O Banqueiro do Mundo

Para quem se interessa pelos temas da pobreza, desigualdade social e direitos humanos, o livro de Sebastian Mallaby, The World’s Banker – uma história de estados falidos, crises financeiras e a riqueza e a pobreza das Nações (New York, Penguin, 2004) é leitura obrigatória. O “Banqueiro do Mundo” é Jim Wolfenshon, presidente do Banco Mundial entre 1995 e 2005, personalidade ambiciosa e contraditória, ao redor da qual Mallaby produz uma esplêndida análise das atividades do Banco Mundial, não somente através de seus projetos, como sobretudo através do confronto permanente entre diferentes visões a respeito do seu papel e de como enfrentar as questões da pobreza e do subdesenvolvimento, do meio às pressões políticas de todos os lados, as grandes crises financeiras e as guerras civis que marcaram a última década, antes que o 11 de setembro sinalizasse, talvez, o início de uma nova era.

Nestes anos, o Banco Mundial deixou de ser uma agência de investimentos em grandes obras de infra-estrutura, e tentou se transformar no campeão mundial dos direitos humanos, da proteção do meio ambiente e da organização dos pobres e discriminados em defesa de seus direitos e interesses. Mallaby resume esta passagem dizendo que o Banco, que no início só se preocupava com o capital físico, passa pelo tema do capital humano, e termina como o grande propulsor do capital social. Esta mudança não se explica, simplesmente, pelas idéias do seu presidente, mas pela maneira pela qual ele reage e procura se adaptar a todo o tipo de pressões e conflitos que atingem a instituição, desde os governos conservadores que não acreditam que exista um papel para organizações multilaterais como esta, nem políticas de combate à pobreza que possam resultar, até as organizações não governamentais que vêm no Banco um agente dos interesses da globalização, do capitalismo multinacional e das ambições imperialistas dos Estados Unidos. Não é uma mudança bem sucedida: o livro mostra como, na ânsia de agradar a todos, o desagrado é geral, o Banco passa por graves crises e conflitos internos, e termina voltando, dentro de certos limites, aos projetos de infra-estrutura mais tradicionais.

Wolfensohn assume o Banco quando, em Madrid, manifestantes exigiam nas ruas o fechamento da Instituição, proclamando que “cinqüenta anos já bastam”. Segundo os críticos, o Banco funcionava como braço auxiliar do Fundo Monetário Internacional das políticas de ajuste fiscal que forçavam os países pobres a cortar orçamentos, desmantelar os sistemas de bem estar social, privatizar empresas estatais e abrir as fronteiras para o capitalismo internacional; e, além disto, vinha de uma tradição de apoio a governos corruptos e ditatoriais, aliados do ocidente na Guerra Fria. “A imagem do economista do Banco Mundial viajando de primeira classe de Washington para uma capital qualquer do terceiro mundo, trazendo uma mala de dinheiro para ditadores corruptos, ficou gravada na imagem do público: os ajustes estruturais passaram a ser vistos como um pacto pernicioso entre o burocrata e o autocrata” (p. 49).

Wolfensohn tenta mudar esta situação, criando ou recuperando a imagem do Banco como instituição sensível, preocupada com a pobreza e com o meio ambiente, e intolerante com a corrupção. Para mostrar sensibilidade, o banco deveria ouvir e responder a todas as demandas e críticas das organizações não governamentais, e ser ainda mais radical que elas em seu compromisso com os pobres; para cuidar do meio ambiente, o Banco passa a incorporar normas cada vez severas de avaliação de impacto ambiental de seus projetos, e reduz o financiamento a barragens e outras obras que pudessem levar ao deslocamento de populações, a ameaça a espécies e à poluição do meio ambiente; para não se comprometer com a corrupção, o Banco procura apoiar programas que transferem recursos diretamente às pessoas, e não às burocracias, ou condicionar os empréstimos e financiamentos à criação de mecanismos e instituições que possam garantir seu bom uso. O Banco transfere os escritórios de suas coordenações nacionais para os respectivos países, e passa a ser um defensor do perdão da dívida externa dos paises mais pobres. A reforma do setor público, com a criação de instituições modernas e eficientes nos países em desenvolvimento, passa a ser objeto de atenção cada vez maior. Ao mesmo tempo, o Banco continua e amplia suas atividades de análise e pesquisa, transformando-se no principal centro de estudos sobre temas relacionados à pobreza e ao desenvolvimento em todo o mundo.

Existiam limites, no entanto, para tudo isto. As políticas de ajuste estrutural não estavam ajudando a maioria dos países a revigorar suas economias, e elas não dependiam do Banco, que, no entanto, era chamado a colaborar com o FMI na montagem dos pacotes de financiamento para atender às crises mais graves. As críticas que o Banco poderia ter a estas políticas, expressas de forma mais radical nos escritos de Joe Stiglitz, se referiam sobretudo à forma em que estas políticas eram impostas e implementadas nos países, e não à sua necessidade do ponto de vista macroeconômico. O problema parecia estar relacionado, sobretudo, à questão da “good governance”, bom governo, que era associada mas não se reduzia à questão da corrupção política. Nos tempos da Guerra Fria, e antes da crise do ajuste econômico, o Banco apoiava governos como o do Presidente Suharto da Indonésia, entendendo pragmaticamente que o importante era que a economia crescesse e o que país se mantivesse alinhado ao bloco ocidental, mesmo que neste processo algumas pessoas se fizessem multimilionárias e os princípios democráticos sofressem. A crise do ajuste mostrou que, na hora de disciplinar os gastos públicos, privatizar companhias e redirecionar os gastos sociais, ter um governo agindo com competência e responsabilidade e outro que só está interessado em se manter no poder e distribuir favores entre amigos podia fazer toda a diferença. Países bem governados, como a Uganda, a China e o Chile, encontraram formas de usar bem os recursos internacionais e enfrentar as crises, enquanto que outros, como as Filipinas, a Indonésia e a Bolívia não o fizeram.

