Devagar com o andor, concordo. Sobretudo com os que carregam o andor do primeiro santo milagreiro que passa.
Meu guru nesta área é um velho, mas também atualizado analista e crítico de sistemas de “merit pay” chamado Richard Murnane, da Universidade de Harvard. Ele tem um estudo antigo sobre o tema, e de vez em quando volta ao assunto. Nos seus trabalhos mais recentes, ele observa que nos estudos mais rigorosos sobre desempenho de professores, a variância de um mesmo professor ao longo de anos é de 50%. E começou a investigar os fatores subjacentes.
De um lado ele suspeita que a maioria dos professores costuma dar o que tem – a ideia de que eles teriam algo mais a dar se houver benefício pode ser equivocada. Uma boa triagem poderia ser muito mais eficaz do que incentivos – ou, se você quiser, os incentivos deveriam ser para atrair e manter os melhores – e para isso, claro, a avaliação de desempenho dos alunos é o melhor indicador. Não confundir o uso de indicadores com o uso de sistemas de incentivos. De outro lado ele levanta algumas hipóteses para a gigantesca variância – nível de par ou ímpar – e oferece duas boas suspeitas. Uma delas são perturbações da ordem – uma classe com um ou mais alunos que perturbam além dos limites ou incidentes desse tipo que derrubam os melhores esforços por terra. A outra é que a variabilidade de métodos de ensino dentro de uma escola – o que milita a favor da consistência típica das antigas escolas confessionais e, de certa forma, dos nossos sistemas estruturados de ensino. O aluno que a cada ano aprende frações de um jeito dificilmente vai render muito –por melhor que seja o professor.
Há soluções? Sim, incentivos podem ser uma delas, mas há muitas outras, mais básicas, que o Brasil ainda não fez. E sem essa, corremos o risco de colocar azeitona num pastel de vento.
No momento em que o Rio de Janeiro enfrenta uma greve de professores contra o sistema de premiação por desempenho das escolas implantado pela Secretaria Estadual de Educação, causou grande impacto a notícia de que a cidade de New York havia interrompido um programa semelhante de pagamento por mérito, porque não tinha mostrado resultados. Se os americanos chegaram a esta conclusão, não significa isto que os sindicatos têm razão, e que esta política de incentivos, adotada também pela prefeitura do Rio, pelas secretarias de educação do Estado de São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e em outras regiões, deveria ser abandonada?
Devagar com o andor. New York interrompeu um programa experimental e voluntário de três anos, que não mostrou resultados por uma série de fatores analizados em um estudo detalhado da Rand Corporation, mas por outro lado a cidade de Washington continua implementando um programa vigoroso de bonus para professores que mostram bons resultados e demissões para os que não conseguem desempenhar minimamente suas funções.
Existem muitas razões pelas quais um sistema de incentivos pode não funcionar, o que não significa que não seja importante reconhecer, prestigiar e premiar quem mostra dedicação e resultados em seu trabalho; apoiar e ajudar a quem se esforça mas não consegue ir adiante; e, no limite, punir ou afastar quem não tem motivação ou condições de fazer o que precisa ser feito.
Uma parte importante da discussão sobre os sistemas de premiação por desempenho é o uso de testes como indicadores de resultados. Uma das críticas é que eles podem levar as escolas e professores a treinar os alunos para os testes, deixando o resto da educação de lado. Eles podem levar escolas a só aplicar os testes aos melhores alunos, como parece estar acontecendo com a Prova Brasil, afetando o IDEB; e existe ainda o problema de as escolas e os professores não saberem interpretar os maus resultados em um teste, nem saber o que fazer para melhorar, ficando somente com o estigma do mau desempenho.
E no entanto, se bem desenvolvidas e utilizadas, avaliações por testes são insubstituíveis como instrumentos para saber o que está acontecendo, identificar problemas e buscar soluções. Nos debates havidos sobre testes e sistemas de mérito, o que fica cada vez mais claro é que, sozinhos, eles não conseguem resolver os problemas da educação, e podem até piorar a situação, pelas resistências e clima de conflito que podem gerar; mas que podem ter um papel muito importante se usados como parte de uma política mais ampla de melhora da educação.
