Universidade, meritocracia e saberes universais

Eduardo Luedy, comentando neste blog o manifesto sobre os “direitos iguais na República Democrática” (veja baixo), diz que, se a universidade é uma instituição meritocrática, e os currículos são baseados em saberes universais, então as cotas não se justificariam. Mas ele desconfia tanto de uma coisa quanto de outra, e acredita que, no fundo (ou nem tão no fundo assim), tanto a meritocracia quanto a noção de saberes universais são pretextos para manter a desigualdade e a discriminação.

São questões importantes, que não permitem respostas apressadas. Sabemos que a relação entre resultados nos exames vestibulares e resultados nos cursos superiores é imperfeita, como é imperfeita a relação entre o desempenho nos cursos e na vida profissional. Nada indica, por exemplo, que os 10% mais qualificados mas que não passaram em um vestibular de medicina seriam piores médicos do que os 10% menos qualificados que passaram. Se a seleção fosse feita por sorteio, neste grande grupo intermediário, os resultados seriam provavelmente os mesmos. Uma vez obtidos, os diplomas funcionam como pontos nos concursos e promoções, licença para o exercício de determinadas profissões, e engordam os currículos no mercado de trabalho, além de trazer prestígio a seus portadores, mesmo que tenham sido péssimos alunos, ou freqüentado escolas de fim de semana. Se os privilégios não dependem do conhecimento nem do mérito, porque usar o mérito como critério de seleção, que só beneficia os filhos das classes médias e altas?

De fato. Mas acontece que os benefícios obtidos pelos títulos enquanto tais beneficiam seus portadores, mas não a sociedade como um todo, porque não passam de sinecuras. O interesse de um indivíduo pode ser o de obter um título com o mínimo possível de esforço, e aproveitar ao máximo da legislação e dos mitos que garantem os privilégios dos portadores do diploma que recebe. O interesse da sociedade, por outro lado, é o de associar ao máximo o diploma à competência, e eliminar os privilégios associados à simples posse de credenciais. O país precisa de profissionais competentes nas diversas áreas, e isto justifica os investimentos públicos na educação superior e na pesquisa; mas não precisa de um sistema de privilégios e de prestígio baseado na distribuição de credenciais educacionais de um tipo ou outro.

Nem sempre é fácil ver este conflito de interesses, porque a defesa dos privilégios profissionais – por exemplo, quando os advogados querem impedir a criação de novas faculdades de direito, quando os médicos tentam limitar as atribuições de outros profissionais de saúde, quando o sindicato de sociólogos obriga as escola a contratar seus filiados para dar aulas nas escolas em todo o país – é sempre feito em nome da qualidade profissional e do interesse da sociedade. No entanto, os profissionais mais bem formados estão, em geral, muito mais preocupados com a qualidade real do diploma que possuem do que com a defesa dos cartórios profissionais. Esta mesma divisão entre os que valorizam os conteúdos e os que valorizam os títulos existe no interior das universidades. Para algumas instituições e pessoas dentro delas, o que importa é fazer prevalecer os valores da competência e do mérito competência no ensino e na pesquisa, não só porque isto beneficia os mais competentes, mas também porque torna mais legítima sua demanda por financiamentos públicos e reconhecimento de sua autoridade profissional. Para outros, no entanto, o que vale são os direitos adquiridos e as posições conquistadas.

Se este raciocínio é correto, então as políticas públicas que incentivam o mérito no ensino superior estão alinhadas com o interesse da sociedade e contribuem para fazer com que as instituições de ensino valorizem cada vez mais o mérito e o desempenho, tanto de alunos quanto de professores e pesquisadores; e vice-versa. Nesta perspectiva, sistemas de cotas para categorias de alunos, na medida em que dissociem o acesso do mérito, são claramente contrárias ao interesse público.

Mas isto não esgota o problema, porque, como sabemos, o mérito está associado às condições educacionais e econômicas das famílias de origem dos estudantes, e, como foi dito no início, nem sempre os sistemas de seleção das universidades refletem o mérito verdadeiro, medido por outros critérios. Existem várias maneiras de enfrentar estes problemas: investindo na preparação de grupos em situações de desvantagem, melhorando suas condições de competitividade; mudando os critérios de seleção para as universidades, saindo do atual sistema rígido de provas para outros que possam tomar outros fatores em consideração; e ampliando e diversificando mais o sistema, de forma a permitir que, no lugar de algumas poucas hierarquias de prestígio, exista uma pluralidade cada vez maior de alternativas.

