Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais

Este é o texto da carta entregue em 30 de abril de 2008 ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, contra as leis raciais no Brasil, que também assinei.

Uma vez publicada, a carta recebeu a adesão de 4163 pessoas

Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais

Excelentíssimo Sr. Ministro:

Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197) promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), a primeira contra o programa PROUNI e a segunda contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro, serão apreciadas proximamente pelo STF. Os julgamentos terão significado histórico, pois podem criar jurisprudência sobre a constitucionalidade de cotas raciais não só para o financiamento de cursos no ensino superior particular e para concursos de ingresso no ensino superior público como para concursos públicos em geral. Mais ainda: os julgamentos têm o potencial de enviar uma mensagem decisiva sobre a constitucionalidade da produção de leis raciais.

Nós, intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais, dirigimo-nos respeitosamente aos Juízes da corte mais alta, que recebeu do povo constituinte a prerrogativa de guardiã da Constituição, para oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da República.

Na seara do que Vossas Excelências dominam, apontamos a Constituição Federal, no seu Artigo 19, que estabelece: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. O Artigo 208 dispõe que: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. Alinhada com os princípios e garantias da Constituição Federal, a Constituição Estadual do Rio de Janeiro, no seu Artigo 9, § 1º, determina que: “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição”.

As palavras da Lei emanam de uma tradição brasileira, que cumpre exatos 120 anos desde a Abolição da escravidão, de não dar amparo a leis e políticas raciais. No intuito de justificar o rompimento dessa tradição, os proponentes das cotas raciais sustentam que o princípio da igualdade de todos perante a lei exige tratar desigualmente os desiguais. Ritualmente, eles citam a Oração aos Moços, na qual Rui Barbosa, inspirado em Aristóteles, explica que: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.” O método de tratar desigualmente os desiguais, a que se refere, é aquele aplicado, com justiça, em campos tão distintos quanto o sistema tributário, por meio da tributação progressiva, e as políticas sociais de transferência de renda. Mas a sua invocação para sustentar leis raciais não é mais que um sofisma.

Os concursos vestibulares, pelos quais se dá o ingresso no ensino superior de qualidade “segundo a capacidade de cada um”, não são promotores de desigualdades, mas se realizam no terreno semeado por desigualdades sociais prévias. A pobreza no Brasil tem todas as cores. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2006, entre 43 milhões de pessoas de 18 a 30 anos de idade, 12,9 milhões tinham renda familiar per capita de meio salário mínimo ou menos. Neste grupo mais pobre, 30% classificavam-se a si mesmos como “brancos”, 9% como “pretos”, e 60% como “pardos”. Desses 12,9 milhões, apenas 21% dos “brancos” e 16% dos “pretos” e “pardos” haviam completado o ensino médio, mas muito poucos, de qualquer cor, continuaram estudando depois disso. Basicamente, são diferenças de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior.

Apresentadas como maneira de reduzir as desigualdades sociais, as cotas raciais não contribuem para isso, ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação. E, contudo, mesmo no universo menor dos jovens que têm a oportunidade de almejar o ensino superior de qualidade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem novas desigualdades:

  • As cotas raciais exclusivas, como aplicadas, entre outras, na Universidade de Brasília (UnB), proporcionam a um candidato definido como “negro” a oportunidade de ingresso por menor número de pontos que um candidato definido como “branco”, mesmo se o primeiro provém de família de alta renda e cursou colégios particulares de excelência e o segundo provém de família de baixa renda e cursou escolas públicas arruinadas. No fim, o sistema concede um privilégio para candidatos de classe média arbitrariamente classificados como “negros”.
  • As cotas raciais embutidas no interior de cotas para candidatos de escolas públicas, como aplicadas, entre outras, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), separam os alunos proveniente de famílias com faixas de renda semelhantes em dois grupos “raciais” polares, gerando uma desigualdade “natural” num meio caracterizado pela igualdade social. O seu resultado previsível é oferecer privilégios para candidatos definidos arbitrariamente como “negros” que cursaram escolas públicas de melhor qualidade, em detrimento de seus colegas definidos como “brancos” e de todos os alunos de escolas públicas de pior qualidade.


A PNAD de 2006 informa que 9,41 milhões de estudantes cursavam o ensino médio, mas apenas 5,87 milhões freqüentavam o ensino superior, dos quais só uma minoria de 1,44 milhão estavam matriculados em instituições superiores públicas. As leis de cotas raciais não alteram em nada esse quadro e não proporcionam inclusão social. Elas apenas selecionam “vencedores” e “perdedores”, com base num critério altamente subjetivo e intrinsecamente injusto, abrindo cicatrizes profundas na personalidade dos jovens, naquele momento de extrema fragilidade que significa a disputa, ainda imaturos, por uma vaga que lhes garanta o futuro.

Queremos um Brasil onde seus cidadãos possam celebrar suas múltiplas origens, que se plasmam na criação de uma cultura nacional aberta e tolerante, no lugar de sermos obrigados a escolher e valorizar uma única ancestralidade em detrimento das outras. O que nos mobiliza não é o combate à doutrina de ações afirmativas, quando entendidas como esforço para cumprir as Declarações Preambulares da Constituição, contribuindo na redução das desigualdades sociais, mas a manipulação dessa doutrina com o propósito de racializar a vida social no país. As leis que oferecem oportunidades de emprego a deficientes físicos e que concedem cotas a mulheres nos partidos políticos são invocadas como precedentes para sustentar a admissibilidade jurídica de leis raciais. Esse segundo sofisma é ainda mais grave, pois conduz à naturalização das raças. Afinal, todos sabemos quem são as mulheres e os deficientes físicos, mas a definição e delimitação de grupos raciais pelo Estado é um empreendimento político que tem como ponto de partida a negação daquilo que nos explicam os cientistas.

Raças humanas não existem. A genética comprovou que as diferenças icônicas das chamadas “raças” humanas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano. A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos níveis de radiação ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é expressa em menos de 10 genes! Nas palavras do geneticista Sérgio Pena: “O fato assim cientificamente comprovado da inexistência das ‘raças’ deve ser absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais Uma postura coerente e desejável seria a construção de uma sociedade desracializada, na qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada. Temos de assimilar a noção de que a única divisão biologicamente coerente da espécie humana é em bilhões de indivíduos, e não em um punhado de ‘raças’.” (“Receita para uma humanidade desracializada”, Ciência Hoje Online, setembro de 2006).

Não foi a existência de raças que gerou o racismo, mas o racismo que fabricou a crença em raças. O “racismo científico” do século XIX acompanhou a expansão imperial européia na África e na Ásia, erguendo um pilar “científico” de sustentação da ideologia da “missão civilizatória” dos europeus, que foi expressa celebremente como o “fardo do homem branco”. Os poderes coloniais, para separar na lei os colonizadores dos nativos, distinguiram também os nativos entre si e inscreveram essas distinções nos censos. A distribuição de privilégios segundo critérios etno-raciais inculcou a raça nas consciências e na vida política, semeando tensões e gestando conflitos que ainda perduram. Na África do Sul, o sistema do apartheid separou os brancos dos demais e foi adiante, na sua lógica implacável, fragmentando todos os “não-brancos” em grupos étnicos cuidadosamente delimitados. Em Ruanda, no Quênia e em tantos outros lugares, os africanos foram submetidos a meticulosas classificações étnicas, que determinaram acessos diferenciados aos serviços e empregos públicos. A produção política da raça é um ato político que não demanda diferenças de cor da pele.

O racismo contamina profundamente as sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial – e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de raça. Nos Estados Unidos, modelo por excelência das políticas de cotas raciais, a abolição da escravidão foi seguida pela produção de leis raciais baseadas na regra da “gota de sangue única”. Essa regra, que é a negação da mestiçagem biológica e cultural, propiciou a divisão da sociedade em guetos legais, sociais, culturais e espaciais. De acordo com ela, as pessoas são, irrevogavelmente, “brancas” ou “negras”. Eis aí a inspiração das leis de cotas raciais no Brasil.