As relações entre ética, competência e resultados, no entanto, são muito mais complexas do que aparentam: na economia, não há boas intenções que sobrevivam a uma política macroeconômica equivocada; na política, governos totalitários cometem os piores crimes em nome de princípios elevados e da busca da eficiência econômica e da ordem social, enquanto que líderes democráticos necessitam negociar apoios e alianças sem sempre palatáveis. O casos da Argentina e Brasil, que Mallaby não analisa ilustram bem os dilemas envolvidos. Por um tempo, na Argentina, parecia que a paridade com o dólar, estimulada e elogiada pelo FMI, havia feito a mágica de fazer o país entrar definitivamente para o primeiro mundo. Diante disto, a corrupção do governo Menem e o descontrole das finanças públicas pareciam um inconveniente desagradável, mas sem maiores conseqüências. Depois do desastre, discute-se ainda se era a política econômica que estava errada, e que fracassaria com qualquer governo, ou se foi a irresponsabilidade das autoridades que faz o país perder uma oportunidade de ouro. No Brasil, governos democráticos e honestos como os de Fernando Henrique Cardoso e Lula nem sempre souberam definir com clareza a fronteira entre políticas necessárias de aliança e tolerância inadmissível à corrupção.

Esta complexidade não existe para os ideólogos da política e dos movimentos sociais. A maioria das organizações não governamentais do primeiro mundo, descritas por Mallaby como “a máfia de Berkeley”, vê o mundo em preto e branco, e depende da mobilização constante e do impacto na mídia para continuar existindo. Mallaby examina em detalhe um caso extremo, a polêmica criada contra o projeto de financiamento de construção da represa de Qinghai na China, na região do Tibet, aparentemente de grande valor e interesse para os habitantes da região, mas contestada violentamente pelas ONGS nos Estados Unidos. “O cerco das ONGS, visível nas ruas ao redor dos escritórios do Banco em Washington, existia de forma invisível dentro do próprio Banco. Para aplacar os missionários, o Banco os deixou entrar em seus domínios, criou regras que refletiam os valores dos missionários, e jurou obedecê-las. O resultado foi uma organização de desenvolvimento que foi perdendo contato com os países em desenvolvimento, uma organização que refletia a agenda dos ativistas do Norte, e não as difíceis circunstâncias de seus clientes mais pobres.”

A oposição dos círculos mais conservadores, que se intensificou a partir da presidência de George W. Bush, não era muito diferente. Por um lado, havia os que, como o Secretário do Tesouro Paul O’Neill, consideravam que o crescimento do mercado privado de capitais tornava uma instituição multilateral como o Banco Mundial desnecessária, e não viam nenhum valor em suas tentativas de agir em todas as áreas relacionadas com os temas da pobreza, sem a eficiência e a clareza de objetivos das grandes empresas privadas, como a Alcoa, de onde vinha o Secretário. Mais amplamente, o governo Bush, como principal acionista do Banco, nunca aceitou de bom grado que esta fosse uma instituição multilateral que tivesse suas políticas próprias, e não alinhadas às orientações e aos valores do governo norte-americano. Esta situação se tornou particularmente difícil depois da invasão do Iraque, quando o Banco é chamado, mas reluta, em participar do financiamento da reconstrução do país. O mundo é simples, para os conservadores americanos. De um lado, estão as virtudes do capitalismo, da democracia e do American way of life; de outro, o resto. Cabe a cada um decidir de que lado quer ficar, sem dúvidas, complicações e elaborações intelectuais mais complexas, que só expressam a falta de clareza moral e de convicções das pessoas. De alguma maneira, Wolfensohn consegue sobreviver ao primeiro mandato de Bush, mas, em 2005, o governo americano nomeia para seu lugar um de seus ideólogos mais conservadores, Paul Wolfowitz.

Mallaby não é um radical, e sua avaliação do Banco Mundial nos anos de Wolfensohn é balanceada. Ele critica Wolfensohn pelas tentativas de reforma institucional do Banco, que jamais poderia funcionar como uma empresa, e que sofreu grande desgaste pelos processos constantes de reorganização interna. Ele considera correta a postura do Banco em relação às políticas de ajuste estrutural do FMI, ao considerar que medidas financeiras não funcionariam por elas mesmas, e colocar o foco de atenção nos problemas de corrupção, do perdão da dívida dos países mais pobre, e do enfrentamento direto dos problemas da pobreza. Por outro lado, ele critica a tentativa do Banco de criar uma nova estratégia global de atuação, através do que ficou conhecido como o “Comprehensive Development Framework”. As duas principais idéias nesta estratégia era que os projetos de desenvolvimento não poderiam ser impostos pelo Banco aos países e controlados por condicionalidades, mas deveriam ser solicitados e “apropriados” por eles (a expressão inglesa é “country ownership”); a segunda era a abrangência dos projetos: não haviam prioridades, tudo precisava ser feito ao mesmo tempo – educação, saúde, reforma institucional, sistema de crédito, infra-estrutura de transportes e eletricidade… Ainda que plausíveis em teoria, estas idéias dificilmente funcionavam na prática, pela própria relação assimétrica entre um grande Banco com muito dinheiro e países pequenos buscando adivinhar as intenções e agradar o financiador.

Ao final, Mallaby diz que o principal problema com a gestão de Wolfensohn foi a grande ambição de atender a todos, e fazer do Banco o grande motor do desenvolvimento e do combate à pobreza. O Banco Mundial não é um substituto para um governo mundial, o dinheiro que dispõe é só uma fração dos recursos que os países necessitam para se desenvolver, e seus milhares de funcionários, por melhores que sejam, são poucos se comparados com as grandes administrações dos países ricos ou em desenvolvimento. Não é possível, ao mesmo tempo, agradar os acionistas, atender aos ditames da política externa e interna norte-americana, obter o apoio dos governos dos países em desenvolvimento e as ONGS da “máfia de Berkeley”, enfrentar a corrupção, e ajudar os pobres do terceiro mundo a se tornarem responsáveis pelo seu próprio destino. A esta ambição messiânica e desmesurada, Mallaby contrapõe a importância da humildade, que poderia fazer com que o Banco pudesse usar, da melhor maneira possível, o grande acervo de experiências e conhecimentos que tem acumulado ao longo destes anos tão tumultuados. Agora é esperar para ver.