O que traz à baila o segundo ponto levantado por Eduardo Luedy, o da existência ou não de saberes universais. Esta foi uma grande discussão nos Estados Unidos, aonde se dizia que as universidades tradicionais mantinham o culto da cultura do White Dead Men, e que era necessário substituí-la pelas culturas dos negros, das mulheres, dos jovens e das pessoas vivas, sem falar nas diferentes tradições culturais da Ásia e da África. Como toda a polarização, ela tinha algo de verdadeira, e muito de bobagem. Aplicada às humanidades, faz bastante sentido buscar, recuperar e fortalecer outras tradições culturais, associadas a diferentes identidades, ainda que com o risco de que, nestas novas tradições, as ideologias prevaleçam sobre os conteúdos literários, artísticos e filosóficos das diferentes correntes. Mas não faz sentido abandonar as tradições intelectuais mais importantes da cultura ocidental, que, de fato, um patrimônio universal e inestimável que, de fato, foi construido predominantemente por homens brancos já falecidos. Aplicada às ciências e à tecnologia, os riscos são maiores: é muito difícil defender hoje a existência de uma física, biologia ou matemática branca ou negra, ariana ou judaica, burguesa ou proletária, latino-americana ou imperialista. A globalização do conhecimento técnico e científico é um fato que tem conseqüências de muitos tipos, algumas delas bem negativas, e ainda persistem tradições técnicas e científicas que são peculiares a determinados contextos. Mas o caminho, evidentemente, não é o de criar espaços reservados para saberes particulares, definidos por critérios raciais, nacionais ou de classe, e sim criar condições para que todos participem e se beneficiem dos conhecimentos e das competências que se desenvolvem e estão disponíveis em um mundo cada vez mais global.

De novo, isto não esgota o problema. O mundo do conhecimento é fragmentado (quem fala ainda hoje da “unificação das ciências?”), e os sistemas de ensino superior, ao invés de insistirem no predomínio absoluto das hierarquias tradicionais do saber científico, devem estar abertos à pluralidade e convivência de diversas formas de qualificação profissional e produção do conhecimento, competindo entre si.

Em resumo: apesar de suas dificuldades, o princípio do mérito não pode ser abandonado no ensino superior; e a solução para os problemas de iniqüidade de acesso e resultados deve passar pelo apoio aos que dele necessitam e pela diversificação cada vez maior de caminhos e possibilidades, e não pela redistribuição pura e simples dos benefícios de um sistema de privilégios que precisa ser superado.

O parto da montanha

O texto final da proposta de reforma do ensino superior, apresentado com tanta fanfarra pelo governo no início do Ministério Tarso Genro, resultou em uma proposta tímida, que insiste em erros antigos e não lida com os temas importantes, e que dificilmente passará pelo Congresso neste ano eleitoral. Junto com Cláudio de Moura Castro, fizemos uma série de comentários sobre as sucessivas versões deste projeto, o último dos quais, “O Parto da Montaha”, sobre esta versão mais recente, disponível aqui.

Os equívocos e a falta de clareza do Ministério da Educação na área do ensino superior são dissecados com lucidês em um texto preparado por José Luis da Silva Valente, que foi Diretor do Departamento de Desenvolvimento do Ensino Superior da SESu/MEC na gestão de Paulo Renato e trabalha hoje em uma empresa privada, a VMD BRASIL Consultoria Educacional.

Inversão de prioridades no projeto de reforma do ensino superior

Os jornais têm noticiado que já existe uma nova proposta de reforma universitária na Casa Civil, pronta para ser enviada ao Congresso para aprovação. Vi referências a muitos aspectos desta versão, mas não consegui ver ainda o texto final. Pelo que tem sido publicado, ela manteria a elevação para 75% dos recursos de educação do governo federal para o ensino superior, em detrimento da educação básica. Carlos Henrique Araujo e Nildo Luzio escreveram recentemente o seguinte texto a rspeito:

É extremamente preocupante o estabelecimento de um percentual obrigatório de pelo menos 75% dos recursos do Ministério da Educação a serem aplicados no ensino superior. Com isso, o projeto de Reforma Universitária do Governo do Partido dos Trabalhadores poderá gerar repercussões negativas para as gerações futuras.

Alguns dados da realidade, não levados em conta, evidenciam como o Ministério da Educação, com essa proposta, pode estar contribuindo para aumentar a desigualdade no sistema de ensino nacional, já tão vilipendiado. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, o Inep, órgão responsável pela estatística educacional, em 2002, o investimento público médio em todas as modalidades da educação básica foi de R$ 900,00 por aluno e, no ensino superior, de R$ 10.534,00. Isso corresponde à razão de menos um real aplicado no nível básico para cada 11 reais gastos diretamente no ensino superior.

