pelo PT, as chamadas novas classes médias. Se trata de setores que passaram a integrar as expectativas da sociedade de consumo e de que seus filhos acedam à educação universitária, o que se traduziu num endividamento crescente facilitado pelos mais variados sistemas de crédito. Quando possível ela tenta fugir do sistema público de saúde e educação, considerados de baixa qualidade.

A nova classe media foi amplamente festejada por economistas oficiais que enfatizaram o incremento do ingresso monetário, esquecendo que uma parte da mesma mora em residências que não têm serviços de esgoto ou de recolhimento de lixo, que os custos mensais de manutenção de telefone celular, Internet, carro, e juros esvaziam o ingresso familiar no inicio de mês, mais ainda quando possuem filhos estudando no ensino privado ou pagam seguro saúde.

Ainda assim não era claro como este novo setor se expressaria politicamente, porque aparentemente se tratava de um grupo apático e descrente da política. O porquê desta atitude era explicado pelos analistas por uma variedade de razões. Para alguns se tratava de um grupo que ascendeu recentemente e portanto estava satisfeito com sua situação. Para outros, entre os quais me incluía, se tratava de um setor socialmente fragmentado e preocupado com estratégias individuais de sobrevivência.

O diagnostico possivelmente estava certo em relação aos pais, mas se mostrou errado em relação aos filhos. Tudo indica que o grosso dos manifestantes são estudantes universitários –mas não organizados pelo movimento estudantil – , sendo que, dado o crescimento da população estudantil nas ultimas décadas, boa parte certamente pertence a famílias de classe média que ascenderam recentemente. Com a disponibilidade e a força de corações e mentes, certamente ingênuas e ainda não domesticados por responsabilidades familiares e/ou laborais, os jovens saíram às ruas para expressar o sufoco em que vivem com suas famílias, aglutinados pelo problema que é comum a todos eles: a baixa qualidade dos serviços públicos. Baixa qualidade que eles, assim como grande parte e da cidadania, credita à corrupção e falcatruas dos políticos. O extraordinário do acontecido é que, apesar de atos de vandalismo, as manifestações não expressam uma minoria de ativistas radicais frente a uma maioria silenciosa conservadora e contrária a eles; pelo contrario, a maioria silenciosa se identificou com os manifestantes.

Assim, o que deveria ter sido um momento de ufanismo nacional, a Copa das Confederações, se transformou no seu reverso, num sinal para demostrar insatisfação com a realidade do país. Por quê? Porque a Copa aparece para os cidadãos não como sendo o rosto de um país que afirma uma imagem de sucesso nacional, mas como a face de obras públicas caras e superfaturadas. Como me disse um manifestante na minha precária pesquisa de campo, “se for para roubar, pelo menos que construam hospitais.”

As manifestações representam um momento de inflexão na história do Brasil contemporâneo. Depois de vinte anos de silêncio a juventude redescobre o happening político, o sentimento prazeroso, e no momento atual, sem deslizar em ideologias omnipotentes e totalitárias, de ser parte de uma ação coletiva na qual a participação gera o sentimento de empoderamento, que suspende por um momento as preocupações individuais. Certamente é diferente das de outros tempos onde as ideologias ocupavam um papel importante e os objetivos eram, ou nos pareciam, claros. Grande parte dos manifestantes não são nem pró-governo nem pró-oposição, ou melhor, são contra ambos. O que eles querem é um pais melhor e desconfiam do sistema politico e dos políticos que eles as associam à corrupção e à impunidade.

Para ganhar eleições será preciso que os partidos políticos decifrem e traduzam em propostas, ou pelo menos promessas, as demandas que apareceram nas ruas. Tanto o governo quanto a oposição foram tomados por surpresa. O primeiro procurará limitar os danos, mantendo sua base já consolidada de apoio eleitoral mas elaborando um discurso de “ouvimos o clamor das ruas” que incluirá na sua retórica a necessidade de mudanças no sistema político. Para a oposição o desafio é maior, o de traduzir o mal-estar social numa proposta política suficientemente convincente que, se certamente não eliminará a desconfiança da população, pelo menos gere a esperança de que políticos são capazes de traçar o caminho para um Brasil melhor.