O Milagre do ENADE

Tenho recebido vários comentários sobre minha análise dos resultados do ENADE, e o texto, que está disponível na minha página na Internet, tem passado por sucessivas revisões (veja o link na nota abaixo). Um dos comentários é que os resultados estão sendo bem recebidos em muitas faculdades, porque elas melhoraram de conceito em relação ao Provão.

Para testar isto, comparei os conceitos no Provão de 2002 e no ENADE para 78 cursos de medicina que foram avaliados por ambos.

E, de fato, em uma escala de 1 a 5, em que 5 é o conceito mais alto, a média do Provão era de 3.01, e a média do ENADE é de 4.18! Seria um verdadeiro milagre, se os cursos de medicina tivessem tido uma melhora tão espetacular nestes poucos anos. Mas é claro que não é nada disto. Como as notas do Provão são padronizadas, a média só pode ser 3, em uma escala de 1 a 5. As notas do ENADE também foram padronizadas, mas de uma maneira estranha que depende do valor mais baixo, e além disto elas foram ponderadas pelas notas do exame de conhecimentos gerais e do exame aplicado aos alunos iniciantes, como está explicado no “resumo técnico” divulgado pelo INEP e no meu texto. O resultado é o “milagre” da melhoria dos conceitos de quase todo mundo.

Uma outra informação interessante é que a correlação de Pearson entre os conceitos do Provão de 2002 e os do ENADE é de .409, ou seja , um r2 de 0,167, Isto pode ser interpretado como significando que só 16.7% dos resultados medidos pelo ENADE se explicam pela qualidade medida pelo Provão de 2002. O resto é milagre mesmo.

O Enigma do ENADE

O Enigma do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes que substituiu o antigo Provão, era por quê muitos cursos apresentam piores resultados nos exames entre os alunos que se formam do que entre os que iniciam. No Blog anterior, abaixo, eu sugeri três respostas, uma delas sendo possíveis problemas de validação dos testes.
Para tentar entender o que estava acontecendo, fiz uma breve análise dos dados disponíveis, e o resultado está em O Enigma do ENADE, na minha página na Internet. Pode ser que eu não tenha conseguido resolver totalmente o enigma, mas, no processo, algumas outras coisas interessantes apareceram.

ENADE

Alguem já olhou com detalhe os dados do ENADE, o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, divulgado recentemente pelo Ministério da Educação? O Ministério aplicou a mesma prova de conhecimentos específicos a alunos do início e do fim dos cursos, e descobriu que, em muitos deles, os que estão se formando sabem menos que os que estão entrando! (havia tambem uma prova de conhecimentos gerais, mas desta o Ministério só divulgou a média geral, juntando os estudantes do início e do fim).
Eu consigo pensar em três explicações possíveis para isto. A primeira é que muitos cursos, em vez de educar os estudantes, estão tornando-os mais burros. A segunda é que os estudantes que estão entrando agora são muito melhores do que os que estão saindo, o que promete excelentes formados dentro de alguns anos. A terceira é que os testes estão mal feitos, e não medem o que se pensa que eles deveriam medir.
Quem quiser, vote em uma destas tres hipóteses (em “comments”, abaixo), e prometo, desde já, uma análise mais sistematica dos dados já disponíveis, que possa talvez ajudar a elucidar o mistério, Breve!

A pesquisa e a política educacional

A Conferência de Praga sobre “Pesquisa Para Resultados em Educação”, nos países em desenvolvimento e em “transição” (ou seja, ex-comunistas) entre 31 de março e 2 de abril em Praga, foi muito interessante, e teve uma forte presença brasileira. A Conferência foi organizada pelo Global Development Network (GDN), que tem apoio do Banco Mundial, e tem um componente dedicado à educação. A maioria dos trabalhos apresentados foram produzidos com recursos de três programas de apoio à pesquisa educacional, um dos quais, na América Latina, gerenciado pelo PREAL, mas esteve aberta a todos os interessados em apresentar trabalhos, que foram selecionados por um comitê especializado.

Paulo Renato

Paulo Renato de Souza esteve presente, e fez a primeira conferência plenária, centrada na experiência brasileira do INEP, que, na sua gestão no MEC, criou uma ampla base de informações sobre a educação em todos os níveis, que foram utilizadas depois para a implementação de políticas específicas. Esta preocupação com informações objetivas levou inclusive à decisão de participar do estudo comparado internacional denominado PISA, da OCED, aonde, segundo Paulo Renato, já se sabia que o país apareceria em péssima situação. Minha principal observação aqui é que, infelizmente, o INEP não conseguiu se estabelecer como instituição permanente, com quadro próprio e recursos orçamentários, e por isto se tornou especialmente vulnerável ao desmonte ocorrido durante a troca de governo, do qual até agora não se refez completamente. A outra observação é que, se é verdade que a disponibilidade de dados permitiu o desenvolvimento da pesquisa quantitativa sobre a educação brasileira, o Ministério nunca teve uma política clara e explícita de disseminação das informações e contratação de consultores, fazendo com que pesquisadores independentes tivessem dificuldade ou não conseguissem acesso aos microdados de seu interesse.