Alguns dirão que isso é razoável, pois manter o estudante na universidade é necessariamente mais caro do que no ensino básico. De fato, porém, a razão de investimento entre os níveis, como acontece no Brasil, não encontra precedentes quando comparados com outros países, especialmente os que têm melhores indicadores educacionais e sociais, o que não é o caso do Brasil. Alguns dados podem ajudar a refletir melhor sobre o tema.

A razão de aplicação de recursos públicos entre o secundário e o superior, por aluno, é de 1,7 vezes na República da Irlanda. Na Coréia do Sul, a distribuição dos gastos públicos por nível educacional mostra 34% aplicados na educação primária, 43,4% no secundário e 18,1% no nível superior. O restante dos recursos se divide em 1,2% para o pré-primário e 3,3% em programas de pesquisa e inovação. Esses são somente dois exemplos.

O Ministro da Educação disse que as Universidades serão chamadas a cumprir metas, com indicadores objetivos de resultados, contemplando aspectos como número de alunos por professores e número médio de aulas por docente a cada semana, dentre outros indicadores. No entanto, o que se vê no Brasil é que as Universidades foram capturadas por interesses corporativos de funcionários e professores. Os sindicatos advogam sempre pela autonomia. No entanto, não é aceitável que as instituições não prestem contas do dinheiro público ali investido. Além disso, não há na proposta nenhuma garantia legal de que a responsabilização relativa à aplicação dos recursos esteja garantida. Se estivesse, menos mal.

O que é mais preocupante é o fato de que a educação básica ainda carece de muito incremento. Uma análise séria sobre a área deve, necessariamente, partir das dimensões cruciais a serem consideradas, ou seja, acesso, fluxo escolar e qualidade dos resultados, sobretudo os de aprendizagem.

O que se nota, hoje, é que apenas o acesso, no ensino fundamental, está resolvido. Contudo, o fluxo e os resultados de aprendizagem são um verdadeiro desastre. Para resolvê-los, é preciso aumentar os recursos, notadamente entre os mais de 70% dos municípios brasileiros, com baixa arrecadação e capacidade de investimento. Por outro lado, é preciso ser mais rigoroso na adoção de programas. Estes devem atacar os reais problemas, com gerenciamento eficiente.
A reforma universitária, como está desenhada, vincula cada 0,75 de real do orçamento do Ministério da Educação para as universidades. Isso significa dizer que, no futuro, cada aumento possível, em situações de menor aperto fiscal e de maior esforço do Estado, com apoio da sociedade, irá para o ensino superior.

Não se advoga por deixar morrer a míngua as Universidades. Deve-se equacionar os problemas de financiamento das federais. Porém, até agora não se fez uma discussão séria em torno do assunto, considerando aspectos como pagamento de mensalidade, flexibilidade para captação de recursos junto aos setores privado e público e rigor na aplicação dos recursos assim obtidos. Estes são temas que não podem ser negligenciados para que se garanta recursos no futuro.

O financiamento das Instituições Federais de Ensino Superior pode se valer de outras fontes, além dos recursos orçamentários. Para tanto é necessário que as lideranças da maior parte dos professores e funcionários vejam o problema de forma menos dogmática e, de certa modo, ingênua.
É muito fácil propor reformas a partir da declaração de princípios ideológicos. Porém, quando se lida com recursos públicos vale reiterar a máxima de que não existe almoço grátis. Por isso é cada vez mais necessário definir prioridades. Certamente, seria mais pertinente garantir o básico com qualidade para nossos jovens. A reforma proposta pelo Ministério da Educação é conservadora e atrelada aos interesses coorporativos presentes na sociedade brasileira, que sempre privilegiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres. Aliás, exatamente o contrário do pregou o Partido dos Trabalhadores em seus mais de vinte anos militando na oposição.

Observando os dados de fluxo, vemos que ainda é forte o funil educacional em todo o Brasil. Hoje, estima-se que de cada 100 alunos que ingressam na 1a série do ensino fundamental cerca de 56 o concluem e não mais que 30 concluem o nível médio. Ao se olhar quem está se perdendo neste funil, constata-se o óbvio: são os mais pobres das regiões mais pobres. Aqueles que mais precisam do setor público e não contam com devolução do imposto de renda para subsidiar mensalidades de escolas particulares para seus filhos. É preciso uma verdadeira revolução das prioridades no setor educacional brasileiro para privilegiar os mais pobres, com uma educação básica de qualidade, capaz de propiciar uma verdadeira igualdade de oportunidades para o povo deste País.

