Com o mundo chocado diante do fogo na Amazônia, o nosso presidente decidiu denunciar o colonialismo europeu, quando líderes e entidades europeias resolveram se pronunciar em defesa da preservação da floresta. Não é a primeira nem a última vez que a direita autoritária se apropria dos discursos tradicionais da esquerda. Na Europa mesmo, por exemplo, podemos ver políticos de direita, de uma hora para outra, virando campeões dos direitos feministas e LGBQT, como forma de justificar suas atitudes racistas contra imigrantes muçulmanos. Nos Estados Unidos, vemos a apropriação de uma tradição de esquerda de criticar as instituições científicas, para abafar o debate sobre as mudanças climáticas.
O colonialismo sempre foi um bicho complicado de entender, mas está em tempo de a gente discutir o que ele significa no caso do Brasil, e de países como o Brasil, como muitos sociólogos e historiadores já fizeram. O Brasil não é simplesmente um país colonizado pelos Portugueses (e mais recentemente, pelos Estados Unidos). Vale lembrar que a nossa independência foi feita pela família real Portuguesa (D. Pedro I) para garantir seu controle sobre a antiga colônia. O país foi construído em cima da terra e da vida dos povos indígenas (que continuamos destruindo em nome do “nosso” progresso), e das vidas, corpos e suor de milhares de africanos que trouxemos para cá, e de seus descendentes.
Vale a pena relembrar o século XIX, quando já éramos um país independente, mas ainda escravocrata e colonizador dos povos indígenas. Os interesses internacionais eram complicados. O império britânico, que tinha se beneficiado imensamente da escravidão nos séculos anteriores, resolveu abolir a escravidão e ir atrás do tráfico internacional de escravos. Não eram bonzinhos: a escravidão foi utilizada como pretexto para os britânicos ocuparem vários territórios na África, explicando que iam erradicar a escravidão dentro do continente, que na verdade foi substituída por outras formas de trabalho forçado. Mas a pressão britânica, em última instância, foi essencial para ajudar a abolir o tráfico de escravos e finalmente a própria escravidão em nosso país, que foi a última a terminar nas Américas.
Os interesses nacionais e internacionais na Amazônia no século XIX também nos ajudam a pensar de forma mais complicada sobre o colonialismo. Com o fim da escravidão nos Estados Unidos durante a Guerra Civil Americana, as elites escravocratas do Sul dos Estados Unidos começaram a olhar para a Amazônia como um lugar onde a escravidão poderia continuar (e continuava a todo o vapor, com o apoio das elites brasileiras), como parte do imperialismo americano que estava expandindo naquela época. Muitos fazendeiros do sul dos Estados Unidos se tornaram plantadores de café no Brasil, na região que hoje se chama Americana, justamente para poder continuar a explorar o trabalho escravo. Os europeus também estavam interessados na Amazônia. O governo brasileiro trabalhou para defender o “nosso” território diante dessas ameaças (mas em nenhum momento questionando a escravidão), expandindo a presença de migrantes brasileiros vindos de outras regiões, em uma ocupação que foi desastrosa para os povos indígenas.
Mais recentemente, durante a ditadura militar, nossas alianças com o colonialismo também foram complicadas, quando o Brasil inicialmente se aliou ao colonialismo português na África, e depois com os países do Terceiro Mundo que ficavam independentes. Alianças com os países do Terceiro Mundo foram feitas mais como uma defesa de interesses econômicos do Brasil nessas regiões do que como uma defesa de direitos humanos, que estavam, ao mesmo tempo, sendo brutalmente suprimidos no nosso país. O nosso desenvolvimentismo (que uma parte importante nossa esquerda também apoiou e continua apoiando) foi criado à custa de um crescimento brutal da desigualdade social, da colonização desenfreada da Amazônia e destruição de milhares de vidas de povos indígenas e do meio ambiente. O governo recente do PT também, apesar de sua preocupação com a desigualdade, com a diversidade e com o racismo, não trabalhou o suficiente para repensar o nosso modelo desenvolvimentista e seus impactos no meio ambiente, nas vidas dos povos da Amazônia e na vida dos brasileiros. Os governos Temer e Bolsonaro pioraram bastante a situação quando, em conluio com a bancada ruralista e companhias mineradoras, afrouxaram as leis ambientais e indigenistas para a exploração econômica, levando a um crescimento vertiginoso do desmatamento este ano.
Eu moro no Canadá. Em Janeiro deste ano, logo depois da eleição de Bolsonaro e do desastre de Brumadinho, vi representantes do governo brasileiro, muito preocupados com o colonialismo, virem aqui para Toronto para a maior conferência de mineração e prospecção do mundo, e dizerem para as companhias de mineração estrangeiras que operam no Brasil (inclusive na Amazônia) para não se preocuparem, porque o governo brasileiro estava afrouxando as leis ambientais e de proteção aos povos indígenas para facilitar a exploração. Os interesses internacionais e nacionais na Amazônia não estão em oposição, o que está em oposição são projetos, ideologias e interesses econômicos, que fazem alianças distintas dentro e fora do país.
Temos que sair dessas dicotomias e entender qual tipo de vida nós queremos para os seres humanos que vivem neste planeta, que inclui a população brasileira. A preservação da Amazônia e do meio ambiente têm um impacto direto na vida dos brasileiros. A destruição da Amazônia afeta diretamente o clima do Brasil, nossas fontes de água, nosso clima, e a vida de milhões de pessoas (indígenas ou não) que moram na região. O crescimento econômico desenfreado e desregulado só vai enriquecer alguns poucos de nossos compatriotas. A qualidade de vida da maioria dos brasileiros depende de repensarmos nossas relações uns com os outros, com o mundo, e com a natureza.