São Paulo e o Estado Nacional (2)

Vejam o artigo de hoje de Octávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de São Paulo, com o título de “Yankees e Rebeldes”, e comparem com minha nota anterior:

MUITO SE TEM escrito sobre a divisão do Brasil em duas metades que emergiu no domingo. Os jornais trazem mapas onde Rio, Minas, o Nordeste e o Norte aparecem em vermelho (Lula), enquanto São Paulo, o Sul e o Centro-oeste estão em azul (Alckmin).

Essa divisão entre “yankees” e confederados em nossa “Guerra Civil” eleitoral já foi enfocada sob seus dois prismas mais evidentes, o antagonismo de classe e a desigualdade geográfica. Grosso modo, o primeiro opõe as classes populares às classes médias. O segundo ângulo opõe o “Norte” ao “Sul”.

Descontado o esquematismo desse tipo de recortes, há um terceiro prisma a acrescentar. É aquele que separa as regiões onde a presença do Estado na economia e na vida das pessoas ainda é muito grande (vermelho), daquelas áreas nas quais o peso do poder público é menor (azul).

O capitalismo se enraizou há muito tempo em São Paulo e no Sul, onde o dinamismo econômico prescinde, ao menos em boa parte, do Estado. Não por acaso é a região mais sensível ao único tema novo, em termos eleitorais, que surgiu nesta eleição: o da redução da carga tributária hoje próxima de 40% do PIB.

Embora se atribua a inclinação anti-Lula no Centro-oeste à crise da agricultura, essa região se mostra como típica geografia de fronteira, um eldorado de oportunidades, empreendimento pessoal e terras abundantes. Lugar onde vigora o “cada um por si, Deus por todos”.
Em grande parte do Nordeste, e mesmo em Minas e no Rio, o cenário é outro. São regiões onde a onipresença do Estado remonta ao período colonial; são lugares onde o poder do Estado para contratar, subsidiar, autorizar verbas segue enorme, até por compensar a relativa debilidade da economia privada.

Talvez por isso, também, seja notória certa ausência de debate programático. No fundo, o programa de Alckmin se resume a menos Estado ou, no eufemismo publicitário, a Estado menor, menos caro e mais eficiente. E a plataforma de Lula se resume a garantir alguma compensação social, via Estado, em troca da liberdade para o mercado.

Alckmin, por sua vez, tem pouco vínculo orgânico com o que tem sido o PSDB até agora. O núcleo tradicional do partido gravita há 30 anos em torno de intelectuais paulistas, muitos deles uspianos, muitos exilados na ditadura, quase todos antigos marxistas que desacreditaram do marxismo durante o exílio.

Em termos geracionais e ideológicos, Alckmin significa outra coisa. Subiu na política pelas mãos de Mário Covas, a quem os “intelectuais” respeitavam, mas à distância. Em vez de ex-marxista, Alckmin é católico conservador; em vez de cidadão cosmopolita, ostenta com orgulho a marca do interiorano; em vez de sociólogo ou economista, é um gerente pós-ideológico.

Sao Paulo e o Estado Nacional, revisitado

Quando publiquei este livro em 1973 (revisto e republicado mais tarde como Bases do Autoritarismo Brasileiro), o que mais tinha chamado minha atenção era como a política brasileira passava, historicamente, pelo eixo Rio–Minas–Nordeste–Rio Grande do Sul, deixando de fora justamente o centro mais dinâmico da economia do pais, São Paulo (e também Paraná e Santa Catarina), que no máximo produzia lideranças populistas que não transcendiam o estado, como Ademar de Barros, ou o efêmero Jânio Quadros, que afinal era mato-grossense. Eu dizia, seguindo Faoro, que o Estado Nacional era patrimonialista, no sentido de que ela não era o “representante” de determinados interesses, e sim o objeto de interesses de uma classe ou estamento político que vivia de e para o poder; que a política exercida por este Estado era ou autoritária, com os militares, ou populista, com Getúlio, ou uma combinação das duas coisas; e que o sistema partidário nacional era baseado na cooptação das lideranças (inclusive sindicais) pela oligarquia política. E eu imaginava que, com o tempo e a modernização do pais, outro tipo de política, originária em São Paulo, passaria a predominar no país – uma política mais autenticamente representativa, com partidos apoiados nas classes modernas, burguesas e proletárias, da parte mais capitalista do Brasil.