Dois artigos recentes também do New York Times (que me foram gentilmente enviados, já devidamente traduzidos, pela vereadora Andrea Gouvea Vieira) mostram muito bem isto, ao discutir o posicionamento recente da conhecida educadora Diane Ravitch contra o uso dos testes (a tradução dos textos para o português está disponível aqui). Um deles, de Paul Tough, cita o Secretario de Educação de Massachussetts, Paul Reville, para o qual “estratégias tradicionais de reforma não irão, de um modo geral, permitir a superação das barreiras para o aprendizado dos alunos em condições de pobreza”. Segundo o autor, “os reformistas também precisam tomar medidas concretas para tratar toda a gama de fatores que mantêm o atraso dos estudantes pobres. Isso não significa esperar sentados por utópicas transformações sociais. Significa levar para as salas de aula estratégias específicas, baseadas em intervenções fora da sala de aula: trabalhar intensamente com as famílias menos favorecidas para melhorar ambientes domésticos para crianças pequenas; fornecer educação de alta qualidade na primeira infância para crianças de famílias mais necessitadas; e, quando as aulas começarem, proporcionar aos estudantes pobres um eficaz sistema de apoio emocional e psicológico, além, naturalmente, do apoio acadêmico”.
O outro artigo, de David Brooks, é ainda mais contundente. Segundo ele, “Ravitch acha que a solução é se livrar dos testes. Mas é um caminho que só levaria a uma letargia e mediocridade perpétua. A verdadeira resposta é manter os testes e responsabilidade, mas certificando-se de que cada escola tenha um sentido claro de missão, um principio e uma cultura moral forte que se faça sentir ao se chegar na sua porta. A tese de Ravitch é de que os Estados Unidos têm escolas locais humanizadas que estão ameaçadas por fanáticos por testes. O fato é que várias escolas ficaram espiritualmente exauridas e até os grandes professores estão lutando numa cultura inerte. São os reformistas que normalmente criam a paixão, usando os testes como alavanca. Se a sua escola ensina para testar, não é culpa do teste, mas sim dos diretores”.
No momento em que o Rio de Janeiro enfrenta uma greve de professores contra o sistema de premiação por desempenho das escolas implantado pela Secretaria Estadual de Educação, causou grande impacto a notícia de que a cidade de New York havia interrompido um programa semelhante de pagamento por mérito, porque não tinha mostrado resultados. Se os americanos chegaram a esta conclusão, não significa isto que os sindicatos têm razão, e que esta política de incentivos, adotada também pela prefeitura do Rio, pelas secretarias de educação do Estado de São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e em outras regiões, deveria ser abandonada?
Devagar com o andor. New York interrompeu um programa experimental e voluntário de três anos, que não mostrou resultados por uma série de fatores analizados em um estudo detalhado da Rand Corporation, mas por outro lado a cidade de Washington continua implementando um programa vigoroso de bonus para professores que mostram bons resultados e demissões para os que não conseguem desempenhar minimamente suas funções.
Existem muitas razões pelas quais um sistema de incentivos pode não funcionar, o que não significa que não seja importante reconhecer, prestigiar e premiar quem mostra dedicação e resultados em seu trabalho; apoiar e ajudar a quem se esforça mas não consegue ir adiante; e, no limite, punir ou afastar quem não tem motivação ou condições de fazer o que precisa ser feito.
Uma parte importante da discussão sobre os sistemas de premiação por desempenho é o uso de testes como indicadores de resultados. Uma das críticas é que eles podem levar as escolas e professores a treinar os alunos para os testes, deixando o resto da educação de lado. Eles podem levar escolas a só aplicar os testes aos melhores alunos, como parece estar acontecendo com a Prova Brasil, afetando o IDEB; e existe ainda o problema de as escolas e os professores não saberem interpretar os maus resultados em um teste, nem saber o que fazer para melhorar, ficando somente com o estigma do mau desempenho.