Barretada com chapéu alheio

Jacques Schwartzman envia a seguinte nota, que me faz lembrar as leis que são aprovadas periodicamente pela Camara de Vereadores do Rio de Janeiro para obrigar os shoppings a dar estacionamento de graça a seus clientes):

O Senado acabou de aprovar projeto de lei que obriga as universidades particulares a concederem bolsas de estudo a 15% de seus alunos. Para financiar o programa, as mensalidades teriam um”pequeno aumento”. Isto é que se chama fazer caridade com o chapeu dos outros, sem atentar para as suas implicações : Há espaço para aumento das mensalidades? Isto não trará uma diminuição da demanda? Como fica a concorrência entre privadas com e sem fins lucrativos? Como fica a atual lei ( 9870 de 1999) que fixa as regras de reajuste de mensalidades? Finalmente, é aceitável origar empresas privadas a direcionarem seus gastos, como se fossem um imposto?

Jacques Schwartzman: Indicadores e financiamento das IFES

Jacques Schwartzman envia o seguinte comentário sobre o projeto de reforma universitária encaminhado ao Congresso, em relação ao financiamento das instituições federais de ensino superior (IFES):

Depois de um ano parado na Casa Civil, o projeto de reforma universitária está sendo encaminhado ao Congresso com uma importante novidade: o estabelecimento de indicadores para a distribuição de recursos entre as universidades federais. Esta questão já vem sendo trabalhada e aperfeiçoada desde quando Goldenberg era Ministro no governo Collor. A questão é que os vários modelos só podiam ser aplicados para OCC (outros custeios e capital) que representam em torno de 15% do total dos gastos. A não inclusão de Pessoal é uma conseqüência do modelo de organização baseado no Regime Jurídico Único (RJU). Se tivermos um montante fixo a distribuir igual ao orçamento das IFES, algumas terão seus recursos aumentados e outras diminuídos. Neste último caso, teríamos que demitir pessoal sem justa causa, o que não é permitido pelo RJU nem palatável pela comunidade universitária. Se optarmos pela regra ‘ninguém perde e alguns ganham’, o orçamento teria que ser sempre crescente, o que não é razoável. Assim, a principal fonte de problemas (e de soluções) tem ficado de fora dos modelos de distribuição.

A escolha dos indicadores a serem utilizados não é neutra e expressa um entendimento sobre o papel da Universidade e seus caminhos desejados. Vejamos alguns exemplos e suas ambigüidades. A relação aluno/professor, sempre presente, é um indicador de eficiência. Em princípio quanto maior a razão menores os custos por aluno. Mas, por outro lado, teremos mais salas congestionadas, aulas práticas mais desconfortáveis. É portanto possível que menores custos impliquem em menor qualidade do ensino. Um outro indicador seria a oferta de cursos noturnos, certamente pontuando mais quando o indicador for crescente. O incentivo para criar cursos noturnos tem por finalidade aumentar a matrícula daqueles que tem que trabalhar durante todo o dia. Mas é isto que queremos, alunos pouco dedicados aos estudos? Queremos igualar as IFES à parte pior do ensino privado? Aqui, a questão distributiva (mais alunos trabalhadores) conflita com a qualidade (menos disponibilidade para os estudos).

A proporção de Mestres e Doutores no total de professores é um bom indicador de qualidade quando se parte de um patamar mais baixo, mas se torna inócuo a níveis mais altos, quando todos forem doutores.

Poderíamos introduzir também as avaliações do INEP, como o ENADE, e as da CAPES para a pós -graduação, como um indicador de qualidade. Aqui surge a velha resistência ideológica de não utilizar a avaliação como premiação ou punição.

Para todos estes problemas existem soluções. No caso da relação aluno/professor pode-se caminhar para relações ideais por área de conhecimento e favorecer os que estiverem mais próximos delas. No caso das matrículas noturnas, estabelecer a proporção desejável em relação ao total de alunos. De qualquer forma, a pertinência dos indicadores deve ser questionada periodicamente pois podem não estar mais tão dispersos. É o caso, por exemplo, da situação em que quase todos os professores se tornem doutores.

Apesar de todas as dificuldades e das intermináveis discussões que se seguirão, é fundamental introduzir algum tipo de avaliação nas decisões de financiamento. É uma importante sinalização para a sociedade sobre a qualidade das instituições e para as IFES sobre o rumo que devem tomar a partir da orientação de sua mantenedora – em última análise, o povo brasileiro que as sustentam.