Eric Hanushek, os salários e o trabalho dos professores

Antes, houve uma conferência inaugural de Eric Hanushek,um dos mais conhecidos economistas da educação, que participou anos atrás de uma pesquisa sobre educação no Nordeste brasileiro. A tese de Hanushek, baseda em extensa revisão de resultados de pesquisa, é que não existe relação entre gastos em educação, salários de professores, recursos materiais e outras características das escolas, e aprendizagem dos alunos, exceto em situações aonde os recursos para a educação são ainda extremamente baixos. Fora isto, diz ele, a única coisa que faz diferença é se o professor é bom ou não. Mas não há como formar um bom professor, eles nascem assim, ou não nascem. Então, a única política educacional possível é ir contratando novos professores, retendo os bons, e ir substituindo os outros. O argumento geral, que não adianta jogar dinheiro bom em escolas ruins, me parece bastante convicente. A conclusão, no entanto, além de ser inviável na prática, é absurda, porque existem muitas coisas que podem ser feitas para melhorar a qualidade dos professores e a pedagogia das escolas, sem precisar depender das qualidades aleatórias dos professores.

O efeito do aumento de salário dos professores proporcionado pelo FUNDEF sobre o desempenho escolar foi, exatamente, o tema de um trabalho apresentado por Naércio Menezes Filho e Elaine Pazello, da USP. Eles calculam o impacto dos aumentos de salários nos resultados do SAEB, e concluem que, na educação pública, parece não fazer diferença, mas na educação privada sim. No entanto, no setor público, os alunos dos novos professores contratados a partir do FUNDEF têm desempenho melhor do que os demais. Esta pesquisa parece confirmar a tese de Hanushek que, quando existe a possibilidade de usar recursos de salários para atrair novos professores, o resultado pode ser positivo; mas aumentar, simplesmente, os salários de professores antigos pode ser bom para eles, mas não tem impacto sobre a qualidade do ensino.

Um outro trabalho que testa, de alguma maneira, as idéias de Hanushek, foi o de Creso Franco e seu grupo da PUC do Rio de Janeiro sobre a reforma do ensino de matemática, avaliado através dos resultados do SAEB. O que ele encontra é que os professores que adotam uma nova metodologia de ensino, baseada no que ele denomina “higher-order thinking processes”, produzem melhores resultados do que os que usam métodos de ensino tradicional; mas que isto beneficia, sobretudo, os estudandes de nível socioeconomico mais alto, que são os que têm mais condições de fazer uso da educação de melhor qualidade. Ou seja, a melhoria do ensino tem dois efeitos simultâneos, ela melhora o desempenho geral dos alunos, e aumenta a desigualdade.

Bolsa Escola

Meu trabalho sobre bolsa escola, assim como o de Naércio, foi comentado por Alberto Rodriguez, da área de educação do Banco Mundial. Minha tese, baseada em dados da PNAD 2003, foi que os recursos do Fundo Escola têm um impacto mínimo sobre a educação, porque, primeiro, está focalizado nos grupos de idade que já estão na escola, e não no principal grupo de risco, que são os adolescentes; e depois, porque não basta botar a criança de famílias pobres na escola à força, se ela não vai aprender praticamente nada, dada a alta relação que existe entre desempenho e nível socioeconomico das famílias. Na conclusão, eu digo que teria sido melhor se estes recursos fossem dados às escolas, e orientados a programas bem definidos de retenção de jovens e adolescentes. Eu também digo, no paper, que o Banco Mundial vem promovendo este tipo de programa como se fosse uma grande inovação, mas que acaba deixando de lado o problema principal, que é o da melhoria das escolas. No seu comentário, Alberto Rodriguez disse que o Banco vem procurando atuar na educação em todos os níveis, e não só com este tipo de programa, mas reconheceu que, no Brasil, estes recursos são retirados do orçamento da educação; e também estranhou minha afirmação de que, ao contrário do que vem sendo proclamado, inclusive pelo Banco, não existem evidências sólidas de pesquisa a favor deste tipo de programa, pelo menos no Brasil. Em outra outra sessão, André Portela de Souda, do Departamento de Economia da USP, apresentou uma avaliação dos dados dos programas de bolsa escola baseada no Censo de 2000, e os resultados que encontrou não são muito diferentes dos meus. Ele estima, depois de análise econométrica cuidadosa, que o efeito acumulado da bolsa escola sobre a educação de crianças pobres é um aumento de 0,24-0,26 anos de escolaridade ao longo de toda a vida escolar, e que este impacto é maior nas crianças de menor idade. Cuidadoso, André não diz se isto é bom ou ruim, mas basta comparar os recursos e as ambições associadas a este tipo de programa com este resultado para vermos que isto é quase nada, principalmente se consideramos que estes são os alunos mais suscetíveis a passar pela escola sem aprender.

Raça

O grupo de Creso Franco também apresentou um trabalho sobre a questão da desigualdade racial na educação básica. O que eles observam é que, com a universalização do acesso, as diferenças de escolarização entre negros e brancos vêm diminuindo. No entanto, as diferenças de desempenho dentro da escola vem aumentando. Em outras palavras, a desigualdade não desaparece, mas vem sendo substituida por outra. A conclusão é que, para reduzir as diferenças, não basta prestar atenção no acesso, é preciso entender também o que ocorre dentro das escolas. Este resultado é consistente com toda a experiência norteamericana, e abre toda uma discussão sobre as razões da dificuldade de determinados grupos em aprender, comparados com outros. Pode ser que seja um problema de descriminação, mas isto não é óbvio, e existem muitas outras possibilidades a ser examinadas. Este tema é tratado, também a partir dos dados do SAEB, no texto de Francisco Soares, da UFMG, cuja riqueza de idéias eu não pretendo reproduzir aqui.

Economistas, estatísticos e educadores

Todos os trabalhos comentados até aqui são de economistas ou estatísticos (e físicos, como Creso Franco). A exceção foi o trabalho de Márcio Costa, da UFRJ, sobre uma experiência de reforma educacional em uma pequena região do interior da Bahia, com recursos externos. Uma das coisas que Márcio identifica é a dificuldade em alterar a cultura local das escolas, sem a qual os esforços de reforma, inclusive com a injeção de recursos adicionais, produz poucos resultados. Este predomínio de pessoas com formação quantitativa ocorreu no evento como um todo, e talvez possa ser explicado por alguma tendenciosidade na seleção dos trabalhos pelos organizadores do evento. Sem gente que entenda de educação, os trabalhos de estatísticos e economistas muitas vezes terminam em resultados triviais, depois de grandes análises econométricas. Sem educadores e sociólogos da educação, uma série de temas, como os relacionados à cultura, à pedagigia, às instituições e aos valores acabam ficando de lado. Mas vários dos trabalhos apresentados mostram que, quando o conhecimento das questões educacionais mais complexas é combinado com o domínio das informações e de técnicas modernas de análise, o conhecimento de fato avança.

