Autonomia Universitária, lá e cá

A Associação Columbus é uma instituição que reúne reitores da Europa e da América Latina, e este ano, para sua reunião em Lisboa, convidaram a mim e outras pessoas para fazer apresentações e discutir a questão da autonomia universitária. A maioria dos reitores presentes eram de Portugal, Espanha e Brasil; os apresentadores eram Christine Musselin, do CNRS na França; Michael Shattock, antes da Universidade de Warwick, e hoje no Instituto de Educação em Londres; e José Gines Mora, do Centro de Estudos em Gestão da Educação Superior da Universidade Politécnica de Valencia.

Ninguém se centrou no tema da “privatização”, mas todos partiram do suposto de que o setor público já não tem como ser mais o único provedor de recursos para as universidades, e quando este recurso existe, ele já não é mais transferido de forma automática e desvinculada de resultados que precisam ser explicitados e avaliados.

Na minha apresentação, lembrei a história do Movimento da Reforma Universitária de Córdoba de 1918, que se espalhou por toda a América Latina a partir daí, difundindo uma noção peculiar de autonomia acadêmica, baseada no poder dos estudantes, no governo tripartite, nos processos de decisão tomados em assembléia, no princípio da extra-territorialidade, e na livre admissão de estudantes. Argumentei, essencialmente, que este modelo pode ter tido sua importância histórica, criando um espaço para a livre manifestação de idéias e formação de lideranças políticas na região, mas não produziu uma boa universidade, e a autonomia que se busca hoje não pode ser a mesma de 100 anos atrás. Christine Musselin falou da experiência francesa de contratos de quatro anos entre governos e universidades, e mostrou como é possível estabelecer um novo tipo de pacto entre governos e universidades pelo qual o governo não renuncia a sua responsabilidade de definir prioridades, e as universidades também ganham no processo. A autonomia universitária, argumenta ela, não precisa ser vista como um jogo de soma zero, em que, ou ganha um lado, ou ganha o outro, mas ambos podem ganhar. Ginés Mora também falou sobre o novo tipo de pacto entre o setor público e as universidades, em que as instituições devem dar conta do uso dos recursos que usam, e, em troca, têm muito mais autonomia para gerir seus recursos, sejam de origem pública, sejam de origem privada. Michael Shattock, finalmente, fez uma discussão aprofundada dos processos de gerenciamento das novas universidades, argumentando que elas precisam de lideranças fortes e uma visão de longo prazo a ser atingida, e não de um plano detalhado de funcionamento, como se fossem empresas.

O que me chamou mais a atenção foi a resistência que muitos reitores, sobretudo da América Latina e da Península Ibérica, mostraram a estas idéias. Um reitor da Venezuela disse que, para ele, a autonomia que ele precisa é ainda a de Córdoba, para defender sua instituição da manipulação política dos aliados de Chávez. O reitor da Universidade de Lisboa disse que, por detrás das questões de autonomia, avaliação, e participação do setor privado, havia uma conspiração para domesticar a inteligência e o pensamento critico das universidades. Uma reitora brasileira disse que contratar dirigentes universitários de fora da instituição, através de comitês de busca, como ocorre nos Estados Unidos e outros países, poderia funcionar lá fora, mas nunca no Brasil, aonde a cultura era diferente.

Fiquei com a impressão de que o abismo entre a universidades hispano-americanas e as do resto do mundo – não só dos Estados Unidos e Europa Ocidental, mas também da Ásia e da Europa Oriental – está crescendo cada vez mais. Nestes dias, o Times Higher Education Supplement publicou sua nova lista das 200 melhores universidades do mundo. Lá na lanterninha aparecem duas universidades latinoamericanas, a Universidade Nacional do México e a USP. E só.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

2 thoughts on “Autonomia Universitária, lá e cá”

  1. Carlos Pio,

    Não tenho nada a acrescentar, vejo as coisas da mesma maneira. Além das resistências internas a mudanças e das limitações orçamentárias, as universidades públicas estarão, cada vez mais, sob pressão para admitir mais alunos e reduzir ou eliminar os processos seletivos de estudantes. Isto vai levar, quase certamente, a um quadro semelhante ao que já ocorreu com a educação média: a rápida deterioração das escolas públicas de qualidade, e o surgimento de um segmento privado de elite. O problema é que dificilmente o setor privado irá cobrir as áreas de pesquisa e formação de alto nível da ciência e tecnologia, e com isto este segmento do ensino público, que é sua melhor parte, poderá vir a desaparecer, ou perder importância. É um cenário pessimista, mas não vejo as coisas evoluirem em outro sentido.