Quase acertei: a partir de Fernando Henrique, e continuando com Lula e agora, Alckmin, São Paulo saiu do isolamento, as lideranças paulistas se transformaram em lideranças nacionais, e são elas que disputam entre si o comando do Estado Nacional. Mas errei, no entanto, ao pensar que esta polarização se daria em termos de uma divisão de classes. Embora as divisões de classe continuem existindo, a política nas sociedades modernas se faz por grandes coalizões de interesses, valores e orientações, e nenhum candidato que se apresente como representante de uma classe social específica consegue apoio suficiente para ganhar uma eleição majoritária. Fernando Henrique conseguiu montar uma coalizão deste tipo, ao liderar um processo de racionalização da economia e modernização do Estado, uma agenda que Alckmin trata de dar continuidade. E Lula, que começa a carreira como um autêntico líder sindical da indústria, se transforma aos poucos no líder do sindicalismo do setor público, e finalmente, em um líder com forte apelo popular, ou populista, e com isto consegue transcender as limitações do antigo PT, e chegar à Presidência.

Neste primeiro turno, as pesquisas eleitorais mostram que Alckmin tem mais apoio nas camadas sociais mais ricas, e Lula, nas camadas mais pobres. Mas se engana quem interpreta isto em simples termos de direita–esquerda, ou burguesia–proletariado. Nem a maioria dos eleitores de Alckmin são burgueses (e sim da classe média), nem a maioria dos eleitores de Lula são proletários (e sim pobres). Mais do que a divisão de classes, é a divisão entre estados e regiões que marca a polarização política que estamos vivendo hoje. Alckmin ganha as eleições de São Paulo para baixo, e Lula, nos estados tradicionais de Minas Gerais, Rio de Janeiro e todo o Nordeste. O que dá força a Lula nestes estados, me parece, não é que ele tenha sido um líder operário e represente os pobres, mas sim sua capacidade de dar continuidade às políticas patrimonialistas tradicionais, distribuindo cargos e subsídios para ricos e pobres em regiões que dependem, para sobreviver, do fluxo de benesses do governo central.

Em outras palavras, o que marca a política brasileira hoje não é, como eu imaginei que viria a ser, a disputa entre lideranças e partidos políticos modernos, nem uma disputa de classes, nem uma disputa entre ricos e pobres, e sim o antigo confronto entre duas maneiras clássicas de fazer política, a política representativa e a política de cooptação.

Analfabetismo: nota sobre um fracasso anunciado

O jornal O Estado de São Paulo dedica hoje uma página à constatação, pela PNAD de 2005 (a pesquisa domiciliar socio-economica do IBGE) de que o analfabetismo diminuiu muito pouco nos últimos anos, apesar dos grandes investimentos do governo Lula no progama de alfabetização. Segundo Ricardo Paes e Barros, a redução que houve se deve exclusivamente a fatores demográficos (os analfabetos são em geral mais velhos, e seu número diminui quando eles morrem). Se o programa do governo teve algum efeito, ele não aparece nas estatísticas.

A única supresa é o espanto que este resultado óbvio parece ter provocado. Todos que têm um mínimo conhecimento do assunto já sabiam de antemão que campanhas de alfabetização como estas não funcionam. Em 2003, ainda no Ministério de Cristóvão Buarque, eu divulguei na Internet uma entrevista em que dizia que a prioridade que ele estava dando ao tema era equivocada, que pode ser vista aqui. O Centro de Estudos Brasileiros de Oxford, que organizou um seminário sobre a educação brasileira que resultou no livro sobre os Desafios da Educação Brasileira, fez o possível para que Cristóvão ou algum de seus assesores participasse dos seminários e colaborasse com o livro, sem nenhum sucesso. Depois, com Tasso Genro, o governo manteve a mesma prioridade, e não se pode dizer que foi por ignorância. É difícil acreditar que a sofisticada avaliação do programa de alfabetização que o jornal menciona possa mostrar resultados diferentes.

Chile: descolando da América Latina

Com o PIB mas alto da região, segundo relatório recente do FMI, o Chile deixa cada vez mais de ser um país “latino-americano”, e se transforma em um país moderno e desenvolvido. Isto se vê com facilidade andando por Santiago, com a arquitetura moderna dos bairros altos, a recuperação do centro histórico, a modernização dos transportes urbanos e as obras rodoviárias por toda parte; e as ruas cheias de gente fazendo compras e enchendo bares e restaurantes, tanto na região elegante da Providencia como na parte antiga da Plaza de Armas e do Mercado Central. Os índices de pobreza no Chile vêm caindo a cada ano, e a distribuição dos gastos sociais é uma das melhores da região. A zona da antiga e decadente Avenida da República é hoje uma área fervilhante de universidades e institutos técnicos privados, freqüentados todos os dias por mais de 50 mil estudantes, sem falar nas universidades tradicionais como a do Chile e a Católica. Até as águas do Rio Mapocho parecem correr mais limpas. Com a proximidade da festa nacional de 18 de setembro, as ruas se enfeitam de bandeiras, e por toda parte se fala da comemoração da “Chilenidad”.