Bolsa Escola e Bolsa Família

Nesta semana começa uma reunião, em Praga, sobre pesquisa educacional e seu uso para a implementação de políticas públicas.

O tabalho que estou apresentando versa sobre Bolsa Familia, a partir de uma analise dos dados da PNAD de 2003 (o texto está  disponível  aqui) . A PNAD pergunta se as familias das crianças recebem bolsa escola, ou estão inscritas para receber. A pesquisa foi feita antes de que a Bolsa Escola fosse incorporada ao programa de Bolsa Familia.

O principal resultado da análise é, me parece, que o programa tem muito pouco impacto na educação, porque a grande maioria das crianças cujas famílias recebem as bolsas vão para a escola com ou sem bolsa, se houver escola acessível. Os problemas de ausência a escola têm muito menos a ver com a renda familiar do que com a idade dos jovens (os adolescentes começám a abandonar a escola aos 14 anos de idade, principalmente os meninos), e também com o nível socioeconomico dos pais – o abandono é muito maior nas famílias mais pobres. Mas o problema com o nível socioeconomico não é tanto que as crianças precisam trabalhar para ajudar a família, e sim que os filhos de famílias com baixa educação têm dificuldade de estudar, e as escolas, em geral, não estão preparadas para lidar com crianças “difíceis”. Tradicionalmente, as escolas brasileiras “resolviam” este problema reprovando os alunos que não aprendiam, colocando-os em classes especiais, ou fazendo com que eles abandonassem a escola. Em alguns casos, as bolsas podem até ajudar forçar a presença destas criançás nas escolas, mas, sem uma política espcífica para capacitar as escolas a atender esta população em dificuldade, dificilmente haverá resultados do ponto de vista de sua educação.

Ou seja, entre comparacer à escola e aprender vai uma grande distância. A bolsa escola pode, na margem, aumentar um pouco o comparecimento (que já é muito alto de qualquer forma), mas não contribui em nada para melhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem.

O segundo uso da bolsa escola é como política de renda. Os dados mostram que cerca de 5% dos recipientes não deveriam estar recebendo o apoio, o que não chega a ser um desastre, dada a precariedade dos cadastros e a dificuldade de acompanhar a distribuição de recursos, e dado ainda o fato de que em muitos casos as bolsas eram dadas e administradas de forma descentralizada e autônoma por governos estaduais e municipais. De qualquer forma, estudos sobre o impacto destas políticas sobre distribuição da renda mostram que ele é muito pequeno, quase inexistente.

Este programa tem sido defendido como uma espécie de política social de “nova geração”, que vai diretamente às pessoas, sem passar pelas burocracias estaduais e municipais; combina benefícios com condicionalildades (ou seja, é preciso fazer algo para receber o dinheiro); e são avaliadas permanentemente. Eu tenho minhas dúvidas. Por mais complicado que seja lidar com as redes escolares e fazer com que os professores aprendam a lidar com crianças de famílias carentes, não é possível desenvolver uma política educacional sem elas, e com o governo federal chamando a si responsabilidades que deveriam ser locais, como a do controle de frequência dos alunos. Se as escolas não melhoram, e não trabalham com as comunidades para que as crianças e adolescentes não desistam da educação, não há de ser o governo federal que vai resolver isto. Os recursos federais podem ser muito importantes para ajudar as escolas a melhorar, mas somente se foram canalizados através delas, e não por fora.

Quanto às avaliações positivas que estes programas teriam, ainda estou por ver uma que me convença.

A crise da saude no Rio de Janeiro

Sem ser um especialista no assunto, tenho tratado de acompanhar e entender a crise da saúde no Rio. Eis algumas idéias, como hipóteses a serem pesquisadas.

O que mais aparece é o aspecto político. O governo federal diz que o prefeito abandonou a saúde, e o prefeito diz que o governo federal não deu o dinheiro que prometeu. O governo estadual, que teria muito que ver com isto, nao diz nada, nem aparece. Neste nível, o grande vitorioso é o governo federal, através do Ministério da Saúde, e o grande perdedor é o Prefeito. De um um lado, aparece um Ministério preocupado com os problemas da população, mobilizando médicos, convocando o Exército para abrir hospitais de campanha, trazendo medicamentos de avião, descobrindo materiais e equipamentos abandonados. De outro, um prefeito aparentemente insensível, com um Secretário de Saúde com suas camisas e gravatas impecáveis, sem explicar direito à população o que está ocorrendo, dizendo que o governo federal agiu bem em chamar o problema para si, e levantando firulas legais e administrativas que podem ser até justas, mas que a população não entende. É dificil pensar em um exemplo melhor de tiro no pé, justamente quando o Prefeito ensaia seus primeiros passos para ir além da política municipal, aparecendo na TV para falar de sua competência administrativa e dos jogos panamericanos. Alguém acredita?