E no entanto, se bem desenvolvidas e utilizadas, avaliações por testes são insubstituíveis como instrumentos para saber o que está acontecendo, identificar problemas e buscar soluções. Nos debates havidos sobre testes e sistemas de mérito, o que fica cada vez mais claro é que, sozinhos, eles não conseguem resolver os problemas da educação, e podem até piorar a situação, pelas resistências e clima de conflito que podem gerar; mas que podem ter um papel muito importante se usados como parte de uma política mais ampla de melhora da educação.
Dois artigos recentes também do New York Times (que me foram gentilmente enviados, já devidamente traduzidos, pela vereadora Andrea Gouvea Vieira) mostram muito bem isto, ao discutir o posicionamento recente da conhecida educadora Diane Ravitch contra o uso dos testes (a tradução dos textos para o português está disponível aqui). Um deles, de Paul Tough, cita o Secretario de Educação de Massachussetts, Paul Reville, para o qual “estratégias tradicionais de reforma não irão, de um modo geral, permitir a superação das barreiras para o aprendizado dos alunos em condições de pobreza”. Segundo o autor, “os reformistas também precisam tomar medidas concretas para tratar toda a gama de fatores que mantêm o atraso dos estudantes pobres. Isso não significa esperar sentados por utópicas transformações sociais. Significa levar para as salas de aula estratégias específicas, baseadas em intervenções fora da sala de aula: trabalhar intensamente com as famílias menos favorecidas para melhorar ambientes domésticos para crianças pequenas; fornecer educação de alta qualidade na primeira infância para crianças de famílias mais necessitadas; e, quando as aulas começarem, proporcionar aos estudantes pobres um eficaz sistema de apoio emocional e psicológico, além, naturalmente, do apoio acadêmico”.
O outro artigo, de David Brooks, é ainda mais contundente. Segundo ele, “Ravitch acha que a solução é se livrar dos testes. Mas é um caminho que só levaria a uma letargia e mediocridade perpétua. A verdadeira resposta é manter os testes e responsabilidade, mas certificando-se de que cada escola tenha um sentido claro de missão, um principio e uma cultura moral forte que se faça sentir ao se chegar na sua porta. A tese de Ravitch é de que os Estados Unidos têm escolas locais humanizadas que estão ameaçadas por fanáticos por testes. O fato é que várias escolas ficaram espiritualmente exauridas e até os grandes professores estão lutando numa cultura inerte. São os reformistas que normalmente criam a paixão, usando os testes como alavanca. Se a sua escola ensina para testar, não é culpa do teste, mas sim dos diretores”.
Todos os que conhecemos minimamente a Prova Brasil e o IDEB sabemos de sua importância e do avanço que representou. Mas nem todos sabemos de sua fragilidade. Isso ainda é mais grave no caso da Provinha Brasil e do ENEM. Em todas as provas há um problema de documentação insuficiente. No caso da Prova Brasil, há um problema grave de calibração dos itens, que fragiliza e ameaça a comparação das Provas. Até hoje, que eu saiba, ninguém soube explicar o aumento dos resultados de 2009. No caso do IDEB, a ideia de que 6 pontos no IDEB equivalem à média dos países desenvolvidos é tão crível quanto os contos da Carochinha – mas todo mundo acredita nisso. No caso da Provinha Brasil e do ENEM inexiste validade de construto. E por aí vai. Tendo em vista a virtual inexistência de pessoas formadas em psicometria entre nós, e os riscos dos consensos e pressões existentes nos relatórios de organismos internacionais, parece-me que a forma adequada de realizar uma auditoria técnica seria por meio da contratação direta de especialistas, que assinariam seus pareceres individualmente, com o peso de sua reputação.
Recebi de José Francisco Soares o texto abaixo sobre as limitações do IDEB que colocam em questão a proposta de torná-lo uma medida oficial da qualidade das escolas, apesar de reconhecer a contribuição que o índice trouxe.
IDEB NA LEI?