Peter Fry e Yvonne Maggie sobre cotas nas universidades

Peter Fry e Yvonne Maggie publicaram o seguinte texto no O Globo de 11 de abril:

Política social de Alto Risco

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99 que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros (pretos e pardos na classificação do IBGE), indígenas e outras minorias. Estas cotas serão aplicadas linearmente em todos os cursos das universidades federais.

Por que essa medida é polêmica? Uns dizem que vai reduzir a qualidade de ensino e pesquisa das universidades federais. Pode ser. Mas o que queríamos sugerir é que esta lei traz conseqüências que vão muito além das portas das universidades. Ela implica um projeto radicalmente novo de nação. A lei, se aprovada, irá instituir, no âmbito federal, o negro como figura jurídica, o que já ocorreu em 2001 no Estado do Rio de Janeiro, com a aprovação da lei de reserva de vagas para as universidades estaduais votado por aclamação pela Assembléia Legislativa.

O que significa instituir o negro como entidade jurídica? Significa uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora “raça” e pune o racismo como crime inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos. Se passar essa lei e os cidadãos serão divididos em duas “raças” com direitos distintos de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias. A política de cotas raciais, como vem sendo denominada, institui, portanto uma sociedade dividida entre “brancos” e “negros”. Em outros lugares do mundo esse tipo de engenharia social trouxe mais dor do que alívio para os problemas a que visava solucionar.

Há uns que dizem que quem é contra as cotas apenas defende os seus privilégios. A política de cotas raciais em nada vai afetar as elites endinheiradas do país. Estas continuarão mandando os seus rebentos para os cursos pré-vestibulares mais badalados, e encaminharão a sua prole menos competitiva para universidades no primeiro mundo. As cotas são destinadas justamente para a classe média baixa que só agora com a expansão do ensino de segundo grau pode sonhar em ver os seus filhos entrarem na universidade. E essa classe média ascendente é justamente aquela em que gentes de todas as cores convivem nas mesmas famílias e vizinhanças. Queremos cindir esse universo social em duas “raças”?

Dirão os proponentes dessa política que o país já é dividido na prática, na realidade, no dia a dia. Mas é justamente contra isso que o anti-racista deve lutar. A luta contra o racismo deve ser prioritária, dever de todo o cidadão. No entanto, o remédio que está sendo ofertado em uma bandeja de prata, é um remédio barato (posto que é uma política de custo zero que não irá onerar os cofres públicos) e arriscado, pois o seu custo social pode ser muito alto. É uma política de curto prazo cujas conseqüências serão sentidas no longo prazo.

Outros defensores das cotas acusam aqueles que têm dúvidas, de racistas, evidentemente no intuito de calar a crítica. Mas as nossas críticas em relação à política de cotas raciais partem de um anti-racismo que se espanta com a forte correlação entre cor escura e pobreza, e que se revolta perante o preconceito e discriminação, velados ou não, que contribuem para tal desigualdade. Um anti-racismo que percebe com toda clareza que a discriminação e o preconceito derivam das representações sociais que hierarquizam entidades denominadas “raças”. Por isso, nos sentimos na obrigação de lutar contra essas representações, uma vez que é a persistência delas que possibilita a continuidade da discriminação e, portanto, da desigualdade.

O debate sobre as cotas é um debate sobre o Brasil. O que está em pauta são dois projetos de combate ao racismo: um pela via do fortalecimento das identidades “raciais” e, em última análise, do genocídio dos “pardos”, “caboclos”, “morenos”etc.; outro pela via do anti-racismo que procura concentrar esforços na diminuição das diferenças de classe e uma luta contínua contra as representações negativas atribuídas às pessoas mais escuras. Esses projetos também são projetos distintos de nação. Um vislumbra uma nação pautada das diferenças “étnicas/raciais”—isto é uma nação de comunidades. Outro projeto aposta na construção de uma cidadania com direitos em comum independentemente de “raça”, “etnia”, gênero, orientação sexual, etc., salvaguardando o direito de cada individuo a seguir o estilo de vida que mais lhe convém—isto é uma nação de indivíduos. Enfim, argumentamos que não se pode acabar com o racismo com uma política que entroniza a “raça”. Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a “raça”, cria justamente aquilo que quer ver destruído. Merecemos melhor solução para os graves problemas que nos assolam.

ENEM e Provão: comparar ou nao comparar?

Como quem não quer nada, o INEP divulgou na Internet as médias dos resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para todas as escolas do país, com grande repercussão na imprensa. O interessante é que esta divulgação vai no sentido oposto da idéia de que escolas e instituições não devem ser comparadas, de que os processos são mais importantes do que os resultados, de tudo, enfim, que levou à desfiguração do antigo “provão” do ensino superior.