Também há problemas, e muitos. No dia 11 de setembro, aniversário do golpe de Pinochet, grupos de extrema esquerda encapuzados atacaram lojas e repartições públicas com bombas molotov, uma delas provocando um incêndio no palácio presidencial de La Moneda; uma greve dos serviços médicos havia paralisado o atendimento à população; e professores e estudantes das escolas municipais ameaçam com greves e mais manifestações, enquanto o governo tenta resolver os problemas através de comissões de trabalho e negociações que parecem não terminar. Na última década, o governo chileno aumentou muito os investimentos em educação, o ensino médio está praticamente universalizado, a jornada completa se expande rapidamente por toda a rede escolar; mas os resultados do Chile no teste de Pisa são tão ruins quanto os do Brasil ou do México.

Em que medida o que acontece hoje no Chile, de bom e de ruim, tem a ver com as reformas liberais introduzidas durante regime Pinochet? Estas reformas foram mantidas, com modificações, pelos governos de centro-esquerda da Concertación, e o consenso do país, inclusive nos governos socialistas de Lagos e Michelle Bachelet, é que não faz sentido voltar aos velhos tempos, de uma sociedade burocratizada e paralisada. O Chile tem hoje a economia mais competitiva da América Latina, aonde se pode, com mais facilidade, abrir e fechar um negócio, e aonde a abertura ao comércio internacional é maior. Este tipo de economia tem também seus perdedores, e isto explica, talvez, a virulência dos ataques da extrema esquerda, apesar do grande apoio da presidente Michelle Bachelet entre a população.

E existe também o cobre, cujo preço no mercado internacional aumentou enormemente nos últimos anos, gerando grande quantidade de recursos, ao lado das indústrias de exportação como o vinho, as frutas e o salmão. Mas o Chile, diferentemente de outros paises que se enriqueceram com o petróleo, investe a longo prazo e cuida para que a riqueza do cobre não inflacione a economia nem sobre-valorize a moeda, evitando, desta forma, a “doença holandesa” que é a praga dos paises que se enriquecem desta maneira.

Mas o mais importante de tudo, talvez, seja a maturidade política que sempre existiu no país de alguma maneira, sobreviveu aos anos de chumbo da ditadura, e hoje é, possivelmente, a principal diferença entre o Chile e a maioria dos outros paises do continente. Os partidos políticos têm princípios e programas, os políticos são pessoas honradas, há pouca corrupção e pouco espaço para o populismo barato que conhecemos tão bem. Temas controversos – como a política de distribuição da “pílula do dia seguinte” para adolescentes, a reforma da educação, ou as relações sempre difíceis com a Argentina – são discutidos de forma civilizada pela imprensa, o judiciário é independente e acatado e, com a exceção da extrema esquerda alienada, todos respeitam e valorizam as instituições e os processos democráticos de decisão.

Que dá inveja, dá…

Universidade Para Todos!

Na Venezuela:

Mensagem do cidadão Presidente da República a todos os aspirantes a ingressar na Universidade National Experimental Politécnica da Força Armada Nacional: Dei instruções ao cidadão reitor da Universidade no sentido de que, em consonância com a política de participação, inclusão e justiça social que o governo nacional promove, e dado que a EDUCAÇÃO constitui o meio mais eficaz de combater a POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL E APAGAR AS DIFERENÇAS SOCIAIS, todos os jovens que se apresentaram à primeira prova de avaliação desta universidade sejam admitidos em sua totalidade, para começar a estudar em 2006. Benvindos!

A Universidade da Força Armada vem se expandindo rapidamente, ao lado da recém criada Universidad Bolivariana de Venezuela, também experimental. Os cursos da Universidade da Força Armada não têm nada de militar: são licenciaturas e cursos de pós-graduação em engenharia e áreas como economia social, educação integral, administração e contabilidade pública; e cursos técnicos superiores curtos em áreas como turismo e enfermaria.
O site da Universidade Bolivariana não diz quais as carreiras os estudantes poderão seguir (ou pelo menos eu não encontrei a informação); mas indica que todos deverão passar por um curso inicial de 20 semanas de Linguagem e Comunicação, Matemática, Venezuela no Contexto Mundial, Intervenções Especiais, Informática e Orientação Vocacional. Além de não ter exames de seleção, os alunos que passam pela Universidad Bolivariana, pelo que entendo, terão trabalho garantido pelo governo.