  2. Prezado Simon,

    Imagino que seu espanto não seja realmente dos maiores, na medida em que vc convive com essa mentalidade atrasada há muitos anos. Aqui na UnB, por exemplo, temos greves a cada 2 anos e em todas elas surgem propostas absolutamente irrealistas sobre o que significa e como obter mais autonomia. Ninguém — à exceção deste que lhe escreve e de mais uns 3 gatos pingados — jamais discute a sério a questão do financiamento compartilhado com os beneficiários mais diretos (alunos), que é fundamental para aumentar o orçamento e desengessar sua execução.
    Segue, abaixo, um artigo que publiquei no Correio Braziliense sobre uma agenda de reformas necessárias para modernizar a gestão universitária e ficaria muito feliz em receber seus comentários.
    Um abraço,

    Carlos Pio
    _________________
    UnB em greve: quem se importa? (Correio Braziliense, 29/9/2005)

    A Universidade de Brasília (UnB) está em greve há uma semana. Pela ordem, funcionários, professores e alunos decidiram parar as atividades até que suas reivindicações sejam atendidas. Trata-se, não há como negar, de uma greve orientada estritamente para a questão salarial. Os líderes dos estudantes profissionais aderiram à paralisação de mestres e bedéis por puro oportunismo político. Para “mobilizar a categoria”. Na melhor das hipóteses, essas greves acabarão quando parte pequena das reivindicações de professores e funcionários for atendida. Melhorias estruturais da Universidade não ocorrerão. Mas por quê?

    Os maiores prejudicados pelas greves nas universidades públicas, como em qualquer greve de servidores do Estado, são seus clientes – estudantes, que verão o calendário atrasar mais uma vez – e patrões, no caso, os contribuintes. Se a greve terminar sem aumento de gastos pelo governo, os contribuintes terão perdido porque os salários dos grevistas terão sido pagos normalmente e a reposição das faltas não será efetivamente cobrada. Se ocorrer aumento de gastos, perderão porque maior parcela do orçamento público será empregada em atividades que raramente se traduzem em melhores condições gerais de bem-estar. Afinal, cada real gasto com salários de funcionários públicos representa um real a menos gasto com políticas sociais, infra-estrutura, segurança, etc. Como poucos são os contribuintes que efetivamente aproveitam do ensino oferecido nas universidades do governo, e é basicamente isso que elas fazem, o contribuinte (principalmente o que é excluído da universidade) também é um perdedor.

    Mas o pior é que esta não será a última greve da UnB. E essa greve, como todas as demais, não ajuda a esclarecer à comunidade universitária, à classe política e à sociedade quais os reais entraves à expansão do número de vagas em sintonia com o aumento da qualidade. Tal combinação requer efetivamente, mas não apenas, o pagamento de melhores salários a professores e funcionários. Mas há entraves ainda mais graves que devem ser compreendidos à luz da experiência internacional, que é clara a esse respeito.

    Os mais eficientes sistemas universitários do mundo combinam, de maneira crescente, o financiamento público com o privado. Como a educação superior é essencialmente elitista, é injusto cobrar impostos de toda a sociedade, especialmente dos mais pobres, para oferecer um serviço a uma pequena parcela, na qual os mais ricos são sobre-representados. Além disso, a educação superior é um bem privado, apropriável diretamente por quem a recebe. Isso significa que, mesmo que venha a prestar relevantes serviços à sociedade, quem faz um curso superior se beneficia de informações e treinamento que lhe permitem progredir na vida, ganhar mais dinheiro. É justamente por isso que os custos de ofertar educação superior devem ser repartidos com, quando não inteiramente pagos por, quem vai se beneficiar mais diretamente dela, ou seja, o estudante.

    Cobrar matrículas e mensalidades nas universidades do estado não significa privatizá-las. Não se trata de vender os prédios, terrenos e a marca da Universidade. Trata-se de repartir os custos de manutenção e de investimento com aqueles que serão mais diretamente beneficiados. Esse é um critério justo e legítimo em qualquer país capitalista e realmente democrático. Além do mais, esse critério é plenamente compatível com a manutenção, e mesmo necessário ao aprofundamento, do compromisso com o desenvolvimento científico, técnico e tecnológico, sob as necessárias condições éticas.

    Além de cobrar matrículas e mensalidades para cursos de graduação e especialização e para atividades de extensão (podendo preservar mestrados e doutorados não-pagos para estimular a pesquisa), é preciso encontrar formas de elevar receitas oriundas de fontes privadas. Isso pode ser feito por meio do estabelecimento de acordos de cooperação, convênios e oferta de serviços que interessem a empresas/organismos (privados e públicos, nacionais e estrangeiros) e indivíduos (locais, nacionais e estrangeiros). Realização de pesquisas em conjunto com empresas, treinamento e capacitação de pessoal sob encomenda, arrendamento de instalações (bibliotecas, salas de aula, áreas esportivas, alojamentos), realização de cursos e atividades de interesse da comunidade são algumas estratégias possíveis para financiar as atividades meio e fins das universidades do governo.

    Ademais, é preciso quebrar de vez as estruturas corporativas de professores e funcionários que impedem a prevalência do mérito sobre a força política nos processos de seleção, ascensão, remuneração, divisão do trabalho e demissão. Os estudantes são potencialmente aliados nessa tarefa de melhorar a qualidade acadêmica e gerencial, mas infelizmente suas lideranças políticas invariavelmente padecem do mesmo viés ideológico socializante, coletivista e estatista dos mestres e bedéis, que impede o progresso institucional.

    Assim, as greves atuais, anteriores e futuras se explicam por essa dissonância entre a realidade e as lentes corporativas dos funcionários e professores das universidades estatais. Como, no Brasil de hoje, não há mais legitimidade para se aumentar desproporcionalmente os orçamentos das universidades, dependemos de uma revolução nas mentalidades que siga o padrão internacional. Sem esforços consideráveis dessas próprias instituições para aumentar receitas e racionalizar gastos, greves continuarão a ser recorrentes e inócuas.

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