Como medida de avaliação, as médias do ENEM estão longe de ser um bom instrumento. Primeiro, porque, em geral, só fazem o exame os que querem se candidatar para as universidades, e com isto ficam excluídos todos os que repetiram, abandonaram a escola, ou simplesmente resolveram não se candidatar naquele ano. Depois, como acontecia com o “provão”, não há como saber quanto do resultado se deve ao “capital cultural” que os estudantes trazem para a escola de suas famílias, e quanto é de fato acrescentado pela escola em termos de formação. Além disto, não se sabe exatamente quais os conteúdos que o ENEM mede.

Apesar disto, a publicação destes resultados cumpre uma função essencial, que é dar à sociedade uma informação bastante sintética sobre desempenho, e abrir espaço para o debate sobre a qualidade. Justamente o que parece ter desaparecido do ensino superior, aonde o tema das cotas parece dominar todas as preocupações.

Autonomia Universitária, lá e cá

A Associação Columbus é uma instituição que reúne reitores da Europa e da América Latina, e este ano, para sua reunião em Lisboa, convidaram a mim e outras pessoas para fazer apresentações e discutir a questão da autonomia universitária. A maioria dos reitores presentes eram de Portugal, Espanha e Brasil; os apresentadores eram Christine Musselin, do CNRS na França; Michael Shattock, antes da Universidade de Warwick, e hoje no Instituto de Educação em Londres; e José Gines Mora, do Centro de Estudos em Gestão da Educação Superior da Universidade Politécnica de Valencia.

Ninguém se centrou no tema da “privatização”, mas todos partiram do suposto de que o setor público já não tem como ser mais o único provedor de recursos para as universidades, e quando este recurso existe, ele já não é mais transferido de forma automática e desvinculada de resultados que precisam ser explicitados e avaliados.

Na minha apresentação, lembrei a história do Movimento da Reforma Universitária de Córdoba de 1918, que se espalhou por toda a América Latina a partir daí, difundindo uma noção peculiar de autonomia acadêmica, baseada no poder dos estudantes, no governo tripartite, nos processos de decisão tomados em assembléia, no princípio da extra-territorialidade, e na livre admissão de estudantes. Argumentei, essencialmente, que este modelo pode ter tido sua importância histórica, criando um espaço para a livre manifestação de idéias e formação de lideranças políticas na região, mas não produziu uma boa universidade, e a autonomia que se busca hoje não pode ser a mesma de 100 anos atrás. Christine Musselin falou da experiência francesa de contratos de quatro anos entre governos e universidades, e mostrou como é possível estabelecer um novo tipo de pacto entre governos e universidades pelo qual o governo não renuncia a sua responsabilidade de definir prioridades, e as universidades também ganham no processo. A autonomia universitária, argumenta ela, não precisa ser vista como um jogo de soma zero, em que, ou ganha um lado, ou ganha o outro, mas ambos podem ganhar. Ginés Mora também falou sobre o novo tipo de pacto entre o setor público e as universidades, em que as instituições devem dar conta do uso dos recursos que usam, e, em troca, têm muito mais autonomia para gerir seus recursos, sejam de origem pública, sejam de origem privada. Michael Shattock, finalmente, fez uma discussão aprofundada dos processos de gerenciamento das novas universidades, argumentando que elas precisam de lideranças fortes e uma visão de longo prazo a ser atingida, e não de um plano detalhado de funcionamento, como se fossem empresas.

O que me chamou mais a atenção foi a resistência que muitos reitores, sobretudo da América Latina e da Península Ibérica, mostraram a estas idéias. Um reitor da Venezuela disse que, para ele, a autonomia que ele precisa é ainda a de Córdoba, para defender sua instituição da manipulação política dos aliados de Chávez. O reitor da Universidade de Lisboa disse que, por detrás das questões de autonomia, avaliação, e participação do setor privado, havia uma conspiração para domesticar a inteligência e o pensamento critico das universidades. Uma reitora brasileira disse que contratar dirigentes universitários de fora da instituição, através de comitês de busca, como ocorre nos Estados Unidos e outros países, poderia funcionar lá fora, mas nunca no Brasil, aonde a cultura era diferente.

Fiquei com a impressão de que o abismo entre a universidades hispano-americanas e as do resto do mundo – não só dos Estados Unidos e Europa Ocidental, mas também da Ásia e da Europa Oriental – está crescendo cada vez mais. Nestes dias, o Times Higher Education Supplement publicou sua nova lista das 200 melhores universidades do mundo. Lá na lanterninha aparecem duas universidades latinoamericanas, a Universidade Nacional do México e a USP. E só.