Três comentários sobre o povo nas ruas

No meio de tanto que tem sido dito sobre as manifestações populares dos últimos dias, três comentários me chamaram atenção, e expressam  meu entendimento do que está ocorrendo.

O primeiro foi da economista Eliana Cardoso, ao dizer  que, se Brasília quiser mesmo responder às demandas populares, poderia começar cortando imediatamente para vinte os quarenta ministérios de hoje existem, e reduzir em 10% os salários e benefícios dos nossos “representantes” . O segundo foi do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, afirmando que o voto das ruas não pode prevalecer sobre o voto das urnas. E o terceiro foi de Bolívar Lamounier, ao descrever o romantismo que parece prevalecer no que tem sido dito por muitos que se apresentam para falar em nomes dos manifestantes.

O comentário de Eliana me parece resumir o grande fosso que hoje separa grande parte da população, sobretudo nos grandes centros urbanos, que sofre com a inflação crescente e a má qualidade dos serviços públicos, não se beneficia diretamente dos programas sociais do governo e vê com desgosto o mercado persa em que transformou grande parte da política brasileira, em que os políticos negociam abertamente votos e apoios por cargos e os corruptos mais óbvios continuam impunes e poderosos como sempre. Se o espetáculo de Brasília é lamentável, o da maioria das capitais estaduais não é melhor. Enquanto via horrorizado, pela TV, como tentavam incendiar a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, me perguntava ao mesmo tempo quanta gente, no Estado, sabe mesmo para que ela serve.

Fernando Haddad tem toda razão ao dizer a vontade de milhões, expressa nas urnas, e que dá aos governantes um mandato para tomar decisões e implementar políticas, não pode ser atropelada pelo voto das ruas, expresso por porta-vozes cuja representatividade ninguém sabe exatamente qual é. Suas propostas sobre como lidar com os transportes públicos em São Paulo contribuíram para sua eleição, e seu papel é levar estas propostas à frente, e não mudar de rumo de repente. Mas o mandato político não pode ser somente uma formalidade legal, precisa ter legitimidade, as pessoas precisam acreditar que realmente os eleitos as representam, e os protestos de centenas de milhares de pessoas nas ruas nos últimos dias mostram a grande fragilidade desta representação.

É esta falta de legitimidade que cria o caldo de cultura para o florescimento das ideologias “românticas” que parecem dar o tom de grande parte das manifestações que se ouvem de muitos de seus supostos porta-vozes, e de que nos fala Bolivar Lamounier. “Romântico”, aqui, não tem ver com amores, paixões e ódios, mas com um tipo específico de ideologia política que sonha com um passado ou um futuro, ambos utópicos, em que as pessoas vivem em comunidade, tudo é decidido e feito em comum, em harmonia entre homens e mulheres e destes com a natureza. Comparado com o mundo perfeito dos românticos, o mundo real, de instituições, leis, recursos escassos, interesses contraditórios, tudo isto é inaceitável. Eleições, parlamentos, juízes, instituições, bancos centrais, nada disto serve para nada. “Que se vayan todos!” como se dizia na Argentina em um de seus momentos mais tristes. No mundo utópico não existem limitações de recursos, os serviços públicos são perfeitos e gratuitos, não se pagam impostos, e só precisamos trabalhar naquilo que gostamos. Alguns românticos, como os velhos hippies, decidem se recolher em comunidades isoladas de paz e amor, aonde os malefícios do mundo real não entram; outros, como os antigos anarquistas, partem para a destruição deste mundo imperfeito, contra o qual tudo vale, inclusive o terrorismo.

A grande vantagem das ideologias românticas é que elas são simples e fáceis de entender; a grande desvantagem é que elas são impossíveis. Não há exemplos de sociedades organizadas conforme as ideologias românticas (as utopias, por definição, não existem), mas não faltam exemplos de sociedades em que as instituições públicas acabaram sendo destruídas e substituídas por regimes populistas, autoritários, corruptos e ineficientes, que conseguem apoio de muitos e se apresentam como representantes dos romantismos mais puros. Mas existem também exemplos de sociedades que foram capazes de reformar suas instituições públicas, fazendo com que as pessoas se sintam representadas, tenham canais adequados de expressão,  e onde a apropriação deslavada dos recursos públicos pelos políticos não seja permitida nem tolerada.