A proposta do Plano Nacional de Educação enviada pelo poder Executivo para análise pela Câmara dos deputados, projetos de lei de iniciativa de deputados, colunas em revista e editoriais de jornais defenderam, nas últimas semanas, a inserção do IDEB em leis educacionais. Se esta idéia for vitoriosa, o IDEB será alçado à condição de síntese oficial da qualidade da educação básica no Brasil. Naturalmente nessa situação, os sistemas e as escolas buscarão usar políticas e práticas que aumentem o valor desse indicador, tornando este índice a bússola da educação básica brasileira. Antes de tudo ocorrer, é razoável que o IDEB passe por escrutínio público e técnico. Este texto pretende contribuir para esse necessário debate.
Como se sabe o IDEB é o produto dois números. O primeiro é um indicador de desempenho dos alunos, obtido através da Prova Brasil e o segundo um indicador de rendimento obtido com o Censo Escolar.
O indicador de desempenho é uma média das proficiências dos alunos, presentes nas escolas no dia da prova Brasil, nos testes de leitura e de matemática. O fato de o IDEB considerar apenas os alunos presentes sinaliza que a maneira mais fácil de aumentar o seu valor é dificultar a presença dos alunos mais fracos no dia da Prova Brasil. O uso da média sugere que para aumentar o IDEB, a escola pode concentrar seus esforços nos seus alunos com maior capacidade de aprendizagem, os quais, obtendo desempenhos mais altos, elevarão a média da escola.
Para agregar as proficiências em Leitura e em Matemática em um único número, a metodologia do IDEB faz primeiramente uma padronização dessas duas proficiências, e em seguida toma sua média como indicador de desempenho. Por um artefato estatístico pouco conhecido e analisado, a proficiência padronizada em Matemática é quase sempre maior do que a em Leitura. Ou seja, o IDEB assume que os alunos de educação básica de nosso país estão melhores em Matemática do que em Leitura, fato que contraria todas as outras análises.
O segundo número usado para compor o IDEB é um indicador de rendimento, i.e., uma média das taxas de aprovação das séries de cada ciclo. Entre todos os tipos de média usa-se a média harmônica, uma construção estatística que, embora completamente adequada à situação, é de difícil entendimento já que se trata do inverso da média aritmética dos inversos.
Como conseqüência do uso do produto para sintetizar os indicadores de desempenho e rendimento, cria-se uma equivalência entre vários valores dos dois indicadores. Ou seja, um maior desempenho compensa uma maior reprovação. As conseqüências educacionais das taxas de substituição induzida pelo uso do produto na fórmula do IDEB precisam ser explicitadas e sua adequação para políticas públicas educacionais estabelecidas. Isto não foi feito ainda.
Tem-se divulgado, principalmente imprensa, que se pode usar a experiência de interpretação de notas escolares, usualmente atribuídas com números entre 0 e 10, para interpretar o IDEB. Isso facilitaria a compreensão do índice. No entanto, o IDEB só atinge o valor mais alto em uma situação inusitada, aquela em que todos os alunos de uma mesma escola têm a mesma nota e essa nota é a maior nota possível. Isto obviamente não ocorre em situações educacionais reais. A interpretação ingênua do IDEB como nota da escola é muito problemática, pois toma como reais situações que são apenas construções estatísticas. Por exemplo, um IDEB de 5 não é tão baixo como a nota 5 e escolas com IDEB de 4 e 5 estão muito longe uma das outras, ao invés de próximas como as notas sugerem.
Finalmente, e muito mais importante é o fato pouco apreciado é que o IDEB tem alta correlação com o nível socioeconômico do alunado. Assim, ao atribuir a esse indicador o status de síntese da qualidade da educação, assume-se que a escola pode superar toda a exclusão promovida pela sociedade. Há uma farta literatura que mostra que isso é impossível. Todos os alunos têm direito de aprender, e os conhecimentos e habilidades especificados para educação básica devem ser os mesmos para todos. No entanto, obter este aprendizado em escolas que atendem alunos que trazem menos de suas famílias é muito mais difícil, fato que deve ser considerado quando se usa o indicador de aprendizagem para comparar escolas e identificar sucessos.