O negócio dos cerebros, e o assalto ao trem pagador

Imperdível o survey sobre Educação superior no mundo publicado pela revista The Economist de 10 de setembro, com o subtítulo de The Brain Business, sobretudo para quem quiser entender a enorme distância que separa o que está ocorrendo no mundo do projeto de “reforma” proposto pelo nosso Ministério da Educação.

Existem quatro tendências que estão transformando a educação superior em toda parte – massificação, a expansão da economia do conhecimento, a globalização e a competição entre as universidades. Tudo isto torna o ensino superior mais desejado, mais necessário, mais importante e mais caro. Nem tudo são flores. O pior dos mundos é quando o Estado mantém o ensino superior sob tutela, e não lhe dá os recursos necessários. O melhor dos mundos (e, vindo da The Economist, não é surpresa) é quando o sistema é desregulado, aumenta a competição, e as instituições têm liberdade de buscar seus próprios recursos. Os exemplos positivos são os Estados Unidos e a China; os exemplos negativos, a maioria dos estados europeus, simbolizados pela decadente Universidade de Humboldt. E a grande novidade é a criação de uma nova liga de universidades globais, que trabalham na fronteira do conhecimento. O survey termina com dois conselhos, tanto para paises que estão querendo desenvolver seus sistemas de ensino superior, como a Índia e a China (o Brasil não merece muita atenção) quanto para os que tem que lidar com sistemas decadentes, como a Alemanha: diversifiquem suas fontes de financiamento, e deixem que mil flores floresçam. O pacto com o Estado, que antes mantinha as universidades funcionando, transformou-se em um pacto com o diabo.

Ao mesmo tempo, consegui finalmente uma copia de Education and jobs: the Great Training Robbery, de Ivar Berg, editado em 1971 (Center for Urban Education, Beacon Press), que estava procurando sobretudo por que havia gostado do título. É uma critica equilibrada e muito bem feita à teoria do capital humano, que me parece muito necessária. A questão é se o aumento observado de rendimentos associados à posse de diplomas é uma conseqüência das competências que estes diplomas refletem, ou de outras coisas como credenciais e posições de prestígio associadas aos títulos. A resposta razoável é que depende, mas não se pode continuar supondo, sem maiores qualificações, que anos de escolaridade, ou diplomas, são a mesma coisa que conhecimento e competência. O termo “indústria do conhecimento” e “negócio de cérebros” ainda não estava em moda quando este pequeno livro foi escrito 35 anos atrás, mas a tendência ao crescimento ilimitado dos sistemas de ensino, justificada, sem avaliação mais cuidadosa, pelo aumento de produtividade que eles gerariam, já ocorria de forma clara, consumindo um volume cada vez maior de recursos públicos e privados. O livro de Berg faz parte da corrente minoritária de estudiosos que não compram a teoria do capital humano na sua forma mais crua, e que inclue a Alison Wolf (Does education matter? Miths about education and economic growth, Penguin, 2002) e Randall Collins (The Credential Society, Academic Press, 1979). Se os benefícios privados da educação tem sido grandes, mas a relação entre estes ganhos privados e os benefícios públicos é incerta, então a justificativa para o subsídio público indiscriminado à expansão da educação superior fica abalada, assim como para a regulação detalhada dos títulos e das profissões.

O survey da The Economist está totalmente na linha da teoria do capital humano, e não toma em consideração o problema da educação de má qualidade, que floresce quando as credenciais predominam sobre os conteúdos, a não ser como fenômenos esporádicos de “corrupção”. Mas a conclusão, sobre a necessidade de abrir mais os sistemas educacionais e reduzir sua regulamentação e controle por parte do Estado, vale nos dois casos.

Doutorados no mundo, o Modo II e a dama adormecida.

Durante três dias, trinta professores, pesquisadores e autoridades educacionais e de pesquisa de quinze países se reuniram no Centro de Conferências de Sleeping Lady, perto de Seattle (veja se consegue identificá-la na foto), para discutir sobre as transformações e inovações que vêm ocorrendo com os programas de doutorado nas diversas partes do mundo, a convite da Universidade de Washington. Do Brasil, participaram Renato Janine Ribeiro, Diretor de Avaliação da CAPES, Russolina Zingali, professora do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, e eu. Os trabalhos apresentados sobre os diferentes países podem ser vistos no site da Universidade de Washington