Precisamos urgentemente de governabilidade e legitimidade, e, para mim, pelo menos, a principal lição do voto das ruas é a necessidade urgente de uma reforma política que consiga produzir isto, com as inevitáveis imperfeições do mundo real.

Internacionalização dos doutorados brasileiros

University World News, uma publicação internacional sobre o ensino superior, publicou uma série três matérias de  sobre a mobilidade internacional dos estudantes de doutorado, cujo número  mais recente pode ser visto aqui.  Esta é a nota que preparei sobre a situação brasileira:

Os doutorados no exterior aumentam e diminuem, mas a maioria retorna

Com 190 milhões de habitantes e cerca de 592 mil residentes estrangeiros, o Brasil é uma sociedade relativamente fechada, apesar de uma longa história de comércio de escravos africanos até meados do século 19 e grandes fluxos de imigrantes portugueses, italianos e japoneses, alemães até a Primeira Guerra Mundial. Hoje, a maioria dos imigrantes vêm de Portugal, Japão, Itália, Espanha e países fronteiriços como Paraguai, Bolívia, Argentina e Uruguai. Cerca de um quinto – 140 mil – têm diplomas de ensino superior,e são principalmente de Portugal, Itália, Argentina e Espanha, de acordo com dados do Censo Demográfico de 2010.

Brasil tem formado cerca de 12.000 doutores por ano em suas universidades, ccomparado com 4.000 em 1998, que principalmente no sector do ensino superior e da pesquisa (77%). A maioria dos títulos são obtidos nas principais universidades do Brasil, incluindo as universidades estaduais de São Paulo e Campinas e as universidades federais do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, de acordo com dados do Ministério da Ciência e Tecnologia. Entre 1996 e 2006, de acordo com estudo publicado pela CGEE (CGEE 2010), as instituições brasileiras formaram cerca de  50.000 doutores. Destes, apenas 680 foram de pessoas nascidas fora do país, sendo o maior número da Argentina (126), Portugal (80) e Chile (59).

Estudantes brasileiros no exterior

Há também um constante fluxo de brasileiros indo obter seus diplomas no exterior, principalmente com bolsas de agências nacionais. No início de 1990, as agências brasileiras apoiavam cerca de 2.000 estudantes de doutorado por ano no exterior. Na medida em que o número de programas de doutorado no país aumentou, o número de bolsas de doutorado para estudos no exterior caiu, mas outros tipos de bolsas de estudo foram introduzidas. Em 2009, havia 3.760 brasileiros com bolsas de estudo no exterior, 783 deles em programas de doutoramento, 1910 em programas “sanduíche” – estudantes matriculados em cursos de doutorado no Brasil vão para o exterior por um ano ou mais – e 1067 em atividades de pós-doutorado.

Em 2011, o governo brasileiro anunciou o programa “Ciência Sem Fronteiras”, que pretendia enviar 100 mil estudantes ao exterior em quatro anos. A maioria dessas bolsas é para períodos de curta duração para estudantes de graduação, mas cerca de 10 mil era para programas de doutoramento – 2500 por ano – o que significa um retorno aos níveis do início da década de 1990 (Castro, Barros, Ito-Adler, e Schwartzman 2012). O programa é limitado às ciências naturais e tecnologia, partindo do princípio de que as ciências sociais e humanas continuariam a receber apoio de fora do programa.

Dados recentes mostraram que o ‘Ciência sem Fronteiras’ já tinha fornecido 22.000 bolsas, das quais 5.000 para o estudo nos EUA, 3.000 em Portugal e 2.500 em Espanha. Do total, apenas 825 eram para programas de doutorado completo, e 2.300 para pós-doutorados.

Dados do Instituto de Educação Internacional nos Estados Unidos mostram que, em 2011-12, havia cerca de 9.000 estudantes brasileiros nos EUA, marcando um aumento pequeno, mas constante, mas ainda muito aquém do número de estudantes da China, Índia, Coréia e até mesmo do México.