As novas universidades funcionam nas instalações magníficas da Companhia de Petróleo Venezuelana, que, depois de demitir metade de seus 40 mil funcionários que ousaram entrar em greve contra o Governo Bolivariano (sem que isto tenha afetado os enormes rendimentos do petróleo), tem espaço de sobra em seus edifícios.

Ser uma universidade experimental significa que tudo é decidido pelo Cidadão Presidente e seus assessores, sem passar pelas administrações e órgãos colegiados como na secular Universidade Central da Venezuela, por exemplo, que no passado foi um centro importante de mobilização e mesmo de luta armada contra as oligarquias e ditaduras que governavam a Venezuela, e hoje se vê ultrapassada e deixada de lado pela Revolução Bolivariana.

Seminário sobre Educação, pobreza e desigualdade no Brasil: prioridades

No dia 17 de outubro, com apoio da Fundação Konrad Adenauer, o IETS estará organizando no Rio de Janeiro um seminário sobre as prioridades nas políticas públicas que possam ajudar a romper o cículo vicioso entre educação, pobreza e desigualdade no Brasil. Na parte da manhã, o tema será o relacionamento entre políticas de renda e educação, com a participação de Sergei Soares, do IPEA; Sonia Rocha, do IETS; e Eduardo Rios-Neto, do CEDEPLAR em Belo Horizonte. Na parte da tarde, trataremos da educação propriamente dita: Aloísio Araujo, da Fundação Getúlio Vargas e do IMPA, falará sobre o impacto de longo prazo da educação da primeira infância; Francisco Soares, da UFMG, sobre o impacto da organização escolar no desempenho dos alunos; e João Batista Araujo e Oliveira e Luis Carlos Faria, sobre o tema do analfabetismo funcional e o que fazer com ele. No encerramento, Milu Vilella coordenará uma mesa redonda sobre o movimento de Todos pela Educação.

Fico realmente contente por ter conseguido reunir um grupo tão excepcional de pessoas neste evento, e espero que ele possa conbribuir para fazer com a que discussão sobre os temas educacionais no Brasil passe para um patamar superior. Mais detalhes podem ser vistos na página do IETS na Internet. Para participar, é necessário se inscrever antes, porque o espaço, no Hotel Glória, é limitado. Para se inscrever, envie uma mensagem para a coordenação do evento.

Encerrando o debate sobre cotas

Eu tinha decidido não continuar participando na discussão sobre cotas raciais no ensino superior, mas a publicação do livro de Ali Kamel provocou uma série de comentários e reações, a favor e contra, que podem ser vistos logo abaixo do texto anterior. Eu vou continuar a deixar neste blog os comentários que forem enviados, desde que coerentes, assinados e não totalmente repetitivos, mas não vou mais circulá-los na lista de correio.

Uma das razões disto é que me parece que os diferentes argumentos já foram formulados, e estão se tornando circulares. A outra razão é que a discussão sobre cotas nas universidades está ocupando todo o espaço e a atenção, e impedindo que se discutam as questões mais centrais do ensino superior e da educação como um todo, dentro da qual o tema das ações afimativas pode ter lugar, mas não o principal.

Quanto ao tema em si, me parece que ninguém duvida que existe preconceito e discriminação racial no Brasil, e que a condição de vida e as oportunidades dos descendentes de escravos e das populações indígenas é bem pior, na média, do que a dos descendentes dos imigrantes europeus e dos países asiáticos. Ao mesmo tempo, as fronteiras entre pessoas de diferentes origens não são nítidas, existe muita convivência e uma longa história de miscigenação, e neste sentido a sociedade brasileira, da mesma forma que outras sociedades latinas com uma história de escravidão como Cuba, Venezuela e República Dominicana, é muito diferente da sociedade americana, sem falar da África do Sul, aonde a separação entre raças e culturas é claramente marcada. O que se discute é se a desigualdade é causada predominantemente pelo preconceito e a discriminação ou por outros fatores, como a má qualidade da educação e de oportunidades de trabalho, que afeta tanto a brancos quanto não brancos, embora em proporção desigual. O que se discute, também, é se a solução para os problemas de desiguldade é dividir o país em duas raças estanques, oficializando as diferenças raciais, ou identificar e eliminar as situações de desigualdade e discriminação, fazendo com que o país evolua no sentido de uma sociedade em que todos sejam igualmente reconhecidos e valorizados pelo que são como pessoa, e não pela cor da pele que têm.