Um dos temas mais discutidos foi o impacto da introdução do chamado “Modo II” de produção de conhecimento nos programas de doutorado. “Modo II” foi o termo utilizado pelos autores do livro The New Production of Knowledge – the dynamics of science and research in contemporary societies (Sage, 1994) (dos quais faço parte, junto com outras cinco pessoas) para caracterizar as novas formas de estruturação das atividades de pesquisa científica e tecnológica, aonde se rompem as barreiras entre as disciplinas acadêmicas tradicionais, pesquisa básica e aplicada, o mundo da academia e o mundo empresarial e dos interesses públicos, o conhecimento de domínio público e o conhecimento apropriado; tudo isto em contraste com o antigo “modo I”, em que a pesquisa se organiza em disciplinas estanques, se desenvolve pela curiosidade intelectual dos pesquisadores, e o mundo acadêmico se protege das tentativas de governos e do setor privado de se imiscuir em sua vida.

Este “novo modo” de produzir conhecimentos não é tão novo assim, e nem eliminou o modo mais tradicional, sobretudo na etapa de formação dos cientistas e pesquisadores. Mas ele serve para caracterizar uma forte tendência que vem ocorrendo em todo o mundo, em que a pesquisa científica e tecnológica se torna, ao mesmo tempo, mais importante, mais cara e mais fortemente ligada a interesses e motivações de ordem prática, e onde o espaço para a pesquisa acadêmica mais tradicional vem se reduzindo. A passagem de um a outro modo de produção do conhecimento pode ser traumática e cria uma série de problemas, mas, ao mesmo tempo, torna a pesquisa mais dinâmica e relevante, e com mais condições de conseguir os recursos e o apoio de que necessita para continuar se fortalecendo.

O texto preparado por Renato Janine sobre o doutorado no Brasil mostra bem o sucesso havido no país, quando nos aproximamos dos 10 mil doutores graduados por ano, de qualidade garantida de forma bastante razoável pelo sistema de avaliação da CAPES, e que se reflete também no aumento sistemático das publicações científicas dos pesquisadores brasileiros na literatura internacional – não tenho os números em mãos, mas passamos de algo como 0.5% da produção mundial de papers em revistas científicas internacionais a cerca de 1.5%. Os principais problemas dos doutorados brasileiros, na visão de Janine, são como avaliar a qualidade dos cursos interdisciplinares, como se defender da invasão de programas de pós-graduação estrangeiros de má qualidade, e, a médio prazo, como financiar a expansão futura dos doutorados brasileiros às taxas atuais.

Minha impressão é que, se por um lado o crescimento da pós-graduação brasileira é uma história de sucesso entre os paises do terceiro mundo (ninguém na América Latina, nem mesmo o México, chega perto), por outro lado ainda estamos quase que totalmente imersos no “modo I”, e nossa pós-graduação já dá sinais preocupantes de envelhecimento precoce. Estruturada de forma rígida em disciplinas estanques, monitorada de cima para baixo pela CAPES, avaliada sobretudo pela produção tradicional de papers científicos e títulos outorgados, nossa pós-graduação não sabe como lidar e vive como ameaças a interdisciplinaridade, a internacionalização do conhecimento, as novas formas de parceria e a inter-relação entre o mundo acadêmico e o mundo dos negócios, das aplicações e das demandas da sociedade, coisas que na Europa e na Ásia são vistas como novas oportunidades para melhorar a qualidade, a relevância e as fontes de financiamento para a formação de alto nível e o crescimento da pesquisa científica e tecnológica.

Talvez não seja por acaso que, dez anos depois de publicado, o livro que introduziu o termo e abriu do debate sobre o “Modo II”, que dominou a reunião de Sleeping Lady, nunca tenha sido traduzido ao português e continue sendo praticamente desconhecido no Brasil (existe tradução castelhana, publicada em Barcelona em 1997). Levar a sério as implicações do “modo II’ significa olhar em volta para ver o que outros países estão fazendo; não se alegrar tanto com o crescimento da participação do Brasil na produção científica mundial, de “quase nada” para “praticamente nada”; não se entusiasmar tanto com nossos milhares de doutores produzidos todos os anos, a um custo crescente e fazendo não se sabe exatamente o quê, e em benefício de quem; e começar a pensar sobre a necessidade de uma revisão profunda do sistema de avaliação da CAPES, criado 30 anos atrás e até hoje menina dos olhos de nossos melhores pesquisadores, mas que pode estar se transformando em uma barreira à inovação, à relevância e à entrada de novos recursos públicos e privados para o financiamento de nossa pesquisa – uma grande dama semi-adormecida. Não é uma tarefa fácil, sobretudo pelos riscos à qualidade conseguida com tanto custo até aqui, mas que precisa começar a ser pensada.

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