Existem dois problemas de fundo que ninguém está discutindo, um gerencial, outro financeiro. Será que o modelo de organização da saúde pública brasileira, o Sistema Unificado de Saúde, o SUS, é realmente o mais adequado? A idéia consiste em fazer com que a saúde seja gerida localmente, com a participação da população, e fazendo uso dos recursos municipais, estaduais e federais. Este sistema costuma ser elogiado como o melhor do mundo, mas existem suspeitas de que ele não passe de uma jaboticaba. Pelo menos no caso do Rio, a brigalhada mostra que ele não funcionou. Talvez o problema seja que é muito dificil, se não impossível, gerenciar um sistema de saúde complexo quando o gestor não tem controle sobre o conjunto, não sabe que recursos que vai receber, e tem que passar todo o tempo costurando consensos. Em um artigo recente, Bresser Pereira diz que o problema é que os hospitais no Rio são repartições públicas, quando o melhor seria se eles estivessem estruturados como organizações sociais de direito privado, como ocorre em São Paulo, onde este tipo de problema não ocorre. Pode ser. Não creio, em todo caso, que isto tenha a ver diretamente com o sistema do SUS, que seria compatível com ambos os formatos. No caso do Rio de Janeiro, seria interessante saber como será a organização, a gerência e o financiamento da saúde pública da cidade, depois de passado este momento de mobilização, em que os recursos parecem ser infinitos.

Por detrás dos problemas organizacionais está a questão dos custos. A legislação brasileira, que o SUS deve implementar, parte do princípio de que todos têm direito ao atendimento médico gratuito, a ser pago com recursos públicos. Ocorre que esta conta não fecha, e tende a ficar cada vez mais desequilibrada. Na medida em que a medicina avança e a população vive mais, os custos do atendimento à saúde aumentam. O resultado é que a pressão sobre os serviços públicos aumenta cada vez mais, estourando em crises como a do Rio de Janeiro, e afastando os que conseguem pagar, que buscam a medicina privada.

Não se trata, simplesmente, de uma oposição entre medicina privada e medicina pública, nem entre medicina preventiva e medicina curativa. Hospitais públicos também precisam de equipamentos caros, manutenção dispendiosa, pesssoal médico e administrativo com salarios decentes, e o direito de prescrever tratamentos e medicamentos caros. Não existem soluções fáceis para isto, mas algumas coisas podem ser feitas. Uma delas seria inverter o princípio atual de que todo o atendimento médico é gratuito, e estabelecer que todo o atendimento deve ser pago, com alguma participação, ainda que pequena, dos pacientes, abrindo exceção para quem não pode pagar. Isto traria mais recursos, e, sobretudo, inibiria o uso abusivo dos serviços públicos, fazendo com que os pacientes sejam co-responsáveis. Um outro caminho é limitar o atendimento público a pessoas de determinado nível de renda, ou para problemas e doenças que o setor privado não consegue atender, inclusive enfermidades catastróficas do ponto de vista econômico.

Enfim, há muitíssimo a fazer: mudar o sistema de gerenciamento dos hospitais e outros serviços de saúde, racionalizar o uso dos recursos, direcioná-los a quem mais os necessite, e avaliar o que de fato tem ocorrido com o modelo SUS, que parece que funciona bem em algumas partes, mas não em outras. Seria ótimo se, no lugar as trocas de acusações entre as autoridades, pudéssemos ter uma discussão mais aprofundada destas questões, com os dados correspondentes.

Universidades e Restaurantes

No debate sobre a Reforma do Ensino Superior realizado pelo O Globo em 10 de março, eu talvez não devesse ter comparado a Universidade a um restaurante, e ter dito que, se eu quiser abrir um restaurante em uma rua que já tem cinco, o Ministro da Educação não tem nada a ver com isto, a não ser que eu venda comida estragada (veja a matéria do jornal sobre o debate aqui). O Ministro Tarso Genro rebateu dizendo que para mim a educação não passava de uma mercadoria, enquanto que para ele era um bem público, de responsabilidade do Estado. Que havia uma questão de princípio, sobre quem deveria comandar, o mercado ou o Estado, e que ele era a favor do Estado. Que eu defendia a liberdade para o setor privado, mas era contra a autonomia das universidades públicas. Houve quem me aplaudisse, mas eu fui bastante vaiado, e disseram que eu me saí mal. Deve ter sido verdade.

Não é fácil participar de um debate público com um político experimentado como o Ministro da Educação, e expor com clareza as idéias. Ainda bem que a gente sempre pode tentar explicar melhor depois…

Eu já tentei esclarecer, em um blog anterior (vejam mais abaixo), a questão da educação privada como direito, que é como está na Constituição, ou como “função delegada”, como entende o Ministro da Educação. É inegável que a proposa de reforma do Ministério expressa um forte preconceito contra o mercado em geral, e contra o ensino superior privado em particular. O Ministro reconhece, quando fala, que existem bons e maus cursos superiores no setor privado, não só filantrópicos, mas inclusive empresariais. No entanto, ao invés de ver na liberdade de iniciativa do setor privado uma virtude, trazendo novas energias, investimentos, pluralismo e criatividade à educação, ele – e o projeto da reforma como um todo – trata o setor privado como um mal necessário, a ser no máximo tolerado, mas controlado com rédeas curtas. Esta demonização do mercado já não existe muito na economia, depois do muro de Berlim, mas, na educação, parece continuar presente com muita força.

Defender a importância do setor privado não significa ser contra a regulação. A questão é o quê e como se vai regular, e até onde deve ir o poder de intervenção. É importante manter a população informada sobre a qualidade dos cursos, garantir a transparência nas contas das instituições filantrópicas, e evitar situações de monopólio ou oligopólio. Além disto, o setor público pode estimular ou desestimular o crescimento de determinadas atividades através de incentivos fiscais, como já está fazendo através do Prouni, e financiamentos a programas. Além da ideologia estatista, uma das explicações para a obsessão com o controle da educação superior privada é a confusão que ainda existe entre formação e certificação para as profissões. A Lei de Diretrizes e Bases separou estas duas coisas, mas elas continuam confundidas, e é por esta porta que entra a idéia exdrúxula da “demanda social” como critério para autorizar ou não a criação de novos cursos. O que está por trás disto é a tentativa de controlar a expansão dos mercados de trabalho para as diferentes profissões, que não deveria ser preocupação do Ministério da Educação, e sim das respectivas corporações profissionais, através de exames de ordem, como já fazem os advogados, e outros sistemas de certificação.