Finalmente, é natural que diferentes grupos, na sociedade, possam ter interesse em ressaltar e redefinir suas identidades, sejam elas associadas a origem, cor, gênero, preferência sexual ou religião, e interpretem de forma diferente a história e as experiências passadas. O que se discute, em relação a isto, é se é necessário adotar uma interpretação específica da história como a oficial e impô-la aos demais, ou deixar que as diferentes interpretações coexistam, em uma sociedade efetivamente pluralista.

Ali Kamel: Não Somos Racistas

O livro de Ali Kamel, sob o título acima, reune muitas das coisas que ele vem escrevendo no “O Globo” sobre o tema, e estou transcrevendo abaixo um trecho, acompanhado de um comentário de Jerônimo Teixeira sobre “as falácias da política de cotas raciais”. Estes textos já circularam em minha lista, por sugestão de Maria Cristina Barreto.

Segundo Ivonildo Leite, “quanto mais não seja, os dois textos a seguir são interessantes para, no mínimo, tornar a discussão sobre cotas mais plural. Um tanto mais audaciosa talvez seja a pretensão de pautar o debate pela racionalidade, indo além do discurso “politicamente correto”, que, por não fazer nenhuma distinção entre ideologia e ciência, cria embaraços para as próprias causas que defende.”

Já Luisa Schwartzman discorda: “eu nao acho que os dois textos tornem a discussao mais plural. Pelo contrario, eles a tornam tao plural quanto sempre foi desde que comecou. Ou seja, as pessoas ou sao contra ou a favor das cotas. Só existem esses dois pontos de vista? Ninguém consegue pensar em mais nada? Nao tem meio-termo?

NÃO SOMOS RACISTAS

Ali Kamel

Foi um movimento lento. Surgiu na academia, entre alguns sociólogos na década de 1950 e, aos poucos, foi ganhando corpo até se tornar política oficial de governo. Mergulhado no trabalho jornalístico diário, quando me dei conta do fenômeno levei um susto. Mais uma vez tive a prova de que os grandes estragos começam assim: no início, não se dá atenção, acreditando-se que as convicções em contrário são tão grandes e arraigadas que o mal não progredirá. Quando acordamos, leva-se o susto. Eu levei. E, imagino, muitos brasileiros devem também ter se assustado: quer dizer então que somos um povo racista? Minha reação instintiva foi me rebelar contra isso. Em 2003, publiquei no Globo um artigo cujo título dizia tudo: “Não somos racistas.”

Depois dele, publiquei outros tantos e, hoje, vendo-os no conjunto, tenho a consciência de que fui me dando conta do estrago à medida que ia escrevendo. Escrevi sempre na perspectiva de um jornalista, de alguém especializado em ver o imediato das coisas. Outros lutaram em seus campos, sempre com muita propriedade. Gente como os historiadores José Roberto Pinto de Góes, Manolo Florentino, José Murilo de Carvalho e Monica Grin, os antropólogos Yvonne Maggie, Peter Fry e os sociólogos Marcos Chor Maio, Ricardo Ventura e Demétrio Magnoli e o jornalista Luis Nassif, entre tantos outros, tentaram alertar a sociedade brasileira para o perigo nos jornais, em artigos especializados, em seminários e em livros.

Na perspectiva de jornalista, de alguém mais próximo do cidadão comum, espantei-me diante de algumas descobertas. Um exemplo, o conceito de negro. Para mim, para o senso comum, para as pessoas que andam pelas ruas, negro era um sinônimo de preto. Nos primeiros artigos, eu me debatia contra uma leitura equivocada das estatísticas oficiais acreditando nisso. Certo dia, caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos aqueles que não eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram brancos ou eram negros. De repente, nós que éramos orgulhosos da nossa miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores, fomos reduzidos a uma nação de brancos e negros. Pior: uma nação de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele país não era o meu.

O debate em torno de raças no Brasil sempre foi intenso. Deixando de lado todo o debate entre escravocratas e abolicionistas, o século XX foi todo ele permeado por essa discussão. Nas primeiras décadas do século passado, o pensamento majoritário nas ciências sociais era racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da miscigenação. O racismo era decorrente justamente dessa constatação: para que o país progredisse, diziam os sociólogos, era preciso que se embranquecesse, diminuindo a porção negra de nosso povo. Foi Gilberto Freyre quem mais se destacou em se contrapor a um pensamento tão abjeto como este.
Freyre não foi o autor do conceito de “democracia racial”, não foi ele quem cunhou o termo, hoje tão combatido. Aliás, era avesso a tal conceito, porque o que ele via como realidade era a mestiçagem e não o convívio sem conflito entre raças estanques. Usou em discursos a expressão uma ou duas vezes, a partir da década de 1960, mas sempre como sinônimo de um modelo em que a miscigenação prevalece. Jamais edulcorou a escravidão. Casa grande e senzala, a obra-prima de Freyre, dedica páginas e mais páginas ao relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Está tudo ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: o trabalho desumano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens, violadas na crença de que o estupro curaria a sífilis, as mucamas que tinham os olhos furados e os peitos dilacerados apenas por despertar os ciúmes das senhoras de engenho. Freyre não omite nada; expõe. É claro que também reconhece no branco português uma elasticidade, sem o que não poderia ter havido mistura. É claro que descreve certo congraçamento entre o elemento branco e o negro.