“Eu tenho o sonho que meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação na qual não serão julgados pela cor da sua pele mas pelo conteúdo de seu caráter”. Há 45 anos, em agosto, Martin Luther King abriu um horizonte alternativo para os norte-americanos, ancorando-o no “sonho americano” e no princípio político da igualdade de todos perante a lei, sobre o qual foi fundada a nação. Mas o desenvolvimento dessa visão pós-racial foi interrompido pelas políticas racialistas que, a pretexto de reparar injustiças, beberam na fonte envenenada da regra da “gota de sangue única”. De lá para cá, como documenta extensamente Thomas Sowell em Ação afirmativa ao redor do mundo: um estudo empírico (Univer Cidade, 2005), as cotas raciais nos Estados Unidos não contribuíram em nada para reduzir desigualdades mas aprofundaram o cisma racial que marca como ferro em brasa a sociedade norte-americana.

“É um impasse racial no qual estamos presos há muitos anos”, na constatação do senador Barack Obama, em seu discurso pronunciado a 18 de março, que retoma o fio perdido depois do assassinato de Martin Luther King. O “impasse” não será superado tão cedo, em virtude da lógica intrínseca das leis raciais. Como assinalou Sowell, com base em exemplos de inúmeros países, a distribuição de privilégios segundo critérios etno-raciais tende a retroalimentar as percepções racializadas da sociedade – e em torno dessas percepções articulam-se carreiras políticas e grupos organizados de pressão.

Mesmo assim, algo se move nos Estados Unidos. Há pouco, repercutindo um desencanto social bastante generalizado com o racialismo, a Suprema Corte declarou inconstitucionais as políticas educacionais baseadas na aplicação de rótulos raciais às pessoas. No seu argumento, o presidente da Corte, juiz John G. Roberts Jr., escreveu que “o caminho para acabar com a discriminação baseada na raça é acabar com a discriminação baseada na raça”. Há um sentido claro na reiteração: a inversão do sinal da discriminação consagra a raça no domínio da lei, destruindo o princípio da cidadania.

Naquele julgamento, o juiz Anthony Kennedy alinhou-se com a maioria, mas proferiu um voto separado que contém o seguinte protesto: “Quem exatamente é branco e quem é não-branco? Ser forçado a viver sob um rótulo racial oficial é inconsistente com a dignidade dos indivíduos na nossa sociedade. E é um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar!”. Nos censos do IBGE, as informações de raça/cor abrigam a mestiçagem e recebem tratamento populacional. As leis raciais no Brasil são algo muito diferente: elas têm o propósito de colar “um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar” e, no caso das cotas em concursos vestibulares, associam nominalmente cada jovem candidato a uma das duas categorias “raciais” polares, impondo-lhes uma irrecorrível identidade oficial.

O juiz Kennedy foi adiante e, reconhecendo a diferença entre a doutrina de ações afirmativas e as políticas de cotas raciais, sustentou a legalidade de iniciativas voltadas para a promoção ativa da igualdade que não distinguem os indivíduos segundo rótulos raciais. Reportando-se à realidade norte-americana da persistência dos guetos, ele mencionou, entre outras, a seleção de áreas residenciais racialmente segregadas para os investimentos prioritários em educação pública.

No Brasil, difunde-se a promessa sedutora de redução gratuita das desigualdades por meio de cotas raciais para ingresso nas universidades. Nada pode ser mais falso: as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. Há um programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar, que exige políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão geral do ensino mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias urbanas, das favelas e do meio rural. O direcionamento prioritário de novos recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos os tons de pele – e, certamente, uma grande parcela daqueles que se declaram “pardos” e “pretos”.

A meta nacional deveria ser proporcionar a todos um ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras de acesso à universidade. Mas há iniciativas a serem adotadas, imediatamente, em favor de jovens de baixa renda de todas as cores que chegam aos umbrais do ensino superior, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação das taxas de inscrição nos exames vestibulares das universidades públicas. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o Programa de Cursinhos Pré-Vestibulares Gratuitos, destinado a alunos egressos de escolas públicas, atendeu em 2007 a 3.714 jovens, dos quais 1.050 foram aprovados em concursos vestibulares, sendo 707 em universidades públicas. Medidas como essa, que não distinguem os indivíduos segundo critérios raciais abomináveis, têm endereço social certo e contribuem efetivamente para a amenização das desigualdades.

A sociedade brasileira não está livre da chaga do racismo, algo que é evidente no cotidiano das pessoas com tom de pele menos claro, em especial entre os jovens de baixa renda. A cor conta, ilegal e desgraçadamente, em incontáveis processos de admissão de funcionários. A discriminação se manifesta de múltiplas formas, como por exemplo na hora das incursões policiais em bairros periféricos ou nos padrões de aplicação de ilegais mandados de busca coletivos em áreas de favelas.

Por certo existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não é uma nação racista. Depois da Abolição, no lugar da regra da “gota de sangue única”, a nação brasileira elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo. Há sete décadas, a República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões significativa de ódio racial. O preconceito de raça, acuado, refugiou-se em expressões oblíquas envergonhadas, temendo assomar à superfície. A condição subterrânea do preconceito é um atestado de que há algo de muito positivo na identidade nacional brasileira, não uma prova de nosso fracasso histórico.

“Quem exatamente é branco e quem é não-branco?” – a indagação do juiz Kennedy provoca algum espanto nos Estados Unidos, onde quase todos imaginam conhecer a identidade “racial” de cada um, mas parece óbvia aos ouvidos dos brasileiros. Entre nós, casamentos interraciais não são incomuns e a segregação residencial é um fenômeno basicamente ligado à renda, não à cor da pele. Os brasileiros tendem a borrar as fronteiras “raciais”, tanto na prática da mestiçagem quanto no imaginário da identidade, o que se verifica pelo substancial e progressivo incremento censitário dos “pardos”, que saltaram de 21% no Censo de 1940 para 43% na PNAD de 2006, e pela paralela redução dos “brancos” (de 63% para 49%) ou “pretos” (de 15% para 7%).

A percepção da mestiçagem, que impregna profundamente os brasileiros, de certa forma reflete realidades comprovadas pelos estudos genéticos. Uma investigação já célebre sobre a ancestralidade de brasileiros classificados censitariamente como “brancos”, conduzida por Sérgio Pena e sua equipe da Universidade Federal de Minas Gerais, comprovou cientificamente a extensão de nossas miscigenações. “Em resumo, estes estudos filogeográficos com brasileiros brancos revelaram que a imensa maioria das patrilinhagens é européia, enquanto a maioria das matrilinhagens (mais de 60%) é ameríndia ou africana” (PENA, S. “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?”, Estudos Avançados 18 (50), 2004). Especificamente, a análise do DNA mitocondrial, que serve como marcador de ancestralidades maternas, mostrou que 33% das linhagens eram de origem ameríndia, 28% de origem africana e 39% de origem européia.

Os estudos de marcadores de DNA permitem concluir que, em 2000, existiam cerca de 28 milhões de afrodescendentes entre os 90,6 milhões de brasileiros que se declaravam “brancos” e que, entre os 76,4 milhões que se declaravam “pardos” ou “pretos”, 20% não tinham ancestralidade africana. Não é preciso ir adiante para perceber que não é legítimo associar cores de pele a ancestralidades e que as operações de identificação de “negros” com descendentes de escravos e com “afrodescentes” são meros exercícios da imaginação ideológica. Do mesmo modo, a investigação genética evidencia a violência intelectual praticada pela unificação dos grupos censitários “pretos” e “pardos” num suposto grupo racial “negro”.
Mas a violência não se circunscreve à esfera intelectual. As leis de cotas raciais são veículos de uma engenharia política de fabricação ou recriação de raças. Se, individualmente, elas produzem injustiças singulares, socialmente têm o poder de gerar “raças oficiais”, por meio da divisão dos jovens estudantes em duas raças polares. Como, no Brasil, não sabemos quem exatamente é “negro” e quem é “não-negro”, comissões de certificação racial estabelecidas pelas universidades se encarregam de traçar uma fronteira. A linha divisória só se consolida pela validação oficial da autodeclaração dos candidatos, num processo sinistro em que comissões universitárias investigam e deliberam sobre a “raça verdadeira” dos jovens a partir de exames de imagens fotográficas ou de entrevistas identitárias. No fim das contas, isso equivale ao cancelamento do princípio da autodeclaração e sua substituição pela atribuição oficial de identidades raciais.

Na UnB, uma comissão de certificação racial composta por professores e militantes do movimento negro chegou a separar dois irmãos gêmeos idênticos pela fronteira da raça. No Maranhão, produziram-se fenômenos semelhantes. Pelo Brasil afora, os mesmos candidatos foram certificados como “negros” em alguma universidade mas descartados como “brancos” em outra. A proliferação das leis de cotas raciais demanda a produção de uma classificação racial geral e uniforme. Esta é a lógica que conduziu o MEC a implantar declarações raciais nominais e obrigatórias no ato de matrícula de todos os alunos do ensino fundamental do país. O horizonte da trajetória de racialização promovida pelo Estado é o estabelecimento de um carimbo racial compulsório nos documentos de identidade de todos os brasileiros. A história está repleta de barbaridades inomináveis cometidas sobre a base de carimbos raciais oficialmente impostos.

A propaganda cerrada em favor das cotas raciais assegura-nos que os estudantes universitários cotistas exibem desempenho similar ao dos demais. Os dados concernentes ao tema são esparsos, contraditórios e pouco confiáveis. Mas isso é essencialmente irrelevante, pois a crítica informada dos sistemas de cotas nunca afirmou que estudantes cotistas seriam incapazes de acompanhar os cursos superiores ou que sua presença provocaria queda na qualidade das universidades. As cotas raciais não são um distúrbio no ensino superior, mas a face mais visível de uma racialização oficial das relações sociais que ameaça a coesão nacional.

A crença na raça é o artigo de fé do racismo. A fabricação de “raças oficiais” e a distribuição seletiva de privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da sociedade o veneno do racismo, com seu cortejo de rancores e ódios. No Brasil, representaria uma revisão radical de nossa identidade nacional e a renúncia à utopia possível da universalização da cidadania efetiva.

Ao julgar as cotas raciais, o STF não estará deliberando sobre um método de ingresso nas universidades, mas sobre o significado da nação e a natureza da Constituição. Leis raciais não ameaçam uma “elite branca”, conforme esbravejam os racialistas, mas passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os ônibus que conduzem as pessoas ao trabalho, as ruas e as casas dos bairros pobres. Neste início de terceiro milênio, um Estado racializado estaria dizendo aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou – e que, no seu lugar, o máximo que podemos almejar é uma trégua sempre provisória entre nações separadas pelo precipício intransponível das identidades raciais. É esse mesmo o futuro que queremos?

21 de abril de 2008

Adel Daher – Diretor do Sindicato dos Ferroviários de Bauru e MS
Adelaide Jóia – Socióloga e Mestre em Educação Infantil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Adriana Atila – Doutora em Antropologia Cultural, IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Aguinaldo Silva – Jornalista, telenovelista
Alba Zaluar – Titular de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Livre-docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), colunista da Folha de S. Paulo
Almir Lima da Silva – Jornalista, Centro de Cultura Negra de Macaé-RJ
Alzira Alves de Abreu – Pesquisadora do CPDOC da Fundação Getulio Vargas
Amâncio Paulino de Carvalho – Professor da Faculdade de Medicina Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Ana Maria Machado – Escritora, membro da Academia Brasileira de Letras
Ana Teresa A. Venancio – Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Ângela Porto – Pesquisadora Titular, Fundação Oswaldo Cruz
Antonio Cicero – Poeta e ensaísta
Antonio Risério – Antropólogo
Arlindo Belo da Silva – Conselheiro Fiscal da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Químico (CNQ–CUT)
Bernardo Lewgoy – Professor Adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Bernardo Sorj – Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Bernardo Vilhena – Poeta
Bila Sorj – Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Bolivar Lamounier – Cientista Político
Caetano Veloso
Carlos A. de L. Costa Ribeiro – Professor e Consultor em Ciências do Meio Ambiente
Carlos Pio – Professor da Universidade de Brasília (UNB)
Carlos José Serapião – Professor Titular aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professor Titular da Universidade da Região de Joinville–SC
Celso Castro – Antropólogo, professor do CPDOC da Fundação Getulio Vargas
César Benjamin – Editor
Charles Pires – Diretor do Sindicato dos Funcionários Publicos Municipais de Florianópolis e membro da Executiva da CUT-SC
Cremilda Medina – Jornalista e professora Titular da Universidade de São Paulo (USP)
Cynthia Maria Pinto da Luz – Advogada, Conselheira Nacional do Movimento Nacional em Defesa dos Direitos Humanos
Claudia Travassos – Pesquisadora Titular, Fundação Oswaldo Cruz
Darcy Fontoura de Almeida – Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Demétrio Magnoli – Sociólogo, integrante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP)
Diomédes Matias da Silva Filho – Diretor do Sindicato dos Professores do Estado de Pernambuco
Domingos Guimaraens – Poeta e artista plástico
Edmar Lisboa Bacha – Economista
Eduardo Giannetti – Economista
Eduardo Pizarro Carnelós – Advogado, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça
Elizabeth Balbachevsky – Professora Associada do Departamento de Ciência Política e pesquisadora sênior do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP)
Esteffane Emanuelle Ferreira – Estudante, Coordenação do DCE da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
Eunice Durham – Professora Emérita da FFLCH da Universidade de São Paulo (USP)
Fernando Gomes Martins – Associação de Moradores do Parque Bandeirantes e Movimento Hip Hop Sumaré-SP
Ferreira Gullar – Poeta
Flávio Rabelo Versiani – Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UNB)
Francisco João Lessa – Advogado, Direção do PT-SC
Francisco Johny Rodrigues Silva – Coordenador do Fórum Afro da Amazônia (FORAFRO)
Francisco Martinho – Professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Francisco Mauro Salzano – Professor Emérito do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
George de Cerqueira Leite Zarur – Professor Internacional da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO)
Gerald Thomas – Dramaturgo, criador e diretor da Companhia de Ópera Seca
Gilberto Horchman – Pesquisador, Fundação Oswaldo Cruz
Gilberto Velho – Professor Titular de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Academia Brasileira de Ciências
Gilda Portugal – Professora de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Gilson Schwartz – Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Cidade do Conhecimento
Glaucia Kruse Villas Bôas – Professora Associada de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Gursen De Miranda – Professor Adjunto da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Presidente da Academia Brasileira de Letras Agrárias
Helda Castro de Sá – Coordenadora da Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia
Helena Severo – Cientista social, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas (NEP) do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro
Helga Hoffmann – Economista, integrante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP)
Heloisa Helena T. de Souza Martins – Professora aposentada de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP)
Isabel Lustosa – Pesquisadora Titular da Fundação Casa de Rui Barbosa
João Rodarte – Empresário
João Ubaldo Ribeiro – Escritor
José Álvaro Moisés – Professor Titular do Departamento de Ciência Política e Diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP)
José Arbex Jr. – Jornalista e professor do Departamento de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
José Augusto Guilhon Albuquerque – Professor Titular (aposentado) de Relações Internacionais da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP)
José Carlos Miranda – Coordenador Nacional do Movimento Negro Socialista
José Goldemberg – Ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP)
José de Souza Martins – Professor Titular (aposentado) de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP)
José Roberto Pinto de Góes – Historiador e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Karina Kuschnir – Antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Leão Alves – Presidente do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro
Leonel Munhoz Coimbra – Analista de Controle Externo, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental da Escola Nacional de Administração Pública
Lourdes Sola – Presidente da Associação Internacional de Ciência Política e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP)
Luciana Villas-Boas – Diretora do Grupo Editorial Record
Luciene G. Souza – Mestre em Saúde Pública, Fundação Nacional de Saúde
Luiz Alphonsus – Artista Plástico
Luiz Fernando Dias Duarte – Professor Associado do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Luiz Werneck Vianna – Professor Titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
Lya Luft – Escritora
Manolo Garcia Florentino – Professor do Departamento de Historia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marcelo Hermes-Lima – Professor de Bioquímica Médica da Universidade de Brasília (UNB)
Marcos Chor Maio – Pesquisador da da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Margarida Cintra Gordinho – Editora
Maria Alice Resende de Carvalho – Socióloga
Maria Cátira Bortolini – Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Maria Conceição Pinto de Góes – Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Maria Herminia Tavares de Almeida – Cientista Política
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti – Professora Associada do Instituto de Filosofia e Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Maria Sylvia Carvalho Franco – Professora Titular da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Mariza Peirano – Professora Titular, Antropologia, Universidade de Brasília (UNB)
Maurício Soares Leite – Professor Adjunto, Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Moacyr Góes – Diretor de teatro e cineasta
Monica Grin – Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Nelson Motta – Produtor musical, jornalista e escritor
Patrícia Vanzella – Professora Adjunta, Departamento de Música da
Universidade de Brasília (UNB)
Pedro Paulo Poppovic – Empresário
Peter Henry Fry – Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Reinaldo Azevedo – Jornalista, articulista da revista VEJA e editor do “Blog do Reinaldo Azevedo”
Renata Aparecida Vaz – Coordenação do Movimento Negro Socialista–SP
Renato Lessa – Professor Titular de Teoria Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Presidente do Instituto Ciência Hoje
Ricardo Ventura Santos – Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz e Professor Adjunto do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Roberta Fragoso Menezes Kaufmann – Procuradora do Distrito Federal, Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB) e Professora de Direito Constitucional
Roberto Romano da Silva – Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Rodolfo Hoffmann – Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Ronaldo Vainfas – Professor Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Roque Ferreira – Coordenação da Federação Nacional de Trabalhadores de Transporte sobre Trilho–CUT
Ruth Correa Leite Cardoso – Antropóloga
Serge Goulart – Secretário da Esquerda Marxista do PT
Sergio Danilo Pena – Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências
Simon Schwartzman – Pesquisador do Instituto de Estudos do Tabalho e Sociedade (IETS)
Simone Monteiro – Pesquisadora Associada, Fundação Oswaldo Cruz
Wanderley Guilherme dos Santos – Cientista Político
Wilson Trajano Filho – Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB)
Yvonne Maggie – Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

A volta dos pelegos e a corrupção


É deprimente ver a volta triunfante dos pelegos pelas mãos de quem abriu a esperança, no inicio dos anos 80, de um novo sindicalismo, apoiado nos trabalhadores, e não no eterno imposto sindical. Aliás, já estamos em pleno vale-tudo da campanha pelo terceiro mandato de Lula, só não vê quem não quer.

No ano passado, escrevi um texto um pouco longo sobre o tema da corrupção, que acredito que continue atual, embora a opinião pública no Brasil, e muito de nossos dirigentes e intelectuais, achem que isto não tem a menor importância. Para quem quiser ver e comentar, o texto está disponível aqui.

Ainda sobre a educação e o dinheiro

O projeto da Secretaria de Educação de São Paulo de introduzir um sistema de incentivo financeiro para escolas que conseguirem melhor o desempenho de seus alunos levantou uma grande discussão, parte dela refletida neste blog. Creio que os pontos principais da discussão são os seguintes :

Como medir os resultados, e que resultados recompensar? Esta é sobretudo uma questão técnica, e acredito que a proposta da Secretaria está bem encaminhada neste sentido. Haveria uma escala de competências de três ou quatro níveis, todos eles facilmente inteligíveis para professores e pais de alunos: por exemplo, os que não conseguem ler, os que lêem de forma mecânica sem entender, os que lêem e entendem mas não conseguem interpretar o texto, e os que lêem, entendem e interpretam. Seriam premiadas as escolas que, entre uma avaliação e outra, conseguirem que um determinado numero de alunos passem de um patamar a outro, sem aumentar a evasão ou a repetência. Ainda não está claro, para mim, como se combinariam os desempenhos em português e matemática e mais os dados de evasão e repetência, em um único índice de desempenho. Talvez a melhor maneira fosse usar o índice para ver o conjunto, mas divulgar não um número abstrato do índice de cada escola, mas os resultados separados de cada dimensão. Uma outra questão técnica é como medir as competências, e como ir aperfeiçoando os sistemas de avaliação.

Qual o efeito da remuneração por desempenho no trabalho dos professores e no funcionamento das escolas? Felipe Schwartzman, no seu comentário, indica duas objeções que se fazem normalmente a este tipo de política. A primeira é que, como a avaliação está limitada a coisas mensuráveis, isto levaria a uma concentração exclusiva da escola na preparação para os testes, deixando de lado outras disciplinas e conteúdos que não estão sendo avaliados. Uma primeira resposta a esta objeção é que se nossas escolas públicas somente ensinassem português e matemática a seus alunos, e nada mais, já seria uma maravilha. A segunda, mais complexa, é que na verdade não há como avançar muito no desenvolvimento da leitura e da matemática se a educação não for rica em conteúdos que os estudantes possam absorver e entender. O problema fundamental nos anos iniciais das escolas públicas brasileiras é o número enorme de estudantes que permanecem como analfabetos funcionais, o que pode ser corrigido pelo uso correto de métodos fônicos de alfabetização e materiais pedagógicos de apoio de qualidade. A partir daí, no entanto, passam a ser importantes os conteúdos. Uma escola que se concentrasse exclusivamente na preparação para os testes não iria muito longe.

A segunda critica é que metas quantitativas, associadas a recompensas financeiras, estimulariam entre professores e alunos o surgimento de comportamentos oportunistas para enganar o sistema, e substituiriam o valor da educação enquanto tal por valores mercantilistas. Sem dúvida, qualquer sistema de avaliação, sobretudo quando associado a prêmios e punições (o que em inglês se denomina “high stakes”), estimula comportamentos oportunistas, como treinar os estudantes para as provas, eliminar da escola os de pior desempenho, e até mesmo colar e falsificar os resultados. Mas estes comportamentos oportunistas podem ser controlados em certa medida, punindo, por exemplo, as escolas que reprovam ou forçam a saída dos alunos de pior desempenho. A pergunta, aí, é o que é preferível, um sistema bem avaliado e sujeito a este tipo de problemas, ou um sistema sem avaliação, mas cujos resultados agregados são reconhecidamente desastrosos.

Tenho dúvidas, também, se existe esta oposição tão forte entre os valores da educação e os valores do mercado como dizem. Todos sabemos que os mercados, muitas vezes, buscam o dinheiro em detrimento da qualidade, com programas de auditório tomando o lugar dos concertos, os livros de auto-ajuda substituindo os de literatura, e os hamburgers substituindo a cozinha sofisticada. Mas existem também mercados de qualidade, e os bons profissionais – músicos clássicos, escritores e chefs – são valorizados e ganham dinheiro pela competência e qualidade com que trabalham. O problema não é, me parece, o da oposição entre atividades “nobres” e fora do mercado e atividades prostituídas pelo mercado (coisa que elaborei no blog anterior) mas entre mercados que estimulam bons resultados e os que não o fazem. O mercado da educação, deixado por ele mesmo, tende a se segmentar entre os dois extremos, o da oferta barata de títulos vazios e o da oferta de títulos e qualificações muitas vezes sobre-valorizadas, e isto ocorre tanto entre as instituições públicas quanto entre as privadas. Dai a necessidade de políticas públicas claras de sinalização.

Finalmente, Márcio da Costa coloca a questão de como valorizar a atuação de escolas que, embora sem resultados visíveis em termos de desempenho escolar, conseguem outros objetivos importantes, como criar um ambiente sadio e de inclusão para seus alunos. O que me parece é que uma escola que faz isto não é, na realidade, uma escola, mas um outro tipo de instituição. Escolas são instituições que ensinam um conjunto limitado e importante de coisas, e não se deve pedir a elas mais do que elas podem ou devem fazer. Existe uma tendência a querer que as escolas resolvam todos os problemas que a sociedade tem e não consegue resolver – ontem mesmo havia um deputado propondo a obrigatoriedade do ensino de comportamento no trânsito nas escolas, para reduzir o nível de acidentes. Com isto, a escola não cumpre seu papel, e a sociedade deixa de buscar estes outros objetivos pelos meios apropriados. A instituição descrita por Márcio merece todo o apoio, mas, para ser escola e ser reconhecida como tal, os alunos têm que aprender.

Da nobreza, da cultura e do dinheiro

A idéia de premiar financeiramente os educadores de bom desempenho, como a que está sendo implantada agora no Estado de São Paulo, provoca muitas vezes, uma reação instintiva: não estaria errado associar educação e cultura a dinheiro, e transformar os educadores em mercenários? É a mesma reação que existe, muitas vezes, contra o ensino privado, que seria incompatível com uma educação de qualidade, que não fosse um simples treinamento para o mercado.

Esta idéia de separar as atividades nobres do dinheiro é antiga, e tem uma história conhecida. Nas sociedades aristocráticas, os nobres não precisavam nem deviam se preocupar com dinheiro. Sua posição na sociedade vinha do berço, e suas principais responsabilidades eram manter a honra e o etilo de vida de sua casta, e ajudar e tratar com benevolência seus súditos. O dinheiro vinha naturalmente, sobretudo da renda da terra, que não podia ser vendida nem comprada. O pior, para a nobreza, era o “dinheiro novo” nas suas diversas formas, ganho no comercio ou nas transações financeiras: os burgueses, os “parvenus”, e, claro, os judeus. Os gentlemen ingleses, que inventaram o futebol, só deveriam praticar esportes como amadores, sem a obsessão de ganhar; deveriam freqüentar as melhores universidades, Oxford e Cambridge, para estudar história, literatura ou filosofia, nunca a engenharia, que ficava relegada aos institutos de tecnologia. Nada mais ungentlemanlike do que estudar demasiado ou querer ganhar sempre nos esportes. Trabalhar, quando o faziam, era pela Pátria ou pelo Império, nunca para o enriquecimento pessoal.

As profissões universitárias, sobretudo a medicina e o direito, herdaram muito desta idéia de nobreza. Neste modelo que quase não existe mais, o médico trabalha pela saúde dos pacientes, e o advogado, pela defesa de seus direitos. Pacientes e clientes não compram os serviços dos médicos e advogados. Eles se colocam em suas mãos, fazem o que lhes é dito, e, em reconhecimento, honram os profissionais com uma contribuição financeira – os honorários. Da mesma maneira, os cientistas deveriam trabalhar pelo bem da ciência e pelo avanço do conhecimento, sem se preocupar com o uso prático ou os custos de suas pesquisas; e os professores deveriam se dedicar à educação dos jovens, e sobretudo à sua formação cultural e moral, mais do que prepará-los para uma profissão lucrativa. Todas estas nobres atividades requerem dinheiro, necessários para manter a dignidade dos cargos, e este dinheiro deveria vir de honorários e doações das pessoas e salários e verbas do Estado, sempre desvinculados de qualquer associação com serviços ou a produção de resultados específicos.

É possível que este belo modelo tenha funcionado por algum tempo em algumas partes, mas não é preciso muito esforço para perceber o quanto de hipocrisia havia e ainda há por detrás deles. A revolução burguesa traz uma nova ética, associada não mais aos direitos da nobreza, mas ao valor do trabalho. São as abelhas, com seu trabalho miúdo, que constroem as colméias, não as rainhas ou seus zangões. As grandes virtudes de uma sociedade rica, livre e igualitária, só poderiam surgir da agregação dos pequenos egoísmos, vícios e ambições individuais, livres para trabalhar e ganhar dinheiro em um mercado aberto e competitivo. Estas idéias, formuladas por Adam Smith no século 18, ganhariam nova formulação no início do século 20 por Max Weber, com o conceito de ética do trabalho. O que move o capitalismo, dizia Weber, não é a simples liberação dos vícios hedonistas das pessoas, mas o puritanismo da ética do trabalho, trazida pela Reforma Protestante, e originária da tradição judaica e cristã. O puritano trabalha compulsivamente não para ganhar dinheiro, mas para provar a si mesmo que ele foi escolhido por Deus como homem justo e virtuoso, ou por algum outro imperativo moral. O enriquecimento seria um sub-produto da ética do trabalho, para ser reinvestido em projetos cada vez mais ambiciosos e rentáveis, sem afetar o estilo de vida despojado e ascético do empresário. O mesmo tipo de ética do trabalho explicaria a devoção dos professores, médicos e simples trabalhadores às suas profissões e ofícios.

Quanto que as sociedades de mercado de hoje ainda se movem pela ética puritana e ascética de Weber, ou, simplesmente, pela agregação dos empreendedores egoístas de Smith? Basta lembrar de Antônio Ermírio de Morais para darmo-nos conta de que empresários weberianos ainda existem, e o tema da ética do trabalho continua de grande relevância. Mas o mais importante que nos fica de Smith e Weber é a idéia de que existe nobreza no trabalho; que ganhar dinheiro não é uma coisa vil, mas um reconhecimento do trabalho realizado; e que os juizes da qualidade e do valor de nosso trabalho não podem ser nós mesmos, mas a sociedade mais ampla que nos paga e recompensa pelos serviços prestados. É por isto que é uma boa idéia recompensar os bons professores e as boas escolas pelo seu desempenho.

Maria Helena Guimarães Castro: premiar o mérito


A Secretária de Educação de São Paulo, Maria Helena Guimarães Castro, que foi também quem estruturou o INEP na gestão de Paulo Renato de Souza no Ministério da Educação, deu à revista Veja a entrevista abaixo, nas Páginas Amarelas, edição de 13 de fevereiro de 2008 (n. 2047) sobre a educação brasileira e seus projetos atuais. Vale a pena ler:

Como secretária estadual de Educação em São Paulo, a professora Maria Helena Guimarães de Castro, 61 anos, comanda uma rede de 5 500 escolas, 250 000 professores e 5 milhões de alunos. Nenhuma outra no país chega perto de tais números. É justamente nesse universo que será implantado pela primeira vez no Brasil um sistema segundo o qual as escolas passarão a ter metas acadêmicas no horizonte e receberão mais verbas caso consigam cumpri-las. O tal bônus será distribuído entre os funcionários. Depois de anunciado o novo sistema, a secretária passou a receber dezenas de e-mails de professores, alguns deles furiosos. “Eles querem aumento de salário, sim, mas dissociado do desempenho. Estão na contramão”, diz a secretária. Cientista social de formação, desde 1993, quando assumiu a Secretaria de Educação em Campinas, Maria Helena ocupou diversos cargos públicos, entre eles o de secretária executiva do Ministério da Educação (MEC), durante o governo FHC, onde é lembrada por ter liderado a construção de um valioso sistema de avaliação das escolas brasileiras. Casada, mãe de três filhos e avó de quatro netos, ela concedeu a VEJA a seguinte entrevista:

Veja – Nas próximas semanas, as escolas estaduais de São Paulo se tornarão as primeiras no país a ter metas acadêmicas a cumprir – e a ser premiadas com mais dinheiro caso consigam atingi-las. Quais resultados a senhora espera alcançar com tais medidas?

Maria Helena – O objetivo é criar incentivos concretos para o progresso das escolas, a exemplo da bem-sucedida experiência de outros países do mundo desenvolvido, como Inglaterra e Estados Unidos. Eles não inventaram nenhuma fórmula mirabolante, mas, sim, conseguiram pôr em prática sistemas capazes de distinguir e premiar, com base em critérios objetivos, as escolas com bom desempenho acadêmico. As pesquisas mostram que, em todos os lugares onde uma política de reconhecimento ao mérito foi implantada, a educação avançou. No Brasil, esse é um debate novo e, infelizmente, ainda contraria uma parcela dos educadores.

Veja – Qual é exatamente o motivo das críticas ao novo sistema?

Maria Helena – Em pleno século XXI, há pessoas que persistem em uma visão sindicalista ultrapassada e corporativista, segundo a qual todos os professores merecem ganhar o mesmo salário no fim do mês. Essa velha política da isonomia salarial passa ao largo dos diferentes resultados obtidos em sala de aula, e aí está o erro. Ao ignorar méritos e deméritos, ela deixa de jogar luz sobre os mais talentosos e esforçados e, com isso, contribui para a acomodação de uma massa de profissionais numa zona de mediocridade. Por isso, demos um passo na direção oposta.

Veja – Os professores se queixam de salários baixos. A senhora dá razão a eles?

Maria Helena – Na comparação com outros profissionais no Brasil e também com professores de escolas particulares, um conjunto de pesquisas já demonstrou que os salários dos docentes na rede pública chegam a ser até mais altos. Esse é um fato, ancorado em números. Apesar disso, acho, sim, que faz parte das atribuições do estado criar estímulos financeiros à carreira, de modo a valorizá-la e conseguir atrair mais gente boa para as escolas públicas. O que não se pode fazer é defender aumento de salário indiscriminado para professor ruim, desinteressado ou que mal aparece na escola. Quem merece mais dinheiro no fim do mês são os bons professores e aquelas escolas públicas capazes de oferecer um raro ensino de qualidade, apesar das evidentes dificuldades.

Veja – Como funcionará o novo sistema de premiação dos professores em São Paulo?

Maria Helena – Criamos um indicador para aferir a situação atual de cada escola e, com base nele, estabelecer metas concretas. O desempenho dos alunos em provas aplicadas pela própria secretaria terá o maior peso. Esse é, não resta dúvida, um excelente medidor do sucesso acadêmico de uma escola. Outro é o tempo que um aluno leva para concluir os ciclos escolares. Da combinação desses e mais fatores resultará o tal índice. Depois de um ano, ele voltará a ser calculado. Só as escolas que conseguirem melhorar nas estatísticas vão receber mais dinheiro.

Veja – De quanto será o prêmio?

Maria Helena – O bônus pode chegar ao equivalente a mais três salários num ano. Isso para cada funcionário da escola, da faxineira ao diretor. Foi com um sistema bem semelhante a esse que a cidade de Nova York alcançou avanços notáveis. Fizemos aqui uma adaptação necessária à realidade brasileira: os professores mais faltosos serão automaticamente excluídos da lista dos premiados. É apenas o justo. O Brasil ainda está pouco habituado a encarar as políticas para a educação sob uma ótica mais voltada para os alunos. Eles merecem, afinal, assistir a uma boa aula – e por isso estamos deixando de premiar os professores campeões em ausência.

Veja – De acordo com os mais recentes dados da OCDE (organização que reúne países da Europa e os Estados Unidos), os estudantes brasileiros aparecem nas últimas colocações em leitura, ciências e matemática. Como mudar esse cenário?

Maria Helena – Um passo fundamental é fazer a escola se sentir responsável pelos resultados dos estudantes, algo ainda bastante longínquo, mas possível de alcançar com a cobrança de metas. Fiz uma pesquisa sobre o assunto na qual professores entrevistados em diferentes estados brasileiros repetiam a mesmíssima ladainha: “As notas dos alunos são ruins porque a escola pública é carente de recursos e os professores ganham mal”. Não acho que seja razoável atribuir tudo a fatores externos. Segundo essa mentalidade atrasada e comodista, a culpa pelo péssimo desempenho geral é invariavelmente do estado brasileiro, nunca dos próprios professores, muitos dos quais incapacitados para dar uma boa aula. A falta de professores preparados para desempenhar a função é, afinal, um mal crônico do sistema educacional brasileiro. Sem desatar esse nó, não dá para pensar em bom ensino.

Veja – Qual seria o melhor caminho para elevar o nível dos professores?

Maria Helena – Num mundo ideal, eu fecharia todas as faculdades de pedagogia do país, até mesmo as mais conceituadas, como a da USP e a da Unicamp, e recomeçaria tudo do zero. Isso porque se consagrou no Brasil um tipo de curso de pedagogia voltado para assuntos exclusivamente teóricos, sem nenhuma conexão com as escolas públicas e suas reais demandas. Esse é um modelo equivocado. No dia-a-dia, os alunos de pedagogia se perdem em longas discussões sobre as grandes questões do universo e os maiores pensadores da humanidade, mas ignoram o básico sobre didática. As faculdades de educação estão muito preocupadas com um discurso ideológico sobre as múltiplas funções transformadoras do ensino. Elas deixam em segundo plano evidências científicas sobre as práticas pedagógicas que de fato funcionam no Brasil e no mundo. Com isso, também prestam o desserviço de divulgar e perpetuar antigos mitos. Ao retirar o foco das questões centrais, esses mitos só atrapalham.

Veja – A senhora pode dar alguns exemplos desses mitos?

Maria Helena – Um dos mais populares é aquele segundo o qual o aumento no salário dos professores leva sempre à melhoria do ensino. As pesquisas mostram que, quando o dinheiro vem dissociado de uma política de reconhecimento do mérito, ele surte pouco ou nenhum efeito. Um segundo mito bastante divulgado diz respeito ao tamanho das classes. Os educadores afirmam por aí ser impossível oferecer uma boa aula diante de classes cheias, mas os estudos sobre o assunto indicam que, tirando as séries iniciais, esse é um fator de pouca relevância. Escolas de diferentes países decidiram inclusive aumentar o número de alunos em sala de aula para resolver outra questão – esta, sim, de grande efeito positivo. Eles estão esticando as horas de permanência dos estudantes nas escolas e, para arcar com os custos da medida, precisam fazer caber mais gente numa mesma sala. Resta ainda o mito do livro didático. Os estudantes de faculdades de pedagogia aprendem a encarar os livros como uma espécie de camisa-de-força, e não como uma base a partir da qual podem ampliar os horizontes em sala de aula.

Veja – O currículo escolar também é visto com certa reticência pelos professores brasileiros, segundo mostram as pesquisas…

Maria Helena – De novo, os professores se sentem tolhidos na sua liberdade de ensinar – baboseira ideológica que passa ao largo de uma questão central. Sem contar com um currículo, o professor de escola pública no Brasil, de modo geral, continua a encarar as classes sem uma referência mínima na qual se mirar. Poucos estados brasileiros (entre as exceções, São Paulo, Minas Gerais e o Tocantins) dispõem de um currículo para oferecer às escolas, no qual estejam incluídos os assuntos a ser abordados em cada matéria, no detalhe. É uma pena. A experiência mostra que professores com um apoio didático dessa natureza vão mais longe em sala de aula. Investir na construção de um currículo, como fizeram alguns dos países da Europa dois séculos atrás, é certamente um destino mais adequado para as verbas públicas do que esparramar canteiros de obras Brasil afora – um caminho tão comum para o orçamento da educação no país.

Veja – Quais são as melhores aplicações para o dinheiro destinado à educação?

Maria Helena – Três tipos de uso do dinheiro surtem mais efeito em sala de aula, conforme apontam as pesquisas: além do investimento em produção de material didático, os cursos para melhorar a formação dos professores e os programas de valorização aos bons docentes também resultam em melhorias concretas no nível do ensino. Não dá para fugir ainda de gastos extras com escolas sem a infra-estrutura mínima. À frente dos 5 500 colégios estaduais de São Paulo, tenho visto de tudo. Em algumas das escolas, a diretora precisa retirar diariamente lâmpadas e fiações ao final das aulas, para evitar roubos por parte dos próprios alunos. Eles costumavam trocar esses objetos por drogas. Outras escolas se tornaram verdadeiros emaranhados de “puxadinhos”, extensões labirínticas do prédio original feitas pela própria comunidade. São apenas alguns retratos da desordem que precisamos enfrentar. Diante de tantas precariedades, a velha tradição brasileira de fazer pirotecnia com o dinheiro público da educação não parece ter o menor sentido.

Veja – A que tipo de “pirotecnia” a senhora se refere?

Maria Helena – À construção de escolas monumentais, repletas de quadras poliesportivas, piscinas olímpicas e centenas de computadores, por exemplo. Em geral, elas são um convite à gastança de dinheiro sem nenhuma evidência de retorno para a sala de aula a longo prazo. Isso porque, segundo indica a experiência, em pouco tempo essas escolas entram em decadência por exigir uma manutenção cara demais para os cofres públicos. Volto à mesma tecla: o que dá certo na educação é a aplicação disciplinada de um conjunto de medidas bem mais básicas – e não aquelas de efeito festivo e mais vistosas, como ainda preferem alguns.

Veja – Como algumas escolas públicas conseguem sobressair diante das demais, apesar do mesmo orçamento apertado?

Maria Helena – Há um fator comum a todas as escolas nota 10, e ele merece a atenção das demais: trata-se da presença de um diretor competente, com atributos de liderança semelhantes aos de qualquer chefe numa grande empresa. Sob sua batuta, os professores trabalham estimulados, os alunos desfrutam um clima positivo para o aprendizado e os pais são atraídos para o ambiente escolar. Se tais diretores fossem a maioria, o ensino público não estaria tão mal das pernas.

Veja – Na sua opinião, o Ministério da Educação (MEC) tem tomado medidas acertadas?

Maria Helena – No geral, sim. Os esforços concentrados para melhorar a educação básica e a ênfase dada às avaliações das escolas são dois dos pontos positivos. Para mim, ver a educação de volta aos trilhos é um alívio. No primeiro mandato do governo Lula, tive meus momentos de tristeza.

Veja – Por quê?

Maria Helena – Foi um período de paralisia para a educação, com um retrocesso: o desmantelamento do antigo Provão, uma prova criada durante o governo Fernando Henrique para aferir a qualidade das universidades. Funcionava bem, mas acabou vítima de um velho hábito da política brasileira: o de não dar continuidade às medidas adotadas pelos antecessores. Numa área como a educação, de resultados de longo prazo, o tradicional bota-abaixo a cada troca de governo é algo a ser combatido, tal qual fizeram países como a Irlanda e a Coréia do Sul, hoje modelos na educação. Eles só conseguiram abandonar o atoleiro de notas vermelhas depois de firmar uma espécie de pacto nacional, capaz de sobreviver às sucessivas trocas de governo ao longo de décadas. O Brasil tem hoje uma meta, para daqui a quinze anos, e há um bom consenso em torno das estratégias para alcançá-la. Precisa, daqui para a frente, começar a dar mostras de maturidade política para conseguir deixar a rabeira nos rankings internacionais de ensino – e, quem sabe um dia, aparecer entre os melhores.

O escândalo dos cartões

O mais deprimente nesta história dos cartões corporativos é que eles eram, na verdade, uma ótima idéia. Quem já trabalhou no serviço público conhece a burocracia e a morosidade com que são feitas as compras e pagamentos, que geram ineficiência, aumentam os custos e não conseguem evitar a corrupção quando ela se oculta por detrás das concorrências ritualizadas. Com o cartão, associado a uma definição clara de tipos e teto de gastos, e um processo transparente de prestação de contas, tudo fica mais fácil e mais ágil. Quem poderia ser contra?

Na montanha de denúncias que vão aparecendo nos jornais, fica difícil saber o que é gasto abusivo e o que não é. O IBGE, aparentemente, foi o maior usuário dos cartões 2006, para os gastos do dia a dia com as atividades de censo, e isto deve ter facilitado imensamente o trabalho dos milhares de entrevistadores por este Brasil afora, o que não significa, é claro, que não possa ter havido algum mal uso aqui e ali, facilmente detectáveis.

Já é mais difícil entender o dinheiro tirado na boca da caixa e usado sem comprovação de gastos, as compras no free shop, os jantares em restaurantes de luxo ou a decoração de residência de reitores. Para muitos, parece que de fato os cartões viraram festa à custa da viúva. O resultado provável é que a rigidez e a burocracia no uso dos recursos públicos aumentem ainda mais, reforçando o princípio perverso de que todos os funcionários públicos são corruptos até prova em contrario, e não o de que são honestos e bem intencionados.

O problema é que, quando o funcionário é realmente desonesto, não há formalismo burocrático que o segure.

Bernardo Sorj: Racismo, Carnaval e Liberdade de Expressão

O Globo de 1 de fevereiro de 2008 publicou o seguinte texto de Bernardo Sorj:

A tradição diz que a sabedoria é o caminho do meio. Nem empurrar realidades desagradáveis embaixo do tapete por medo do conflito, nem insuflar os fatos além de suas reais dimensões. Tempo atrás a porta de minha sala na UFRJ foi pixada com uma suástica. Fui convidado por lideranças da comunidade judaica a denunciar publicamente a “existência de anti-semitismo na universidade”. Recebi a solidariedade de todos meus colegas e alunos, e minha intuição – informada por outras pixações que tinha sofrido – era de que ela foi feita por um aluno ressentido com minhas críticas. Com certeza não estava frente a um fenômeno de “anti-semitismo na universidade” e a solidariedade de meus colegas me pareceu suficiente. Achava que valorizar o evento seria dar publicidade indevida a um ato isolado e alimentar uma imagem distorcida da realidade.

O respeito pela sensibilidade alheia, e mais ainda no espaço publico, seja em relação a objetos sagrados ou de grupos que sofreram discriminação, humilhação e perseguição é fundamental para construir uma sociedade onde ninguém sinta negada sua dignidade humana. Este objetivo porem é um ideal em direção ao qual procuramos encaminhar, mas que é construído a partir de uma bagagem cultural, onde hábitos lingüísticos, formas de humor e preconceitos inconscientes estão presentes. Não se trata de justificar nenhum deles, mas também de reconhecer que um comentário mal elaborado em torno a raça, religião, sexo ou etnia não transforma alguém em racista, anti-semita, homofóbico ou sexista. O conceito racismo esconde uma diversidade de situações. Um comentário racista não significa que o individuo esteja disposto a entrar o Klu Klux Klan ou o partido nazista, ou que esteja imbuído de ódio racial. As maiorias das pessoas que fazem estes comentários se desculpam quando se conscientizam que feriram a sensibilidade de alguém.

Aclaremos, não estamos justificando expressões indevidas. Elas devem ser combatidas, mas com a ponderação devida em cada caso. Porque infelizmente o racismo, sexismo, etc., pode produzir uma indústria de vitimização, de lideres e instituições que se projetam pela denuncia, levando-os a apresentar uma versão distorcida ou inflacionada dos fatos.

Existem áreas onde a luta contra o preconceito apresenta dimensões complexas e difíceis de resolver. O humor sem duvida é uma delas. Muitas charges muitas vezes ferem a sensibilidade de indivíduos e grupos. O humor deve ser censurado, a pesar de que ele explicitamente se reconhece como tal, isto é gozação, distorção e caricatura do real? A minha reação é que não, que o humor é parte constitutiva de uma sociedade democrática, pois ela representa a forma mais eficaz de criticar, questionar, duvidar e ironizar, nos obrigando a aceitar visões diferentes daquilo que nós “adoramos”.