Mas, se meu restaurante fechar, o capitalista perde seu dinheiro, e os fregueses buscam outro lugar para comer; se a Faculdade particular fechar, os alunos ficam sem escola. Não é diferente? Mais ou menos. Existem sempre riscos, da mesma maneira que há riscos em entrar em uma universidade pública e encontrar professores desmotivados ou em greves intermináveis. A melhor maneira de lidar com isto é estimular a competição pela qualidade e a responsabilidade pública das instituições, e isto se faz mediante sistemas adequados de incentivos à qualidade, transparência e acesso à informação, coisas que estão dentro da responsabilidade do setor público, e devem ser também de interesse do setor privado, que precisa criar suas prórpias instituições de controle de qualidade. O pior caminho é o do cartório das autorizações, que estimula a corrupção, ou a regulação minuciosa e detalhista da atividade das instituições, que só atrapalha, e que o setor público nunca teve condiçoes de gerenciar.

As universidades públicas devem de fato ter menos liberdade do que as privadas, porque elas vivem de dinheiro público, e não de investimentos privados, que assumem o próprio risco. Isto não significa que eu seja contra a autonomia universitária no setor público, e aí penso que minha discordância com a proposta do governo é menor do que parece, pelo menos em princípio. O governo tambem diz que as universidades deverão ter planos de desenvolvimento, e receber recursos em função de seu desempenho, e que autonomia não é o mesmo que soberania. A minha dúvida é se as atuais propostas estimulam de fato a responsabilidade e o compromisso com resultados ou, ao contrário, consolidam as situações de acomodação, má qualidade e mau uso de recursos que existem em muitas de nossas universidades públicas. O governo está prometendo aumentar os recursos para as universidades federais, mas não está dizendo que vai condicionar estes recursos a resultados. Isto seria para depois, quando a quase totalidade do dinheiro já tiver sido dada (se é que a área econômica vai concordar com esta generosidade), com a garantia de que o orçamento de cada ano nunca será inferior ao do ano passado, nem jamais contingenciado. Deste jeito, para quê PDI?

Uma universidade pública realmente autônoma, para não se transformar em uma república irresponsável, precisa de um sistema forte e adequado de incentvos associados ao desempenho (o que supõe uma avaliação externa permanente, e orçamentos baseados em demonstrações claras de custos); estruturas gerenciais modernas, com sistemas de controle de custos e definição de prioridades; lideranças escolhidas por sua capacidade executiva; e autoridade para mexer na parte mais rígida do orçamento, que é o pessoal, hoje parte do serviço público,e praticamente “imexível”. A questão não é, portanto, a eleição direta do reitor ou não, embora a experiência internacional mostre que este tipo de eleição tende a politizar e partidarizar as universidades, fazendo com que os interesses das corporações internas predominem sobre o interesse público.

Ação afirmativa e cotas

Pouco se falou no debate do jornal O Globo de 10 de março sobre o tema das cotas. Eu comentei que era, em princípio, a favor de políticas de ação afirmativa, mas não via no projeto nada além das cotas de entrada, sem nenhuma proposta de atender às necessidades específicas dos novos alunos, que normalmente não passariam nos exames vestibulares.

A discussão sobre este tema tem sido muito carregada de emoções, e muito pobre de análises. Recentemente, tem havido uma tendência a dizer que não existe diferença de mérito entre pessoas que entram por cota ou não, e o próprio Ministro da Educação tem dito que como, por exemplo, os negros do Rio Grande do Sul precisam disputar vagas com outros negros da região, dentro da pequena cota que lhes cabe em função da distribuição racial da população no Estado, então a competição entre eles pode se tornar mais dificil do que entre os brancos, requerendo médias mais altas para passar. Se fosse assim, é claro que o sistema de cotas, pensado justamente para ajudar os que não conseguem competir com os demais, não precisaria existir.

Embora eu concorde em princípio com a idéia da ação afirmativa, tenho várias discordâncias em relação à política que está sendo proposta.

Primeiro, como já disse, a simples criação de cotas, sem mecanismos adequados de apoio financeiro e programas pedagógicos apropriados, pode levar a altas taxas de deserção ou redução das exigências dos cursos, alimentando uma falsa ilusão para os cotistas, e levando a uma degradação geral dos cursos superiores.

Segundo, o melhor critério para a ação afirmativa seria o nível socioeconomico da família do estudante, e o pior, o critério racial, que força uma classificação e polarização da sociedade em termos raciais que não existe desta forma, e da qual não precisamos (antes que me acusem de racista: isto não significa dizer que não existe forte correlação entre cor da pele e recursos, ou oportunidades educacionais; significa simplesmente que, atuando sobre a questão socioeconomica, estaremos também atuando sobre as diferenças de cor, sem que o Estado tenha que voltar a classificar as pessoas em termos raciais (escrevi um texto sobre isto em 2001, O campeonato da desigualdade e a identidade racial , que pode ser lido na Internet).

Terceiro, políticas de ação afirmativa não podem comprometer a função principal das universidades, sobretudo públicas, que deveria ser a formação de alto nível e a pesquisa. Quando o governo força as universidades públicas a admitir alunos em grande quantidade por critérios não acadêmicos, ao mesmo tempo em que as pressiona para aumentar o número de vagas, o risco de que elas se transformem em grandes escolões de baixa qualidade é real. Seria possível argumentar que a função principal da universidade pública deveria ser dar oportunidades a pessoas de baixa renda e provenientes de escolas de má qualidade (coisas que, no Brasil, são fortemente associadas), deixando para o setor privado a formação profissional de alto nível. Não creio que seja esta a intenção do governo, embora possa ser a consequência.

Políticas corretas de ação afirmativa deveriam começar por flexibilizar o sistema de admissão nas universidades, indo além do formalismo dos vestibulares que, como sabemos, têm uma relação imperfeita com desempenho posterior (e muita relação com a condição socioeconomica das famílias); estar associadas ao desenvolvimento especifico de programas apropriados para alunos com déficits importantes de formação (desde cursos de reforço até programas de curta duração e orientados de forma mais direta para o mercado de trabalho), e apoio financeiro; e serem desenvolvidas dentro das instituições, como políticas próprias, e não impostas desde o exterior.

