Merval Pereira: cooptação politica e verticalização eleitoral.

Merval Pereira, em sua crônica política no O Globo dos dias 4 e 5 de fevereiro de 2006, escreve sobre o tema da coerência ou fragmentação dos partidos políticos brasileiros, a propósito da mudança de legislação sobre verticalização partidária, e cita, entre outras coisas, trechos de uma correspondência que trocamos a respeito recentemente. Para não infringir direitos autorais, deixo de reproduzir o texto aqui, mas recomendo que ele seja buscado no site do jornal (http://oglobo.globo.com), de onde os dois textos podem ser baixados (sem pagar nada se até 7 dias depois da publicação). Em compensação, coloco abaixo a nota que enviei para Merval, ligeiramente editada:

“Em 1975 publiquei “São Paulo e o Estado Nacional”, que depois saiu, revisado, como “Bases do Autoritarismo Brasileiro”, em 1988. A tese principal era que o sistema político brasileiro não era formado pela simples representação de interesses privados na esfera política, mas que havia uma forte esfera, a estatal, que tinha sido, historicamente, tão ou mais importante do que a simples representação de interesses privados. Eu dizia, seguindo a tradição de Max Weber, que este setor estatal era, na sua origem, patrimonial-burocrático, e que, na medida em que ele criava um sistema político com partidos, etc., este sistema operava por cooptação das lideranças que fossem surgindo na sociedade mais ampla. As origens desta forma de organização do sistema político remontam ao Estado patrimonial português, estão associadas ao padrão de colonização que eles trouxeram ao Brasil, e se prolongou nas elites que administraram o Império e mantiveram o controle da coisa pública desde então. Existe toda uma linha de interpretação do sistema político brasileiro nestes termos, a começar por Raymundo Faoro, e seu famoso livro sobre o Estamento Burocrático.

Mas quem realmente entendeu o que estava acontecendo não foi Faoro, e sim Victor Nunes Leal, no seu clássico “Coronelismo, Enxada e Voto”. Faoro acreditava que o Estamento Burocrático era como que um destino, uma essência da sociedade brasileira, do qual só poderia vir coisas ruins, e passou a vida lutando contra este monstro, que, por definição, jamais poderia ser derrotado. Victor Nunes, ao contrário, mostrava como os grupos e setores ligados ao poder central, embora dominantes e influentes, dependiam do apoio e da troca de favores dos “coronéis” (coronéis do campo, não do exército) para as eternas disputas de poder que ocorriam no seio do Estado. Este coroneis não eram, como alguns pensavam, simples representantes de interesses agrários, mas, justamente, pessoas que se especializavam nesta barganha, e graças a isto conseguiam apoio para manter suas posições de poder nas disputas locais. O ponto principal que aprendemos com Victor Nunes (e creio Bolívar Lamounier, entre outros, diria o mesmo) é que o estado não é monolítico, seus espólios estão sempre em disputa, e por isto seus detentores precisam de fazer barganhas e parcerias para existir.

Numa simplificação talvez exagerada, mas acredito que sugestiva, eu argumento no livro que sempre houve, desde o Império pelo menos, uma tensão entre esta forma de fazer política, típica de sociedades de estados relativamente avantajados e capitalismo canhestro, e as formas pelas quais normalmente se pensa a política, baseada nos interesses privados que se articulam para colocar o setor público agindo conforme seus interesses, e que eu chamei de “política de representação”. No Brasil, a tensão entre os dois tipos de política se dava, em grande parte, entre São Paulo, por um lado, berço da “república de bandidos” que eram os bandeirantes, e do capitalismo brasileiro, e aonde os capitalistas, e mais tarde os operários, se organizavam para defender seus interesses, e, por outro lado, o centro político do Rio de Janeiro, em parcerias e barganhas de tipo coronelista com as elites dos demais estados empobrecidos da federação, ou com a tradição militar e autocrática do Rio Grande do Sul. Ao longo da história do Brasil – o Império, a República das intervenções, o período Vargas, a República de 45-64 (dominada por mineiros e gaúchos, associados ao sindicalismo pelego) – o domínio foi sempre ou quase sempre do poder central, com breves interregnos como os tempos do “café” da República Os paulistas conseguiam proteger seus interesses e tentavam se organizar em partidos mais autônomos e independentes, mas nunca, efetivamente, chegavam ao poder. Era a subordinação do centro econômico ao centro político do país, o inverso do que pensam normalmente os marxistas e os politicólogos de tradição americana, ou européia, que é a economia, com seus jogos de interesse e relações de classe, que condicionaria e daria forma ao sistema político. Esta seria, então, a base do autoritarismo brasileiro, que só iria se alterar quando “São Paulo”, naquilo que poderia representar de uma sociedade mais autônoma e senhora de seu destino, crescesse e se espalhasse por todo o país, transformando as administrações burocráticas em governos eficientes, e os partidos políticos em organizações de articulação e interesses e preferências de setores importantes da sociedade. Isto foi escrito na década de 70, nos anos da ditadura, e o governo militar me parecia um prolongamento natural do velho estado patrimonial, embora as vezes tecnocrático, e que, quando começou a precisar de aliados, foi buscá-los nas oligarquias dos estados mais pobres e dependentes do país.

É claro que este esquema de interpretação deixa muitas coisas importantes de fora, e uma delas é o populismo, que eu interpretava, basicamente, como uma outra modalidade de cooptação – verdadeiro para Vargas, possivelmente, mas não para Jânio Quadros e outros demagogos com um forte componente fascista, que outros paises latino americanos conheceram mais do que gente.

Antes dos governos militares, haviam partidos nacionais – PSD, UDN, PTB – e partidos paulistas – PSP, e outros menores. Depois do governo militar, surgem os melhores exemplos de partidos representativos no Brasil, com todos os seus defeitos – o PSDB e o PT, ambos ancorados em São Paulo. Com isto, parecia que minha tese dos anos 70 se cumpria. A incorporação de São Paulo ao lugar que lhe era devido no centro da política brasileira poderia contribuir para esvaziar os velhos sistemas de cooptação, e abrir uma nova era de política representativa no país. O que vemos agora, no entanto, é que o PSDB desenvolve uma nova política de governadores, enquanto que o PT incorpora as piores práticas da política de cooptação. Não vai ser assim tão fácil…

Com isso chegamos ao tema da verticalização. Eu não penso que só existam partidos de cooptação no Brasil, existem outras coisas também. A discussão que existe está baseada em cálculos de quem perde e quem ganha com as diferentes alternativas, e não em uma análise do que é melhor ou pior para o país. Queremos partidos bem estruturados em torno de programas, ou mais amorfos? Queremos partidos que se imponham autoritariamente do centro, ou partidos construídos de baixo para cima? O Brasil de hoje combina fortes elementos de uma política programática que não tínhamos antes, ou tínhamos pouco, com vários tipos de partidos tradicionais que vivem da intermediação política e administrativa. Estas diferenças não ocorrem somente entre partidos, mas inclusive dentro de cada um dos partidos principais. Eu gostaria que os partidos de base programática, de tipo representativo, passassem a predominar, mas não sei se forçar a verticalização eleitoral ajuda para isto. O Brasil é muito grande, com fortes regionalismos, é totalmente artificial forçar uma coerência dos partidos de forma vertical, e em todos os Estados. Eu deixaria esta questão como escolha de cada partido. O PT, se quiser, pode decidir que não aceitará coalizões regionais ou locais distintas da coalizão nacional que estabelecer. O PMB, se quiser, pode decidir o oposto.”

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

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