Essas características de Casa grande e Senzala, no entanto, foram tão realçadas com o decorrer do tempo que muitos hoje acreditam, erradamente, que Freyre escondeu os horrores da escravidão para fazer do Brasil mais do que uma democracia racial, um paraíso.

O papel de Freyre, porém, foi outro, muito mais marcante. No debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez foi resgatar a importância do negro para a construção de nossa identidade nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro, dando a ela sua real dimensão, sua real importância. A nossa miscigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa chaga, mas a nossa principal virtude.

Hoje, quando vejo o Movimento Negro depreciar Gilberto Freyre, detratando-o como a um inimigo, fico tonto. Os ataques só podem ser decorrentes de uma leitura apressada, se é que decorrem mesmo de uma leitura.

Como bem tem mostrado a antropóloga Yvonne Maggie, a visão de Freyre coincidiu com o ideal de nação expresso pelo movimento modernista, que via na nossa mestiçagem a nossa virtude. Num certo sentido, digo eu, a antropofagia cultural só poderia ser mesmo uma prática de uma nação que é em si uma mistura de gentes diversas. Esse ideal de nação saiu-se vitorioso e se consolidou em nosso imaginário. Gostávamos de nos ver assim, miscigenados. Gostávamos de não nos reconhecer como racistas. Como diz Peter Fry, a “democracia racial”, longe de ser uma realidade, era um alvo a ser buscado permanentemente. Um ideal, portanto.
Isso jamais implicou deixar de admitir que aqui no Brasil existia o racismo. É evidente que ele existia e existe, porque onde há homens reunidos há também todos os sentimentos, os piores inclusive. Mas a nação não somente não se queria assim como sempre condenou o racismo. Aqui, após a Abolição, nunca houve barreiras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia. E para combater as manifestações concretas do racismo – inevitáveis quando se fala de seres humanos – criaram-se leis rigorosas para punir os infratores, sendo a Lei Afonso Arinos apenas a mais famosa delas.

Mas a partir da década de 1950, certa sociologia foi abandonando esse tipo de raciocínio para começar a dividir o Brasil entre brancos e não-brancos, um pulo para chegar aos que hoje dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que negro é todo aquele que não é branco. Nos trabalhos de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e, mais adiante, Carlos Hasenbalg, se a idéia era “fazer ciência”, o resultado sempre foi uma ciência engajada, a favor de negros explorados contra brancos racistas. A idéia que jazia por trás era que a imagem que tínhamos de nós mesmos acabava por ser maléfica, perversa com os negros. Era como se o ideal de nação a que me referi tivesse como objetivo o seu contrário: idealizar uma nação sem racismo para melhor exercer o racismo. O papel da ciência, “para o bem dos negros”, seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e substituindo-a pela realidade do racismo. Esse raciocínio levava, porém, ao paroxismo de permitir a suposição de que um racismo explícito é melhor do que um racismo envergonhado, esquecendo-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo, muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor.

AS FALÁCIAS DA POLÍTICA DE COTAS RACIAIS NA ANÁLISE DEMOLIDORA DE ALI KAMEL

Jerônimo Teixeira

No início dos anos 1930, às vésperas da ascensão do nazismo, as posições pacifistas do físico alemão Albert Einstein geravam rancor entre seus compatriotas. Com o título de 100 Autores contra Einstein, um livro coletivo foi publicado para atacar suas idéias. Einstein respondeu com sua inteligência característica: “Por que 100 autores? Se eu estivesse errado, um só bastaria”.

A anedota merece ser lembrada a propósito da recente guerra de abaixo-assinados gerada pela Lei de Cotas e pelo Estatuto da Igualdade Racial – projetos de lei que visam a estabelecer políticas de “ação afirmativa” para favorecer os negros, com cotas raciais nas universidades e no funcionalismo público. Há pouco mais de um mês, um manifesto contrário ao estatuto, assinado por 114 intelectuais, foi entregue ao Congresso. Os movimentos sociais que apóiam as cotas responderam de bate-pronto com outro abaixo-assinado, este com 330 signatários.