A fuga de cérebros não tem sido um problema

Em contraste com a Índia, China e, na América Latina, México e Argentina, o Brasil não sofre de um fluxo regular de cidadãos educados para o exterior. No passado, a maioria dos brasileiros que iam ao exterior para estudos de doutoramento com bolsas mantinham seus empregos e voltavam para melhores posições em suas instituições de origem (Glaser e Habers 1978). Na década de 1980, quando a economia estagnou, milhares de brasileiros se mudaram para os Estados Unidos, Portugal e Japão – os dekaseguis – para trabalho temporário em atividades não-qualificadas, e muitos voltaram como a economia melhorou a partir de década de 1990 (Carvalho, 2004).

A estimativa é que agora existem cerca de 1,5 milhões de brasileiros no exterior. Hoje, quem vai para o exterior com bolsas do governo têm que concordar em voltar ou pagar suas bolsas, e acordos internacionais impedem que eles obtenham status de residente nos países do estudo. No entanto, não há nenhuma garantia de que eles vão encontrar trabalho adequado ao voltar, embora haja bolsas de estudo que podem ser concedidas para recém doutores dispostos a trabalhar em universidades públicas.

Survey of Earned DoctoratesOs dados mais recentes do da Academia Nacional de Ciências dos EUA mostra que, dos 149 novos doutores brasileiros com vistos temporários em os EUA, 42% pretendiam ficar nos – uma proporção menor do que a de outros países latino-americanos (Argentina, México, Venezuela e Colômbia), todos com cerca de 60%, ou para a Índia ou a China, com cerca de 80% com a intenção de ficar. Não é certo que aqueles que estão pretendem ficar exterior vão realmente fazê-lo, mas, em újltima análise, não são sanções ou multas, mas a criação de oportunidades adequadas de trabalho, que vão trazer os que estudam no exterior de volta para casa.

Referências

Carvalho, José Alberto Magno (2004) “Migrações Internacionais do Brasil da nas Ultimas Duas Décadas do Século XX:. Algumas facetas de um Processo Complexo amplamente Desconhecido” Migrações Internacionais ea Previdência social: 11.

Castro, Claudio De Moura, Hélio Barros, James Ito-Adler e Simon Schwartzman (2012), “Cem Mil Bolsistas no exterior.” Interesse Nacional: 25-36.

CGEE (2010) “Doutores 2010: Estudos da Demografia da base de tecnico-scientifica brasileira”. Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, em Brasília.

Glaser, William A e G Habers Christopher (1978), a fuga de cérebros: Emigração e Retorno; resultados de uma pesquisa comparativa multinacional UNITAR de profissionais de países em desenvolvimento que estudam no exterior. Oxford, New York: Pergamon Press

Romulo Pinheiro: universidades nacionais e regionais na Noruega

Rômulo Pinheiro é  professor e pesquisador de origem portuguesa que trabalha na Noruega, e tem se debruçado sobre o tema das universidades regionais.  Ele é autor, entre outras publicações, de  Universities and Regional Development – A Critical Assessment of Tensions and Contradictions, publicado em 2012.  Sobre a questão das universidades regionais  brasileiras que perdem ou reduzem seus vínculos locais quando nacionalizam seu público e seus temas de pesquisa, ele mostra que o problema não é só nosso:

O mesmo se tem passado na Noruega, onde estudantes de regiões mais ricas, e muitos de agregados familiares mais abastados (rendimento & educação), ocupam vagas, especialmente na área de medicina (pois existem poucas vagas a nível nacional), nas universidades de caráter mais regional; embora estas não sejam de caráter local -pois essas não tem cursos de medicina – mas nacional e global. Um problema que tem emergindo refere-se ao fato de muitos desses estudantes, especialmente médicos, por uma razão ou outra (falta de trabalho ou necessidade de ir para hospitais mais centrais onde se pratica as áreas mais prestigiadas da profissão), acabam por abandonar as regiões onde estudaram. Por exemplo, em Tromso, no norte da Noruega, somente cerca 10% dos médicos acabam por ficar na região, especialmente os que originam de outras áreas do pais – Bergen, Oslo, Trondheim, etc. O reverso também existe, i.e. estudantes das áreas mais periféricas que estudam nas universidades mas centrais, e muitos nunca voltam aos seus locais de origem.