Existe uma questão de fundo, que é saber até onde vai a responsabilidade do Estado em prover educação superior para todos, como parece estar implícito no “Programa Universidade para Todos”. Isto é uma jaboticaba que não existe em nenhuma parte do mundo. Nos países aonde o ensino superior está massificado predominam diferentes tipos de ensino superior, e não só o universitário; e os estudantes têm que pagar ou pelo menos compartir o custo de seus estudos, porque eles são os principais beneficiários da educação que recebem, tenha ela ou não um valor social. Parece mais razoavel dizer que o setor público tem a responsabilidade de garantir a igualdade de oportunidades, o que se faz, primeiro, com uma educação básica universal e de qualidade, e, segundo, com um sistema adequado de crédito educativo para garantir que as pessoas não fiquem excluidas por falta de dinheiro. A partir daí, podem haver políticas específicas para determinadas áreas ou grupos sociais, mas isto não pode prevalecer sobre o que é fundamental.

O que disseram os outros: cientistas, estrangeiros, o modelo econômico e o ensino superior brasileiro

No debate de O Globo de 10 de março, chamou muito atenção a advertência feita pelo reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira, ao Ministério da Educação, de que o governo não deveria deixar que os cientistas assumissem o controle das comissões de avaliação dos planos de desenvolvimento das universidades, como está sendo proposto pela Academia de Ciências e pela SBPC. Cientistas, disse ele, são bons para fazer ciência, mas não para definir as políticas de ensino superior (os termos podem não ter sido estes, mas este foi o sentido).

Me parece que, em parte, ele tem razão; os cientistas têm muita dificuldade em entender e aceitar que, nos modernos sistemas de educação superior de massas, a pesquisa ocupa um nicho importante, mas existem outras coisas, como a formação profissional, a formação geral, e a formação tecnológica, no qual eles têm pouco a contribuir diretamente; e que existem muitas instituições – na verdade a grande maioria – dedicadas exclusivamente ao ensino em suas diversas formas. A imposição de critérios científicos como única métrica para a avaliar instituições e programas de ensino leva a distorções graves, como por exemplo a dificuldade que o Brasil tem tido de criação de mestrados profissionais, e as altas taxas de reprovação de muitos cursos das universidades públicas e privadas.

O que não fica claro é quem o reitor acha que deveria exercer o poder sobre as universidades e os sistemas de avaliação, no lugar dos cientistas. Dada a história conhecida da UFRJ, parece claro que ele tenderia a preferir a “comunidade universitária”, representada pelos sindicatos de docentes, funcionários e associações de estudantes, uma perspectiva coerente com a demanda pela gerência colegiada das instituições e eleição direta dos reitores, que o projeto do Ministério da Educação acolhe. Existe hoje uma ampla literatura sobre a “profissão acadêmica” e seu papel na regulação e controle dos sistemas educacionais – que, justamente com o Estado e o Mercado, compõem o famoso “Triângulo de Clark”. Mas esta “profissão acadêmica” é algo muito complexo, e inclui desde os cientistas e pesquisadores até professores ocasionais e pessoas sem maior formação. A experiência internacional mostra que os sistemas de ensino superior mais bem sucedidos são aqueles que procuram combinar as virtudes dos três vetores deste triângulo – a vitalidade do setor privado, a regulação do governo, e os valores, conhecimento e envolvimento institucional da comunidade acadêmica, da qual os cientistas são parte integrante e fundamental, embora não única. Qualquer tentativa de concentrar o poder em um destes vértices, às expensas dos outros, gera problemas.

Das muitas coisas ditas por Gustavo Petta, presidente da UNE, destaco duas. Primeiro, sua ardorosa defesa da cláusula do projeto do governo que impede o controle de estrangeiros em instituições de ensino lucrativas. Ele vê nestas empresas uma ameaça à nossa cultura, e uma porta aberta para a liberalização do comércio de serviços educacionais que está sendo proposta por alguns países à Organização Internacional do Comércio, e que poderia destruir nossas instituições educacionais. Eu penso que o segundo perigo é remoto, porque o ponto principal destas propostas, pelo que eu entendo, seria dar às instituições estrangeiras as mesmas regras de funcionamento que são dadas às instituições nacionais. Quanto ao primeiro perigo, tudo depende de que cultura queremos – uma cultura fechada e provinciana, tipo “porque me ufano de meu Brasil”, ou uma cultura aberta às idéias, influências e conhecimentos que vêm de todas as partes. De qualquer maneira, não há de ser esta cláusula que vai impedir que pessoas brasileiras continuem indo estudar no exterior, que cursos por Internet se desenvolvam sem respeitar barreiras geográficas e regulações ministeriais, e que nossas melhores instituições de ensino e pesquisa procurem emular as melhores do mundo. Se tivermos um ensino superior público e privado de boa qualidade, empresas educacionais estrangeiras só podem ser benvindas, e não ameaçarão ninguém. Se não tivermos, aí mesmo é que elas se tornam indispensáveis.

A segunda coisa dita pelo Presidente da UNE, com a qual eu concordo, é que a atual proposta de reforma do ensino superior do MEC é incompatível com a política econômica do governo Lula, baseada até aqui no equilíbrio orçamentário, no respeito aos gastos públicos e na abertura do país aos capitais e ao fluxo internacional de conhecimentos e tecnologias.

Da apresentação de Paulo Alcântara Gomes, reitor da Universidade Castelo Branco, me parece importante recuperar a idéia de que o que deveria preocupar não é se uma instituição é pública ou privada, e sim se ela tem ou não tem qualidade. Ninguém discordou, mas não houve tempo para explorar o que isto significaria na prática, em termos de organização do financiamento da educação superior brasileira em todos os seus aspectos.

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