Todos estes pontos são de conhecimento dos que tem estudado os aspectos estatísticos do IDEB e que já propuseram soluções que, naturalmente, precisam do mesmo escrutínio que se defende aqui. Cabe ressaltar também que algumas destas limitações afetam os indicadores similares ao IDEB criados por estados e municípios.
A necessária discussão das limitações do IDEB, nesse momento que se advoga sua inscrição em leis, deve, entretanto, iniciar-se reconhecendo sua fundamental contribuição para a promoção da qualidade da educação básica no Brasil. Foi a criação do IDEB que trouxe a idéia de que o aprendizado dos alunos e seu fluxo entre as várias etapas da educação básica é, hoje, a mais clara expressão do direito constitucional à educação
São três as críticas dos deputados. A primeira é que nós consideramos que a participação da Sociedade na formulação da política é algo de menor importância. Pelo contrário, o que criticamos foi o fato de a discussão ser capturada pelos interesses corporativos ligados ao setor. A discussão precisa ser mais ampla e deveria tomar como ponto de partida uma proposta articulada e coerente, feita pelo governo, que tomasse em conta o que já se sabe sobre como transformar uma educação medíocre – como a que temos – em uma educação de melhor qualidade. Nosso artigo buscou justamente ampliar essa discussão.
Os deputados dizem que nosso foco se limita aos aspectos de gestão educacional, e afirmam que, nos anos 90, esta abordagem foi testada e “fracassou especialmente porque lhe faltava priorizar a ampliação das condições de financiamento da educação e de valorização do magistério”. Na realidade, apresentamos em nosso documento oito questões estruturantes de política educacional, sendo que só a primeira tratava de gestão. A descrição do que ocorreu nos anos 90 não é correta. Uma das mais importantes inovações da época foi a criação do FUNDEF, que aumentou substancialmente os recursos para a Educação Fundamental. Por outro lado, muito pouco foi tentado naqueles anos no sentido de melhorar efetivamente o funcionamento e a qualidade dos sistemas escolares, embora a ênfase na avaliação fosse um passo importante para isto. No ensino superior, as tentativas de inovação institucional buscadas por Paulo Renato de Souza não foram adiante por causa da oposição virulenta das corporações.
A terceira crítica é que não reconhecemos a importância dos professores nem a necessidade de mais recursos para a educação. Essa afirmação não se coaduna nem com o que o texto diz nem com o que dele se pode inferir. Os professores são fundamentais em qualquer sistema educacional, e eles precisam ser bem pagos, inclusive para fazer a profissão de magistério mais atraente. No entanto, sabemos também que nao há relação necessária entre mais gastos, inclusive salários, e mais qualidade da educação. De fato, não adianta colocar mais recursos na educação sem que exista uma política clara a respeito de como estes recursos serão utilizados e sem garantia de que terão resultados claros sobre a qualidade e a eficiência da educação do país. É esta relação entre recursos e resultados que o PNE não estabelece e que, a nosso ver, só se logra por meio de políticas e práticas consistentes, mais do que por meio de leis genéricas
Entrevista a Chico Santos publicada no Valor Econômico, 5/7/2011, sobre o livro “Brasil – A Nova Agenda Social”
Simon Schwartzman e Edmar Bacha
O Brasil já ultrapassou a etapa de atendimento das necessidades básicas da população e agora, sem descuidar dos mais pobres, precisa avançar na agenda das políticas sociais, buscando um salto de qualidade nos serviços prestados. Em essência, essa é a tese que está contida no livro que o economista Edmar Bacha e o sociólogo Simon Schwartzman, ambos ex-presidentes do IBGE, organizaram, reunindo textos de 18 autores sobre os temas saúde, educação, previdência, políticas de renda e violência urbana. O trabalho resulta de seminários organizados pelo Instituto de Política Econômica Casa das Garças, dirigido por Bacha, e pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), presidido por Schwartzman.
Em entrevista ao Valor, Bacha e Schwartzman dizem que a universalização da saúde prevista na Constituição relegou o princípio da equidade e criou uma “focalização perversa”, que acaba desfavorecendo os mais pobres. Pregam o ensino pago nas universidades públicas e, indo além do livro que será lançado hoje em São Paulo (Livraria da Vila), propõem o uso das Forças Armadas no combate à violência urbana.
Valor: O que juntou um economista e um sociólogo para fazer esse trabalho?
Bacha: A Faculdade de Ciências Econômicas de Belo Horizonte. Nós dois nos formamos no mesmo ano, na mesma faculdade, em 1963. A Faculdade de Ciências Econômicas tinha três cursos: economia, ciências sociais e administração… Na verdade a preocupação com a questão social não é exclusiva, nem de sociólogos nem de economistas.
Valor: O senhor um dia (década de 1970) comparou o Brasil a um misto de Bélgica no econômico e Índia no social (Belíndia). E agora, qual a relação entre o quadro macroeconômico e o social?
Bacha: Obviamente que a gente veio de uma condição miserável. Lá nos anos 1970 e 1980, os índices sociais do Brasil eram vergonhosos, dado o nível de renda que o país tinha. O Simon também participou do seminário e do livro que a gente fez, nos anos 80, junto com um historiador americano chamado Herbert Klein (“Transição Incompleta”) no qual, justamente, a temática era essa: o país tinha feito a transição de uma economia agrária para uma economia industrial urbana, mas tinha deixado para trás boa parte da população que tinha se transferido do campo para a cidade e que estava vivendo em condições miseráveis, sem educação, sem saúde. De lá para cá, a partir da redemocratização (1985) e da estabilização (1994), o Brasil fez enormes progressos. Eu acho que, nas necessidades básicas da população, demos conta do recado. É isso que a gente quer dizer quando está discutindo uma “Nova Agenda Social”: a gente precisa ir além do básico.
Valor: O Brasil realmente deu conta do básico?
Schwartzman: Não totalmente. O que acontece hoje é que tem problemas que atingem não os 16 milhões [número oficial de pessoas que ainda vivem na miséria no Brasil], mas grande parte dos 170 milhões [o restante da população]. São pessoas que não estão entre os extremamente pobres, mas que vivem em situação complicada na periferia das grandes áreas urbanas, não têm acesso a esgoto, têm problema sério de falta de acesso à saúde… Ainda se pensa muito da forma antiga. Problema no Brasil? Pobreza extrema! Problema do Brasil? Grande desigualdade! Tudo isso ainda existe, mas a pobreza extrema diminuiu, a desigualdade diminuiu. Os problemas são de outro tipo, questões muito complicadas e que estão sendo muito pouco consideradas.
Bacha: Está faltando foco.
Valor: A política de combate à pobreza recém-lançada pela presidente Dilma está errando no foco?
Schwartzman: Não estou entrando no mérito da política especificamente. O fato de focalizar em um segmento da população que ainda vive uma pobreza muito grande não está errado. O problema não é esse. O problema é: cadê o foco em outras coisas?
Bacha: Vou por os números no que ele está falando. Nessas cinco áreas que a gente considera no livro, o governo gasta 24% do PIB. Quanto disso é para a pobreza extrema? É 0,5% do Bolsa Família, 0,6% do Loas [benefício pago a idosos e deficientes físicos] e 1,5% da aposentadoria rural. Nós estamos falando aí de 2,6% do PIB. Ou seja, do que chamamos de políticas sociais no Brasil, só 10% de fato são focados no pobre. Os outros 90% são para outra gente. Então, não é só que a natureza do problema mudou. É que a maneira como a gente gasta não parece ser adequadamente focada. Paulo Renato [ministro da Educação do governo Fernando Henrique Cardoso, morto há dez dias] pôs todo mundo na escola. Agora, vamos ensinar a eles alguma coisa.