Em relação ao balanço entre as funções locais e nacionais/globais, o debate continua, e recentemente publiquei um artigo no Tertiary Education & Management no contexto do sul da Noruega, e os dilemas da universidade local. Existe um consenso de que as universidades, especialmente aquelas de caráter compreensivo e com uma cultura institucionalizada de pesquisa, simultaneamente tem um papel local/regional, nacional e global. Como essas funções são abordadas em pratica difere de contexto para contexto. Por exemplo, em Tromsø, onde fiz trabalho de campo recentemente, existem 3 tipos de acadêmicos e grupos de pesquisa: os de caráter mais locais (‘localists’), envolvidos em atividades de caráter mais local; os ‘globalists’, que estão mais virados para as atividades de excelência de caráter internacional; e o um terceiro grupo, que eu refiro como “entrepeneurs” que estabelecem ligações (links) entre os aspetos locais (e.g. características regionais) e globais (scientific excellence). Um exemplo é a medicina comunitária, onde estes grupos de pesquisa especializaram-se em áreas de interesse local (e.g. doenças cardiovasculares) e, no processo, desenvolveram competências únicas que ajudam a universidade a projetar-se internacionalmente. Em termos de “enrollments”, algumas universidades, como Tromso, estabeleceram cotas em áreas estratégicas (e.g. educação, odontologia, etc.), reservadas para estudantes locais, no entuito de contribuir para o desenvolvimento regional. Muitas universidades de caráter mais regional tem como objetivo recrutar cerca de 70% dos seus estudantes localmente (da região), mas devido a pressões demográficas (população de estudantes a declinar depois de 2015, todas as regiões fora de Oslo), muitas estão ativas no recrutamento de estudantes fora da região, incluindo os internacionais (mestrado e doutorado).

Transferência de renda: O fim da pobreza?

Convite-Transferência-de-Renda-no-BrasilEste é o título do novo livro de Sônia Rocha, que conta a história das políticas de transferência de renda no Brasil, desde  a aposentadoria rural nos anos 70 e 80 até o Bolsa Família atual, passando pelas experiências do Bolsa Escola em diferentes estados nos anos 90. Ao final, Sonia pergunta se, de fato, as transferências de renda significam o fim da pobreza no Brasil.

O lançamento do livro está marcado para o dia 6 de junho às 19 hs na Livraria da Travessa, Rua Visconde de Pirajá 572, Ipanema, Rio de Janeiro.

Universidades: nacionais, regionais?

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Dados do Censo do Ensino Superior 2011

Dados publicados recentemente pelo Ministério da Educação, e analisados em matéria do jornal O Globo, mostraram que São Paulo é o Estado que mais envia candidatos selecionados pelo sistema unificado de seleção (SISU, baseado no ENEM) para outras regiões do país.  Os dados mostram também que a área de medicina é a aquela em que mais estudantes migram de estado, 46%, o triplo da média geral (O Globo  17 e  25/5/2013).

 Interpretei isto como podendo significar que, ao invés de facilitar a mobilidade de estudantes de regiões mais pobres para outras mais desenvolvidas, tornando o ensino superior mais equânime deste ponto de vista, o SISU poderia estar tendo o efeito oposto, ao permitir que estudantes do Estado mais rico ocupassem as vagas nas universidades regionais, reduzindo assim as oportunidades de estudo da população local.

Esta conjectura levantou uma série de questões que precisam ser mais aprofundadas, algumas das quais estão analisadas em texto disponível  aqui.

Primeiro, qual é ou deveria a função das universidades públicas e, mais especificamente, das universidades federais?  Elas devem ser entendidas como instituições nacionais ou mesmo globais, abertas a estudantes de todas as origens e desenvolvendo trabalhos de pesquisa de valor universal, e neste sentido sua localização geográfica não seria relevante? Ou elas deveriam ser entendidas como instituições voltadas, pelo menos em parte, a atender às demandas de acesso à educação da população local, assim como realizar pesquisas e atividade de extensão de relevância também local ou regional?