Agora, quando a poeira da discussão já começava a assentar (e a votação do estatuto na Câmara dos Deputados ficou para o ano que vem), o diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, lança um livro fundamental para entender a questão. Não Somos Racistas (Nova Fronteira; 144 páginas; 22 reais) demonstra que as chamadas “ações afirmativas” são uma resposta irracional para um problema fictício – o racismo institucional, que não vigora no Brasil.

O engano fundamental das políticas raciais estaria, de acordo com Kamel, em considerar que a sociedade brasileira é constitutivamente racista. Existe racismo no Brasil, mas ele não é um dado predominante da cultura nacional e não conta com aval de nenhuma instituição pública. Ao exigir, por exemplo, que certidões de nascimento, prontuários médicos e outros documentos oficiais informem a raça de seu portador, o Estatuto da Igualdade Racial está na verdade desprezando uma longa tradição de mistura e convivência em prol de categorias raciais estanques e estúpidas. É, na prática, um exercício de discriminação racial, sancionado pelo Estado.

A miscigenação, dado central da sociedade brasileira, é o fato recalcado pelos defensores das cotas. A lógica beligerante implícita do estatuto e da lei de cotas é de que existem dois grandes grupos no Brasil: os brancos, opressores, e os negros, oprimidos. Isso se revela até no uso das estatísticas do IBGE – e um dos pontos fortes de Não Somos Racistas é a clareza com que o autor (que, além de jornalista, tem formação em ciências sociais) destrinça números para desmontar a falácia das cotas. Nas contas dos que defendem medidas do gênero, os negros são 48% da população, mas representam 66% dos brasileiros pobres. Kamel parte da mesma fonte – a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do IBGE – para observar que, na verdade, os negros são uma minoria (veja o quadro). Os filhos da miscigenação, definidos como “pardos”, são mais numerosos e têm um lugar ambíguo no discurso racial. Sendo, em geral, descendentes de africanos e de europeus, por que deveriam ser considerados apenas “negros”? Pardos e negros, somados, representam, sim, a maioria dos pobres brasileiros – em números absolutos, 38 milhões. Mas o contingente de brancos pobres também é enorme. Como justificar uma política de avanço “racial” que deixaria para trás a massa de 19 milhões de brancos pobres?

Os mulatos mais claros serão favorecidos ou esquecidos por essas políticas de discriminação? O Estatuto da Igualdade Racial, como se vê, é uma receita para que os cidadãos brasileiros recebam tratamento desigual por parte do Estado.

A pobreza, argumenta Kamel, é a chaga social renitente do Brasil. Ela não discrimina: atinge brancos, negros, mulatos. “Negros e pardos são maioria entre os pobres porque o nosso modelo econômico foi sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por definição, não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre”, observa Kamel. Negros, brancos e pardos, diz o autor, só sairão da pobreza por força de políticas que incluam a todos – especialmente com investimentos consistentes em educação.

Kamel também é muito eficiente ao traçar o histórico das equivocadas políticas raciais debatidas hoje. A idéia de que o Brasil é racista foi, de acordo com o autor, inventada a partir dos anos 1950 por cientistas sociais como Florestan Fernandes – e Fernando Henrique Cardoso. Foi em consonância com as idéias expostas na obra do sociólogo – como Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – que o presidente Fernando Henrique implementou as primeiras políticas de “ação afirmativa” no funcionalismo público. A distorção que Kamel chama de “nação bicolor” teve início ali, e ganhou uma continuidade “canhestra” no governo Lula. Caberá aos deputados eleitos neste ano dar um ponto final nessa escalada, recusando o Estatuto da Igualdade Racial. Seria salutar que todos eles lessem Não Somos Racistas.

Debate sobre cotas no CEBRAP – 2

O debate sobre cotas nas universidades lida com uma dimensão do ensino superior no Brasil, a do acesso, mas não só deixa outras questões importantes de fora, como que acaba ocupando todo espaço do debate público sobre a questão universitária, que fica em segundo plano.