Agora volta a surgir, como já aconteceu em carnavais passados, a questão do lugar da liberdade de expressão das escolas de samba, e, em particular, seus carros alegóricos. Como sabemos, o carnaval é uma parodia da realidade e as escolas de samba tratam dos mais diversos temas, desde a violência na cidade, que contou com a participação de vitimas diretas e familiares, à escravidão no Brasil. Todo tema pode ser “carnavalizado”. A questão, portanto, não é o tema, pois ninguém tem monopólio sobre ele, mas a forma em que ele é tratado e a mensagem que procura-se veicular. Uma discussão ponderada sobre o carro alegórico dedicado ao holocausto deveria focalizar somente esta questão. Idealmente, um diálogo aberto, público, entre todas as partes interessadas é o caminho a trilhar nestas situações, onde não existem razões para duvidar da boa fé de todos os envolvidos. É possível que no final do dia tenhamos posições diferentes, mas sem preconceitos e com clareza sobre os pontos em que divergimos, dentro de uma lição de convivência democrática.

Etanol a preço de banana

Coskata, uma companhia norte-americana financiada pela General Motors e outras fontes, anunciou que desenvolveu uma tecnologia para a produção de etanol a partir de qualquer material orgânico ao preço de menos de um dólar por galão, que é parecido com custo do etanol produzido no Brasil, e bem abaixo do produzido nos Estados Unidos a partir do milho. A notícia é importante para o Brasil porque, se confirmada, ela poderia ter um forte impacto no projeto de transformar o país em um fornecedor internacional deste combustível. O artigo da revista Wired descrevendo o processo pode ser lido aqui,

Ainda sobre o Sistema Unificado de Saúde

Mauro Osório, comentando minha nota anterior sobre a CPMF e o SUS, diz que “estranhei não ver em sua análise uma avaliação dos benefícios que o secretário Osmar Terra aponta como o SUS já tendo gerado. Ou ele não é tão ruim como você deduz na sua análise, ou os dados do Osmar estariam errados.”

Na verdade, nem uma coisa nem outra. As estatísticas de mortalidade infantil e expectativa de vida tem melhorado no Brasil, mas não por causa do SUS. O que explica esta melhoria são coisas como o acesso a água tratada nas cidades, o uso do soro caseiro no controle da diarréia infantil e as grandes campanhas de vacinação. Tradicionalmente, estas coisas, próprias da medicina preventiva, eram feitas pelo Ministério da Saúde, enquanto que a medicina curativa, muito mais cara, era proporcionada pelo Ministério da Previdência. Não era somente uma divisão burocrática: o Ministério da Saúde dependia do orçamento geral, enquanto que o atendimento médico era financiado com as contribuições de empregados e patrões dentro do sistema previdenciário. O que ocorreu foi que, ao mesmo tempo em que a Constituição de 1988 decretava o direito universal ao atendimento médico pelo sistema unificado, os serviços médicos deixaram de ser financiados com os recursos da previdência, que já não davam conta de cobrir os gastos de aposentadoria e pensões. A crise financeira da saúde faz parte da crise da previdência, e não é possível equacionar uma sem equacionar também a outra.

Mauro Osório nos dá um bom exemplo de gestão do sistema previdenciário, que infelizmente não teve continuidade, e todos os dias ouvimos histórias de horror de hospitais sem recursos mínimos, filas intermináveis, contaminações hospitalares, ambulâncias que despejam doentes do interior na porta dos hospitais das capitais, médicos que não comparecem ou cobram por fora…. O que significa que uma boa administração pode fazer diferença, mas não existe nenhum sistema de informações que indique qual é o desempenho dos serviços médicos proporcionados diretamente pelo SUS ou contratados do setor privado, e nenhum mecanismo que estimule premie o bom uso dos recursos públicos, e desestimule ou puna seu uso incompetente, ainda que honesto e bem intencionado.

O que fazer com o SUS? Existem muitas propostas, várias delas bem interessantes, disponíveis por exemplo em documento recente do IPEA, Uma Agenda para o Crescimento Econômico e a Redução da Pobreza, organizado por Paulo Mansur Levy e Renato Villela, de novembro de 2006, que recomendo. Meu propósito aqui é somente insistir em que o SUS não pode ser considerado mais uma jabuticaba, que é excelente e só existe no Brasil. É um sistema com graves problemas de concepção e gestão, de custos crescentes e aparentemente incontroláveis, e que não pode ser discutido unicamente em termos de seu financiamento, que, por mais CPMFs que hajam, nunca será suficiente.

O fim da CPMF e o melhor sistema de saúde pública do mundo

Nas discussões sobre a CPMF, falou-se muito da necessidade de garantir os recursos para o financiamento do Sistema Unificado de Saúde, o SUS, que, na opinião de Osmar Terra, Secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, em artigo no O Globo de 1/1/2008, é “a proposta mais avançada de política pública de saúde existente no mundo”. Pena que não tem dinheiro e funciona tão mal, mesmo quando o dinheiro existe. Esta idéia da maravilha que é o SUS é muito comum entre os que trabalham na área, mas não passa de um mito, igualzinho ao de que o Brasil teria o sistema previdenciário mais avançado do mundo, que se dizia antes, mas que hoje ninguém mais fala. A crise de financiamento trazida pelo fim da CPMF deveria ser uma boa oportunidade para começar a desmontar este mito, e encarar de frente os graves problemas de saúde pública do Brasil.

O principal problema com o “avanço” do sistema de saúde, assim como o da previdência, é que eles prometem uma cobertura universal e generosa para a qual não há nem haverá recursos. Na Constituição de 1988, estava previsto que o sistema de saúde seria coberto com 30% dos recursos federais do sistema da previdência social, os dois financiados pelas contribuições dos trabalhadores, empresas e governo. Quando o sistema previdenciário começou a ficar insolúvel, cessou a transferência de recursos para a saúde, que saiu da previdência e se socorreu na CPMF para continuar funcionando, embora de forma precária. Na medida em que a população envelhece e a medicina avança, os custos do atendimento médico tendem a crescer, com medicamentos e equipamentos cada vez mais complexos, tempos prolongados de internação, e profissionais de saúde que querem ser remunerados de acordo com seus esforços e sua capacidade. Mesmo os paises ricos que tem sistemas universais de saúde pública, como a Inglaterra ou a França, embora gastem cerca de 10% do PIB em saúde, encontram dificuldades crescentes para manter os sistemas funcionando. Nos Estados Unidos, que gasta cerca de 15% do PIB com saúde, as dificuldades são ainda maiores. O Brasil gasta menos de 4%. Quanto a sociedade estaria disposta a gastar? Tirando de onde? Não há solução fácil para isto, mas um bom sistema de saúde, da mesma forma que um bom sistema de previdência social, seria aquele que focalizasse os poucos recursos públicos disponíveis nas populações mais carentes e nos atendimentos mais críticos, e estimulasse a que a maior parte possível da população fosse coberta por sistemas de seguro financiados pelos contribuintes ou seus empregadores.

Além disto, a organização do sistema SUS é inviável. O princípio é que seria um sistema descentralizado, controlado pelos governos locais e conselhos comunitários, que deveriam zelar pelo bom atendimento dos serviços, mas não pela administração de recursos, que fica basicamente com o governo federal. Um sistema em que um lado só gasta, e outro paga a conta, não tem como dar certo, já que não há interesse por parte dos que gastam em usar eficientemente os recursos disponíveis. A idéia por trás deste sistema é que os recursos públicos para a saúde seriam infinitos, e apareceriam na medida em que a sociedade, através dos conselhos e administrações locais consiga se mobilizar e aumentar sua demanda.

Existem muitos outros problemas com o sistema SUS, entre os quais o do relacionamento do sistema público com o setor privado de saúde, que não há como discutir aqui. O ponto principal é que estes problemas, distorções e mal funcionamento não são acidentes de percurso e perturbações menores de um sistema que seria “o mais avançado do mundo”, e sim conseqüências inevitáveis de um sistema ambicioso e mal concebido, que precisa ser urgentemente revisto.

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