Valor: O SUS, teoricamente, universalizou a saúde…
Bacha: Universalizou, mas o que a população quer é plano de saúde. É essa ideia de que o SUS é para os pobres, exceto quando eu preciso dele para emergências e para os gastos extraordinários. Foi concebido como universal, e de fato é muito desigual. E é desigual porque foi concebido como universal. Criou o espaço necessário para que os grupos de interesse com real poder político no país se aproveitassem da chamada universalidade para poder beneficiar a si próprios. A Constituição fala que a saúde é universal, mas não diz em nenhum lugar que ela é equitativa. A equidade não foi assumida como o valor principal desse processo.
Valor: Como se transpõe essa análise para a educação?
Schwartzman: O que se gasta com ensino superior público é sete vezes mais do que se gasta com ensino básico. Há alguma distorção aí, não é? E tem outra ordem de questão. Será que as escolas estão funcionando como deveriam? As universidades estão produzindo competência, pesquisa e conhecimento correspondentes aos seus custos? O mesmo se pergunta na saúde.
Valor: É possível, politicamente, o Brasil ter um ensino público universitário cobrado?
Bacha: A Colômbia cobra, o Chile cobra…
Schwartzman: Até o México está começando a cobrar, a Inglaterra cobra, a China cobra, todos os países da Europa Oriental cobram, a Ásia inteira cobra… Por que o Brasil não pode cobrar?
Valor: Hoje, todos concordam que é necessário reformar a Previdência. Qual é a reforma possível?
Bacha: Hoje, já gastamos mais do que 11% do PIB com previdência. É 7,2% com o INSS, 2% com o sistema público federal e 2% com o estadual e municipal. Isso, com 10% da população com mais de 60 anos. Em 2050, vamos ter 30% da população com mais de 60 anos. Hoje, as aposentadorias estão atreladas ao salário mínimo. O salário mínimo está atrelado ao PIB… Essa conta não vai fechar, logo, logo.
Valor: Vai ser preciso mexer na Constituição para fechar as contas?
Bacha: Seguramente. Acho que hoje o Brasil não faria essa Constituição. Você estava saindo da ditadura, com uma enorme dívida política e social a ser paga… e com a inflação comendo. E sem criar nenhuma percepção de restrição orçamentária. Existe uma concepção segundo a qual o princípio da solidariedade social, com o qual todos nós concordamos, exige a universalização dos serviços. E a Constituição proclama isso e instituiu isso. De fato, o que ela criou foi uma focalização perversa. Queremos fazer uma focalização correta. E é assim que a gente vai produzir a solidariedade.
Valor: As políticas da inclusão produtiva dos mais pobres estão caminhando de maneira correta?
Schwartzman: O que a gente tem sobre isso [no livro] é a parte das políticas de renda, Bolsa Família… O que você pode dizer do Bolsa Família é que, basicamente, deu um pequeno ganho monetário para populações de muito baixa renda. Além disso, você não vê efeito sobre educação, sobre saúde… O programa que o governo lançou agora, tenho a impressão que não acrescenta muito. Em parte, é uma extensão do Bolsa Família
Valor: Como tratar o problema da segurança pública e como a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro pode contribuir?
Bacha: O que parece que é peculiar do Rio, por causa da geografia, é o domínio territorial [pelo tráfico armado] dos morros que são vizinhos aos locais onde os ricos moram. Normalmente, a pobreza está no subúrbio. Não sei se o formato específico das UPPs é extensivo a outras experiências. Fora isso, tem diversas experiências aqui no Brasil de sucesso no combate ao crime violento e que o Rio está adotando, indo além da UPP. São Paulo, Belo Horizonte, Diadema… E tem outro aspecto [não está no livro] que é o papel das Forças Armadas. Acho que é um tema importante e emergente: qual o papel que as Forças Armadas podem ter para lidar com a violência, especialmente no Norte e no Nordeste do país, onde as estruturas administrativas dos governos locais parecem ser insuficientes?
Valor: A macroeconomia pode ser um obstáculo para que se dê esse salto de qualidade que os senhores propõem nas políticas sociais?
Bacha: Com a macroeconomia de 1980, não dava nem para começar a pensar. Só estamos considerando esses problemas da forma como estamos porque a macroeconomia permite.
Valor: Mesmo com os escorregões fiscais?
Bacha: São questões de conjuntura. Não existe risco de uma hiperinflação, risco de crise do balanço de pagamentos… Estamos discutindo qual é o grau de aperto ideal da política monetária. Aqui e no resto do mundo. Nesse ponto de vista, estamos normais. Nossas políticas sociais é que não são normais.
Schwartzman: O que a gente pergunta é como usar melhor o que a gente tem. Estamos dizendo que, no tamanho que a gente está, temos que fazer melhor.
Comparto abaixo o convite de Claudia Costin, Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, para a inauguração de uma escola Municipal dedicada a Paulo Renato.
Caros amigos,
Amanhã, dia 1º de julho, às 10 horas, iremos inaugurar a Escola Municipal Paulo Renato de Souza, à Rua Jacareúba s/n em Cosmos, comunidade do Paçuaré, em Campo Grande, Rio de Janeiro. A irmã do ex-ministro virá especialmente para a ocasião. Gostaria de convidar todos os amigos do Paulo Renato para esta celebração da sua vida e do seu legado.
Um abraço a todos,
Claudia Costin
P.S. Um ônibus sairá da Secretaria às 8:30 para a escola. Quem desejar ir, pode deixar o nome no telefone 21-2976.2478 ou 2479.
Será no dia 5 de julho na Livraria da Vila, Alameda Lorena 1731, às 7 da noite. Os detalhes do livro estão aqui. Para comprar o livro diretamente da editora, clicar aqui.
Ministro da Educação nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, Paulo Renato fica na história como o responsável por duas das principais revoluções na educação pública do país, a institucionalização dos sistemas de avaliação da educação brasileira em todos os níveis, através do INEP, e o Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental, o FUNDEF, transformado depois em FUNDEB, que garantiu que os recursos constitucionais destinados à educação fossem efetivamente utilizados para isto.
Paulo Renato teve também uma grande frustração, que foi quase não ter conseguido mexer na educação superior pública. O episodio mais lembrado desta história foi a recusa em nomear o candidato que encabeçava a lista de indicados pela UFRJ para o cargo de reitor, partindo da premissa de que esta indicação não poderia ser simplesmente uma decisão corporativa da instituição, mas deveria tomar em conta o fato de que se tratava de uma universidade financiada com recursos públicos e que deveria responder também às políticas mais gerais de um governo legitimamente eleito, o que gerou uma greve prolongada e fortemente politizada. Tentou tornar as universidades mais autônomas e responsáveis pela gestão de seus recursos, pela implantação de orçamentos globais associados a metas de desempenho, projeto que não prosperou; criou o Exame Nacional de Cursos, o Provão, que pela primeira vez produziu dados sobre a qualidade dos cursos superiores no país, mexeu com o ensino privado, mas não chegou a afetar o setor público; e foi responsável pela criação da Gratificação de Estímulo à Docencia, a GED, uma tentativa de vincular a remuneração dos professores ao número de aulas dadas, melhorando a desastrosa relação professor / aluno nas universidades públicas, que acabou sendo incorporada aos salários. No período de retração econômica ao final dos anos 90, manteve estáveis os gastos públicos com o ensino superior, tendo sido acusado por isto de responsável pelo “arrocho salarial” dos professores.
De lá para cá, como antes dele, ninguém ousou cobrar nada das universidades federais. Depois, com o crescimento da economia, os salários aumentaram, os cargos se multiplicaram, e novas universidades foram sendo criadas. As disputas desapareceram e, com elas, a tentativa de fazer com que estas instituições definissem com clareza suas metas e cumprissem efetivamente as finalidades para as quais foram criadas.
Paulo Renato fez do Ministério da Educação uma agência efetiva de políticas públicas voltada para os interesses do país, e não uma simples lugar de distribuição de benefícios para sua clientela. Sucedeu em muitas coisas, não conseguiu outras, mas abriu caminhos e apontou direções que precisam ser retomadas.