A análise sugere que, embora o sistema de seleção unificada do SISU possa estar contribuindo para nacionalizar em certa medida as universidades federais, isto não chega a alterar o fato de que as instituições de ensino superior brasileiras sejam predominantemente locais, do ponto de vista da mobilidade dos estudantes, que é o que estes dados permitem ver. Existem diferenças em relação aos estados menores e de fronteira, que recebem e enviam mais estudantes para outras partes, e também por áreas de conhecimento, com destaque para a área de medicina e odontologia, que tende a operar em um marco mais nacional na seleção dos estudantes, em prejuízo dos estudantes de origem local.

Seriam necessários dados sobre pesquisas, atividades de extensão e emprego dos alunos formados para saber se, além de atender predominantemente à população local, as instituições de ensino superior estão atendendo de outras formas as necessidades e temas regionais, e contribuindo ou não para fixar os estudantes nos locais em que se formam. É possível supor que, além do SISU, outros mecanismos estão atuando para nacionalizar as instituições de ensino superior, incluindo as avaliações do ENADE, idênticas para todo o país, e, no setor privado, a crescente integração das instituições em conglomerados que buscam padronizar os cursos que proporcionam e, assim, ganhar economias de escala.

É um processo que ocorreu também no setor das comunicações, em que os jornais, rádios e estações de TV se integraram a redes nacionais, assim como na área financeira, com os grandes bancos nacionais que absorveram e substituíram os bancos locais, e assim por diante. É um processo inevitável, mas que não elimina o fato de que as pessoas, na sua grande maioria, vivem e permanecem nos locais em que nascem. A pergunta que fica é se, neste processo, a vida local não se esvazia, a capacidade de lidar com as questões do quotidiano, que são também em grande parte locais, se reduz, e se as instituições de ensino superior não deveriam ter alguma responsabilidade em lidar com isto.

ENEM – SISU: Democratização do Ensino Superior?

 

cotas
Globo Educação, 17/5/2013

Uma das principais justificativas para transformar o antigo ENEM em exame nacional de acesso ao ensino superior foi que, ao eliminar ou reduzir a importância dos vestibulares isolados, o acesso ao ensino superior ficaria mais democratizado, já que os estudantes das regiões mais pobres poderiam agora entrar nas melhores universidades nas regiões mais ricas.

No entanto, os dados das matrículas do SISU, publicados pelo Ministério da Educação e objeto de matéria d e hoje, 17 de maio de 2013, no O Globo Educação,  mostram que pode estar ocorrendo exatamente o oposto: não são os estudantes dos Estados mais pobres que estão chegando aos mais ricos, e sim os do Estado mais rico, São Paulo, que estão ocupando as vagas nos estados que antes eram ocupadas pela população local.

A explicação é simples.  Como o Estado mais populoso e rico do país,  São Paulo forma um grande número de jovens com boa qualificação, mas que apesar disto não conseguem vagas nas universidades públicas do Estado, que são relativamente poucas em relação ao tamanho da população. Eles podem, no entanto, competir com vantagem pelas vagas das universidades de outros Estados, ocupando assim o lugar de estudantes locais. Com isto, as universidades federais nos demais estados podem estar recebendo alunos mais qualificados, mas, ao mesmo tempo, reduzindo seu papel de instituições locais ou regionais, que deveriam, em principio, atender com prioridade à população dos lugares em que estão instaladas.

São Paulo precisa aumentar a oferta de educação superior para sua população, mas isto dificilmente alteraria esta tendência. Em termos gerais, a existência de um exame nacional unificado favorece os estudantes mais qualificados, que normalmente vêm de famílias de regiões mais ricas e níveis sociais mais altos, e que por isto passam para seus filhos um capital cultural e oportunidades de estudo  menos acessíveis a famílias mais pobres e em regiões também mais pobres. É desejável que algumas instituições universitárias trabalhem com critérios estritos de mérito para selecionar seus estudantes, venham de onde vier, a exemplo do ITA e, em certa medida, da UNICAMP, que sempre buscaram recrutar seus alunos em todo o país.  Mas o sistema de ensino superior como um todo precisa considerar também a diversidade regional e social da população do país e criar oportunidades diferenciadas para os diferentes setores. A lei de cotas adotada pelo governo federal não é a melhor maneira de fazer isto, mas não deixa de ser um reconhecimento desta necessidade.  O ENEM e o SISU trabalham em sentido contrário.

 

 

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