Em minha apresentação no CEBRAP, chamei a atenção para o fato de que o sistema de ensino superior brasileiro é fortemente estratificado, tanto no sentido de que a maior parte dos alunos vêm de camadas sociais médias e altas, como no sentido de que a estratificação se dá no interior das instituições. Anteriormente, as instituições públicas tendiam a ser de melhor qualidade, gratuitas e de difícil acesso, enquanto que as privadas, além de pagas, eram de pior qualidade, e aceitavam qualquer tipo de aluno. Hoje, existem muitas instituições públicas tão ruins quanto muitas privadas, e diferenças importantes dentro de cada instituição; um número crescente de instituições privadas de elite, sobretudo nas áreas de administração e direito; e um segmento crescente de educação superior privada de acesso gratuito, com poucos requisitos de entrada, e financiado pelo governo federal através do ProUni. Para os estudantes que entram nos cursos e instituições de pior qualidade, públicos ou privados, pagando ou sem pagar, com ou sem cotas, as chances são altas de que aprendam pouco e mal, abandonem o curso antes de diplomar, e, mesmo se conseguirem o diploma, deixem de obter os benefícios que esperavam que ele trouxesse. Na medida em que o ensino superior se expanda, o mais provável é que sejam os segmentos de má qualidade que cresçam, porque estes são os mais baratos, e com isto aumentem estes problemas, a um custo crescente para a sociedade, em dinheiro e frustração.

O caminho não é deter a expansão, mas tornar o sistema mais diversificado e mais eficiente. A diversificação consiste em criar alternativas reais ao modelo dominante de ensino superior, calcado nas antigas profissões liberais, e abrir espaço para diferentes tipos de formação, para pessoas com diferentes interesses e condições de estudo. Hoje, em toda a Europa, discute-se o modelo de Bologna, que combina um nível inicial de três anos para todo o ensino superior, mais acadêmico ou mais aplicado, seguido de um período de formação profissional de dois anos (equivalente ao mestrado), e outro adicional de três ou quatro anos para a formação de alto nível; esta discussão, até agora, não chegou ao Brasil. Se as universidade públicas fossem mais eficientes, elas poderiam, com os mesmos recursos que tem hoje, melhorar sua qualidade e atender a mais alunos. Para se tornarem mais eficientes, elas precisam deixar de funcionar como repartições públicas, assumir a responsabilidade pela gestão plena de seus recursos materiais e humanos, e serem cobradas por seus resultados.

Como não há recursos para continuar financiando a expansão do ensino superior público e gratuito, diante das prioridades muito maiores da educação básica e média, é necessário recolocar a questão do ensino superior público gratuito, e o espaço adequado do ensino privado. A expansão depende hoje, fundamentalmente, do setor privado, que já atende à 70% da matrícula no ensino superior do país. O atual governo, apesar de tratar o setor privado quase como delinqüente, no projeto de reforma que elaborou, foi o primeiro da história recente do país a subsidiá-lo diretamente, através da isenção de impostos do ProUni. É importante criar um marco regulatório adequado tanto para o setor público quanto para o setor privado, para estimular a qualidade de ambos, assim como os espaços para novas modalidades de educação nos mais diversos níveis, e para diferentes públicos.

Parece que esquecemos, finalmente, que uma das funções fundamentais do ensino superior é a formação de alto nível e a pesquisa científica e tecnológica. Isto está dito em todos os documentos públicos, frequentemente em termos da famosa “indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão”. O que não se diz é que, em todo mundo, a excelência só se consegue em algumas poucas instituições, geridas por critérios estritos de qualidade e desempenho, e com níveis de financiamento muito superiores às demais. Sem uma politica deliberada de excelência e concentração de recursos, associada a um processo bastante amplo de diferenciação e ampliação do acesso, não iremos a nenhuma parte.

Em um contexto mais amplo de reformas, cabem, certamente, políticas compensatórias para aumentar a diversidade dos jovens que chegam às universidades, desde que acompanhadas de programas educacionais adequados e apoio financeiro para que o acesso ao ensino superior não seja uma simples farsa; e sem que as pessoas precisem ser catalogadas e etiquetadas pelas autoridades conforme a raça de seus avós.

Discriminação e desempenho acadêmico


Será que as pessoas que são discriminadas têm pior desempenho nos estudos que as que não o são? Os dados do questionário socio-econômico dos participantes do ENEM sugerem que não. Uma percentagem significativa dos participantes que se consideram negros – 52.4% – dizem que já sofreram discriminação racial, assim como 15.2% dos pardos e 16.7% dos amarelos, ou orientais. No entanto, o desempenho no ENEM, tanto de pardos quanto de pretos, não está relacionado à discriminação, mas ao nível sócio-economico das familias.

É claro que ser e dizer que é discriminado são coisas diferentes: algumas pessoas podem ser discriminadas sem se dar conta, e outras podem ser especialmente sensíveis a qualquer forma de preconceito. Mas a reação a isto tanto poderia ser de se prejudicar pela discriminação recebida como de reagir contra ela, e não se deixar abater. Os dados do ENEM sugerem que as pessoas que se sentem discriminadas não se deixam abater, e se desempenham da mesma forma ou até melhor do que os outros, dentro das limitações de sua condição social e de seu meio.

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial