Junto com outros ex-presidentes do IBGE, estamos circulando esta nota, instando os membros do Congresso a preservar os recursos para garantir a realização do Censo Demográfico de 2021.
Uma alteração de última hora na proposta orçamentária para 2021 ameaça cancelar o Censo Demográfico decenal que deveria ter sido feito no ano passado, e foi adiado para este ano por causa da Covid, como na maioria dos países do mundo.
Os dados do Censo Demográfico são a base para a transferência dos recursos do Fundo de Participação de Estados e Municípios, para a administração do Bolsa Família e para todas as políticas de educação, saúde e transferência de renda do governo federal, estados e municípios. E é ele, também, que traz confiabilidade para as pesquisas amostrais de emprego, saúde e educação do IBGE e outras entidades públicas e privadas. Nosso último censo ocorreu em 2010, e, sem ele, o Brasil se junta ao Haiti, Afeganistão, Congo, Líbia e outros estados falidos ou em guerra que estão há mais de 11 anos sem informação estatística adequada para apoiar suas políticas econômicas e sociais.
O Censo de 2021 deverá ser feito por uma combinação de coletas de dados nos domicílios e de forma virtual e por telefone, fazendo uso das novas tecnologias que o IBGE teve que desenvolver ao longo de 2020 para não interromper suas pesquisas amostrais. A expectativa é que, em agosto, o Brasil já tenha saído ou esteja saindo da epidemia da COVID, e o IBGE vem se preparando para realizar o trabalho fazendo uso de protocolos estritos de proteção sanitária de entrevistadores e entrevistados.
Como ex-presidentes do IBGE, instamos aos senhores Senadores e Deputados, membros da Comissão Mista do Orçamento, que preservem os recursos do censo e não deixem o país às cegas.
Edmar Bacha Eduardo Nunes Eduardo Augusto Guimarães Edson Nunes Eurico Borba Sérgio Besserman Simon Schwartzman Silvio Minciotti
As decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal de anular os processos da Lava Jato por erros formais de jurisdição ou eventuais comportamentos impróprios de juízes e promotores podem estar sendo tomadas com convicção, mas nem por isto deixam de contribuir para a desmoralização crescente de nossos tribunais, que já vinha se acentuando com as sucessivas decisões de juízes “garantistas”, que, aos olhos da opinião pública, não passam de chicanas a favor dos processados por corrupção.
A noção de que, sem procedimentos adequados, não se pode condenar as pessoas, tem como uma de suas inspirações a famosa decisão de “Miranda contra Arizona” da Corte Suprema dos Estados Unidos de 1966, quando um criminoso confesso teve sua sentença anulada porque seu direito à defesa não havia sido devidamente respeitado. Esta decisão foi importantíssima para colocar limites ao comportamento muitas vezes preconceituoso, arbitrário e violento da polícia nos Estados Unidos que, da mesma forma que no Brasil, tende a afetar sobretudo às minorias e às pessoas mais pobres. Comparado com seus benefícios, o fato de que alguns criminosos fiquem impunes é um pequeno preço a pagar.
O outro lado da moeda é que, para que ela continue valendo, a grande maioria dos criminosos precisam ser condenados. É a efetividade do sistema judiciário, e não o formalismo de suas decisões, que faz com que a sociedade respeite e considere legítima sua autoridade. Para ser respeitado, o judiciário precisa atuar com bom senso e equilíbrio, garantindo as formalidades e punindo os criminosos, sem deixar que um lado predomine sobre o outro. No Brasil, por falta de uma política clara de defesa dos direitos civis, muitas pessoas sem recursos são presas e condenadas por supostos delitos, quando não mortas pela polícia, enquanto criminosos com mais recursos conseguem escapar pelas brechas formais da lei. O judiciário é temido, mas pouco respeitado, e isto serve de caldo de cultura para os movimentos de extrema direita contra os direitos humanos e pela impunidade da violência policial.
O “mensalão”, primeiro, e a Lava Jato, depois, trouxeram grande notoriedade e legitimidade à cúpula do judiciário brasileiro, que se mostrou capaz, pela primeira vez na história, de julgar e condenar políticos e empresários poderosos, o deu também ao Supremo Tribunal legitimidade para administrar as crises institucionais que se tornaram cada vez mais frequentes desde o impeachment de Dilma Rousseff. Esta legitimidade, no entanto, vem sendo corroída pela percepção cada vez mais clara de que, desde a decisão do STF sobre o fim das condenações em segunda instância, são os conluios pela impunidade da classe política, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo notório “centrão”, e não a defesa da legalidade dos procedimentos, que têm predominado nas cortes superiores.
É a legitimidade das instituições que distingue os estados efetivos dos estados falidos. Os estados efetivos precisam ter o poder de usar a força para fazer cumprir as leis, mas só em último caso, e para isto é necessário que a autoridade dos governantes seja reconhecida e aceita como legítima. Instituições são muito mais que um conjunto de cargos, estatutos e a posse de determinados recursos, como armas, dinheiro ou conhecimentos. Para funcionar, elas precisam atuar como organismos vivos, em que cada participante se sinta e atue como parte de um todo mais amplo; e dependem também de um ambiente externo receptivo, em que suas práticas sejam reconhecidas como benéficas, e não predatórias. Isto vale tanto para o judiciário quanto para os demais poderes, assim como para empresas, igrejas, sistemas de pesquisa, ensino, redes de saúde, sindicatos e organizações profissionais.
Instituições efetivas podem também existir em estados autoritários à custa de maior coerção, mas a democracia não pode subsistir sem instituições vigorosas. O grande desafio das sociedades democráticas é que elas precisam preservar e fortalecer suas instituições reduzindo ao mínimo o uso da força, incluindo o máximo de pessoas, respeitando as diferenças e garantindo as liberdades. Isto requer um consenso básico e o trabalho constante de pessoas influentes de diferentes setores – a chamada elite – a favor de seus valores centrais. Não é uma tarefa fácil, e, quando ela fracassa, abre espaço para o populismo, cujo principal é resultado, é, justamente, o desmonte das instituições – o judiciário se transforma em instrumento de poder ou de impunidade, os cargos executivos são apropriados por famílias e grupos poderosos, as empresas se transformam em quadrilhas, a educação se transforma em ideologia, o conhecimento científico e técnico é substituído pela superstição e as fake news. É uma rampa inclinada na qual é muito fácil cair, e muito difícil se levantar.
Em novo livro, Simon Schwartzman articula memórias pessoais e a busca por novos caminhos para o Brasil
Uma mensagem levou Simon Schwartzman até a Polônia. A remetente, Vera Ejlenberg, realizava pesquisas sobre o rabino Chaim Radzyner, e buscava informações. Schwartzman reconheceu o nome do bisavô de sua mãe. E, em meados de 2019, partiu para a Europa, onde participou de um encontro por conta dos 75 anos da destruição do gueto da cidade de Lodz.
“Eu tinha poucas informações sobre a história da família de minha mãe. Ela dizia que todos haviam morrido durante a guerra. A viagem me colocou em contato com outros lados dessa história. E com um lado que não é o meu único, mas que com certeza é importante na minha trajetória”, conta o sociólogo e cientista político.
Não apenas isso. “Estar ali reviveu a presença da guerra, do Holocausto, da resistência. Não era nada que eu não soubesse, mas foi uma experiência forte, de impacto muito grande.” E, de volta ao Brasil, Schwartzman começou a trabalhar em um livro de memórias, Falso Mineiro: Memórias da Política, Ciência, Educação e Sociedade, que será lançado na quarta-feira, dia 17, com uma live que vai reunir, além do autor, Pedro Malan e Helena Bomeny, com mediação de Roberto Feith, editor do selo História Real, da Editora Intrínseca.
É com o relato da viagem a Lodz que Schwartzman, colunista do Estadão, abre sua narrativa. Mas a lembrança pessoal convive no livro com a preocupação em discutir temas da história brasileira. “O objetivo foi ir além das memórias pessoais, ou seja, utilizar a trajetória pessoal para discutir questões atuais”, explica o autor, que as define no início da obra: política e autoritarismo; modernidade e democracia; conhecimento, ciência e tecnologia; ciência e ideologia; educação e diversidade; sociedade e economia.
São temas presentes desde cedo em sua trajetória profissional. Formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Schwartzman fez seu mestrado na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, no Chile. E, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, o doutorado. Deu aulas em instituições como a USP e na Universidade de Columbia, entre muitas outras.
Ele se envolveu em diversos episódios da história brasileira. Foi preso e interrogado durante 40 dias em 1964 pela ditadura militar, que não sabia bem que acusações impor contra ele – e resolveu exilar-se na Noruega, seguindo depois para a Argentina. A carreira pedagógica e voltada à pesquisa, a certa altura, o levou também a ocupar posições como a de presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. E, ao longo de todo esse tempo, produziu obras fundamentais para a compreensão do País, a começar por Bases do Autoritarismo Brasileiro, livro que nasce de sua tese de doutorado.
Nele, como o próprio Schwartzman explica, buscava mostrar como “o sistema político não era mero instrumento dos interesses dos ricos e poderosos, tendo uma dinâmica própria que precisava ser mais bem entendida”. “A espinha dorsal de meu livro era a de que no Brasil coexistiam duas formas de dominação: uma de tipo patrimonial, herdada da Coroa portuguesa e que nunca dependeu de poderes feudais para existir, consolidando-se na capital do País, o Rio de Janeiro; e outra, de tipo mais contratual, originada da parte mais dinâmica e autônoma da economia, baseada sobretudo em São Paulo. Daí o fato de uma das teses mais controvertidas e questionadas do livro ser a de que, no Brasil, o centro do poder econômico sempre teve uma posição relativamente subordinada, e por isso conflituosa, com o centro político.”
Não é pouco mérito o fato de que, em Falso Mineiro, a memória dos trabalhos acadêmicos e pesquisas realizadas e a lembrança de episódios pessoais sejam narradas com a mesma clareza e sabor. “Eu aprendi com o tempo que, se você não entende algo ao ler, a culpa é de quem escreveu. Há temas complexos, sem dúvida, e textos de caráter mais técnico, mas se você não tem clareza normalmente é porque as ideias não estão claras”, diz. E o livro, nessa combinação de narrativas, torna-se não apenas o registro de uma memória individual, mas da tentativa de criação de uma ideia de país.
A live de lançamento do livro terá como tema “Populismo vs. Ciência: o desafio da construção de políticas públicas eficazes”. É um assunto do qual ela trata bastante ao longo de Falso Mineiro. Por exemplo, ao definir a importância da separação entre atividade científica e atividade política. “Na faculdade, em Belo Horizonte, nossa preocupação era como sair do atraso, buscar caminhos distintos foi uma motivação de toda a minha geração que, claro, seguiu orientações diferentes. No ambiente estudantil, conhecimento e militância eram a mesma coisa. Mas, com o tempo, aprendi que a política condiciona e limita a capacidade de atuar de forma independente.”
Para ele, não se trata de falta de engajamento, mas de outra definição para o termo. “Eu me engajei muito, briguei pelos temas que acreditava serem importantes, eu me envolvi com eles. Mas sempre mantendo uma independência, sem servir a conveniências políticas.”
Reflexões como essa se tornam importantes em especial no momento em que vivemos. “É uma situação anômala, de um governo anti-intelectual. Há um ataque contra a educação, a cultura, a democracia, e isso dificulta a discussão nessas áreas. Porque elas precisam ser discutidas, são problemáticas. Não concordo com a ideia de que antes tudo funcionava bem. Mas a discussão sempre girou em torno de como melhorar esses aspectos e não em torno do próprio questionamento de sua existência.”
Para Schwartzman, há uma nova geração interessante na ciência brasileira. Mas é preciso pensar em novos caminhos, em especial no que diz respeito à “fuga de cérebros”. “Houve um período de expansão na ciência acadêmica. As universidades públicas cresceram e, com isso, muitas posições e cargos foram criados. Um jovem brasileiro, após ir para o exterior, com bolsas como Capes e CNPq, voltava e encontrava posições. Mas a ciência acabou ficando muito fechada no mundo acadêmico e, depois de o sistema crescer, já não consegue absorver todos os profissionais. A questão hoje é pensar sobre como fazer ciência de maior qualidade e mais efetiva, menos voltada para si mesma. E como vincular a ela questões mais práticas, algo que envolve tanto a iniciativa privada quanto o governo”, explica.
Com a vitória de Biden nas eleições americanas, a grande pergunta para os Estados Unidos, que que interessa também ao Brasil e a muitos outros países, é se o radicalismo de extrema direita de Trump, Bolsonaro e semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi este o tema de um recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que deve ser publicado no Brasil proximamente
O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos e os costumes que defendem – mas o ataque que fazem às normas e às instituições do estado de direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais. É o respeito a estas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chaves, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán, são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular, e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram. Foi este o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e jogar seus militantes contra o Congresso, e tem sido este também o caminho buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as forças armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, quando eles anda pareciam independentes, e ameaçar desde já a não reconhecer os resultados de uma futura eleição da qual saia derrotado.
Impressiona, ao ver esta lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem, uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder, graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm problema em jogar seus escrúpulos às favas, em nome de seus interesses práticos mais imediatos. É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo da sociedade, e que afeta não só os valores mais abstratos do estado de direito e da democracia, mas coisas muito mais concretas como a tolerância à corrupção, à discriminação social e à violência. Isto talvez se explique pela noção, dada como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo do homem.
Se isto é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, esta superioridade é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso também ver se, e em que medida, o estado de direito e os regimes democráticos também podem trazer benefícios práticos para a população, que os tornem mais interessantes do que os autoritários.
Com raras exceções, basta comparar as sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais vantajosas. Nelas, as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia floresce, e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são conduzidas pelas pessoas mais competentes, e os conflitos de interesse, ao invés de serem disputados de forma sangrenta e sem limites, se resolvem de forma civilizada segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita.
Mas as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem, e padecem da “tragédia dos comuns”, que ocorre sempre que os interesses individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo prazo. Por isto, elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas por elites capazes de pensar a longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os interesses individuais e o interesse coletivo. Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo se direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil, o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética também construtiva ao bolsonarismo.
No dia 9 de fevereiro, às 11 da manhã, estarei participando deste encontro com Anne Applebaum organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso. Vejam os detalhes neste link.
Hoje é dia da prova de Linguagens e Códigos, Redação e Ciências Humanas do ENEM. Todos os anos, o ENEM mobiliza milhões de pessoas em dois dias de prova que vão determinar a possibilidade de acesso dos estudantes ao Ensino Superior. Pelo seu tamanho, complexidade logística, e pouca frequência, o ENEM sempre é um momento tenso para todos os envolvidos. Além disso, o modelo estatístico de correção da prova (a TRI) gera muitas dúvidas sobre os critérios usados para a pontuação no exame.
Esse ano o ENEM vem num contexto ainda mais complicado: a realização de uma prova em salas fechadas em todo o país no meio de uma pandemia. As escolas ainda estão fechadas, a maior parte do ensino foi feito em modalidade emergencial remota em 2020; e para além da tensão natural frente a uma prova desta importância, muitos estudantes estão inseguros de sua capacidade de fazer a prova e apreensivos com a aplicação durante a pandemia.
Apesar de sua magnitude, sabe-se que só uma parcela reduzida dos estudantes terá acesso ao Ensino Superior de qualidade por meio do ENEM. Para além de conteúdos curriculares, a realização do ENEM pressupõe uma competência essencial que é a compreensão leitora. Ou seja, que as pessoas sejam capazes de mobilizar seus conhecimentos prévios sobre determinados assuntos para compreender um texto e responder corretamente à questão indagada com base naquele texto.
Menos conhecido que o ENEM pela população em geral, mas não menos importante, o Brasil possui um Sistema de Avaliação da Educação Básica (o SAEB) que monitora a proficiência leitora e matemática no Ensino Fundamental e Médio e compõe o índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), permitindo medir a cada dois anos o progresso dos alunos por escola, município, estado, região e país. Este monitoramento é essencial para informar as prioridades das políticas educacionais.
O SAEB, que é aplicado desde os anos 90, está sendo reformulado com uma proposta arrojada, incluindo avaliações em todos os anos escolares, com mais áreas do conhecimento, maior frequência, mais alunos e escolas e passando para um modelo digital. Além disso, será utilizada uma nova matriz de avaliação para a qual serão produzidas novas questões de prova para contemplar a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
O SAEB atual tem limitações conhecidas como pontuadas por exemplo em artigo recente do Professor Francisco Soares no Linkedin, mostrando que os textos que o SAEB utiliza nas avaliações são mais simples que os de outros estudos internacionais, como o PIRLS (Progress in International Literacy Study). Contudo, ele tem o mérito de monitorar um construto fundamental que é a compreensão leitora.
A versão preliminar mais recente publicada do novo SAEB não apresenta uma matriz específica para a avaliação da compreensão leitora, mas traz um conceito de linguagens ampliado que inclui: leitura, análise linguística, produção de texto, arte, educação física e inglês. São todos temas curriculares e interessantes de serem avaliados. Ao incluir outros aspectos na avaliação de linguagem, é importante estarmos atentos para manter separada a análise da proficiência leitora. Não podemos correr o risco de perder a visibilidade deste tão importante indicador para informar as políticas educacionais.
Quem não lê está limitado em sua compreensão do mundo. A compreensão leitora é base para inserção no ambiente letrado das ideias complexas e para o discernimento da realidade, a separação entre o fato e o “fake”, a capacidade de participar plenamente da vida em sociedade e do processo democrático. É a base para a existência de um país em que todas as pessoas tenham o direito de viver com dignidade.
O início de 2021 traz a esperança das vacinas, mas também a frustração por não sabermos se terão efeito duradouro e quanto conseguirão efetivamente controlar ou reduzir o impacto da epidemia. O isolamento social, que antes parecia um sacrifício inevitável, mas passageiro, agora parece ter-se tornado parte da vida, seja porque continuará sendo necessário, seja porque a enorme expansão do uso das novas tecnologias de informação e comunicação mostrou muitas possibilidades de convivência, educação e trabalho à distância que poucos conheciam e podem ter chegado para ficar. Além da extraordinária expansão e aceleração da pesquisa médica destes últimos meses, tivemos também um grande esforço de pesquisadores nas ciências sociais tratando de entender o que significa viver à distância, comparado com as formas tradicionais de convivência física, e seu possível impacto.
O relacionamento pessoal, lembra-nos o sociólogo Randall Collins, é a base sobre a qual a vida social se constrói. Esse relacionamento, que ele chama de “ritual de interação”, tem quatro componentes: a copresença, em que as pessoas estão fisicamente próximas e podem ver, ouvir e sentir o que as outras estão fazendo; um foco de atenção comum, em que os participantes lidam com as mesmas coisas, desenvolvendo um sentimento de intersubjetividade; um sentimento ou emoção compartilhada, de alegria, tristeza, medo ou outra; e uma sintonia rítmica, que inclui o tom de voz, a atitude corporal e atividades conjuntas como dançar, cantar, bater palmas, torcer por um clube, rezar e outras.
Esses componentes, quando combinados, trazem vários resultados importantes: solidariedade social, em que as pessoas se sentem como fazendo parte de um mesmo grupo ou comunidade; energia emocional, em que as pessoas se mobilizam para desenvolver alguma atividade comum, como nos esportes, atuando com confiança e entusiasmo; a criação e o fortalecimento de símbolos coletivos – palavras, maneiras de vestir, ideias – que permitem identificar quem faz parte do grupo e quem não faz, e fazem reviver as experiências compartilhadas; e moralidade, regras sobre o que é certo e errado, também compartilhadas pelos participantes.
É pela linguagem, em suas diversas formas, que os símbolos dessas microexperiências de relacionamento se cristalizam, se difundem e criam o que os sociólogos chamam de capital social, o sentido de pertencimento a uma cultura e sociedade em que as pessoas confiam umas nas outras e nas instituições.
A tese principal de Collins é que para que a sociedade se mantenha viva é necessário que esses rituais compartilhados se repitam e se renovem, sob pena de a cultura, os conhecimentos, os valores e a própria linguagem se tornarem demasiado distantes, abstratos, e se esvaziarem. A grande esperança dos sociólogos clássicos, como o francês Émile Durkheim, era que fosse possível fazer uso da educação e dos símbolos nacionais para manter a coesão social de sociedades complexas. O que vemos hoje é que, na busca da renovação desses rituais, as pessoas muitas vezes acabam desenvolvendo culturas, identidades, valores e mesmo linguagens diferentes e conflitantes.
Mas o que acontece quando esses rituais não se podem dar, ou são substituídos por interações à distância? Isso depende de três fatores: a idade das pessoas envolvidas, a complexidade das atividades que elas devem desenvolver e a qualidade e acessibilidade das tecnologias disponíveis. Quanto mais jovens as pessoas, mais elas necessitam dos rituais de interação entre iguais, para desenvolverem sua identidade, e com adultos, para identificarem os modelos de pessoas que gostariam de ser – os role models, como dizem os sociólogos. Claro que as necessidades de uma criança aprendendo a ler são diferentes das de um adolescente ou de um jovem adulto, mas para todos é fundamental o ritual quotidiano de se reconhecer e conhecer o mundo por meio do compartilhamento de interações pessoa a pessoa, olho a olho, corpo a corpo.
Para adultos que já têm seu círculo de relações formado e sua identidade bem constituída é mais fácil trabalhar e estudar à distância, ainda que, isolados, a capacidade de criar e a produtividade tendam a cair. Na educação, os recursos tecnológicos podem trazer uma grande contribuição ao tornar disponíveis bons materiais pedagógicos e sistemas inteligentes de capacitação e avaliação individualizados, mas não substituem o contato do aluno com o professor, a vida social de um colégio ou universidade, ou, na pesquisa, o desenvolvimento de conhecimentos, valores e atitudes tácitas que não se codificam em manuais nem em algoritmos sofisticados.
Boas tecnologias, que facilitam a comunicação e simulam a interação do mundo real, podem ajudar muito, mas ainda estão longe de poder substituir a necessidade da realimentação da vida e dos sentidos que trazem as relações pessoais. Ao contrário, quando mais condições tivermos de trabalhar sozinhos e encontrar nossos próprios caminhos, mais necessidade teremos de estar próximos de outras pessoas e compartilhar o que aprendemos e quem somos.
(versão revista de texto publicado em O Estado de São Paulo, 11 de dezembro de 2020)
Dizem que a vida vai voltar ao normal. E em 2021 o Ministério da Educação pretende começar a implantar o novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com duas modificações importantes. A primeira, desde já, é o “Enem seriado”, em que os alunos do ensino médio serão avaliados a partir do primeiro ano, com uma nova versão da Prova Brasil. A segunda, a partir de 2024 ou 2025, é a adaptação do Enem à reforma do ensino médio, que prevê que os estudantes possam escolher seus itinerários de formação. Como a maioria dos candidatos ao Enem não vem diretamente do ensino regular, a prova geral vai continuar existindo, ao lado do sistema seriado, divida em duas partes: uma comum, para todos os estudantes, e outra diferenciada, para os diferentes itinerários (no sistema seriado, a previsão é que a avaliação dos itinerários opcionais seja feita no terceiro ano)
Imagino que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) tenha estimado o custo desse novo formato, a maneira como os resultados das avaliações seriadas vão ser utilizados para melhorar a qualidade do ensino e como compatibilizar os dois sistemas para que um não se torne mais valorizado do que o outro. Digo “imagino” porque não encontrei nenhum documento oficial que explique mais em detalhe as razões e os custos dessa mudança.
Tomara que o Ministério da Educação (MEC) saiba o que está fazendo, mas há pelo menos três coisas importantes que precisariam ser discutidas antes de embarcar nesse caminho sem volta. A primeira é se precisamos realmente continuar tendo um vestibular nacional unificado como o Enem. Quando o exame foi criado, em 1998, o objetivo era ter um marco de referência de qualidade para o ensino médio brasileiro, como a Prova Brasil. Em 2009 ele se transformou em vestibular nacional e as universidades renunciaram à sua autonomia e responsabilidade por selecionar seus estudantes. A justificativa foi que assim os estudantes não precisariam mais se inscrever em diferentes concursos e poderiam se candidatar a vagas em qualquer parte do país.
Mas o Enem transformou o ensino médio num grande cursinho de preparação para a prova, com resultados totalmente previsíveis – as vagas mais disputadas são quase todas ocupadas por filhos de pais de nível universitário que estudaram em escolas privadas e em algumas poucas escolas federais. O Brasil não é o único país que tem um exame desse tipo e em todo mundo se discute, hoje, se esses exames realmente medem o que pretendem – ou seja, a capacidade de o aluno adquirir uma boa formação e se transformar em bom profissional e cidadão – e se não existem formas melhores de tornar o acesso ao ensino superior melhor e mais equitativo.
No Brasil cerca de metade dos alunos que entram no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o mecanismo de escolha de cursos do Enem, são cotistas, mas as notas de corte para os cursos são semelhantes para cotistas e não cotistas, o que significa que elas não beneficiam quem realmente precisaria. A tendência, ao menos nos Estados Unidos, é reduzir o peso dos resultados em provas padronizadas como o ACT e fazer uma seleção mais rica e complexa dos estudantes, tomando em conta capacidade de liderança, motivação, experiência escolar, vínculo com suas comunidades de origem, etc. Essa seleção precisa ser feita pelas universidades, até para fortalecer seus vínculos com a população das regiões onde estão.
A segunda questão é se a prova comum e os itinerários formativos que o novo Enem pretende implementar estão alinhados com as intenções da reforma do ensino médio iniciada em 2017. Se a prova comum for um resumo de tudo o que estava no currículo tradicional, do português à física, passando pela filosofia e sociologia, o Enem continuará mantendo o ensino médio brasileiro na camisa de força do currículo único. E se as provas específicas, dos itinerários formativos, continuarem submetidas à esdrúxula classificação de áreas de conhecimento adotada pelo MEC, vão retirar a força da principal inovação do novo ensino médio, que são os itinerários. A sugestão é tornar a prova geral mais leve, semelhante ao Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), de competências em leitura, matemática e raciocínio científico, e alinhar os itinerários com as áreas de formação mais próximas ao mundo da educação superior e do trabalho, adotadas de forma semelhante em outros países: ciências exatas, matemática e tecnologia (STEM); ciências biológicas e da saúde: ciências e profissões sociais; e humanidades, letras e artes.
A reforma do ensino médio abriu também a possibilidade de um “quinto itinerário”, de capacitação técnica para quem precisa entrar logo no mercado de trabalho, e é necessário associar ao Enem sistemas adequados de certificação pelo menos para as áreas de formação técnica de maior demanda – enfermagem, administração, informática, agropecuária, segurança no trabalho.
A terceira questão é se não seria o caso de criar uma avaliação individualizada ao final do ensino fundamental, aos 15 anos, como faz a Inglaterra com o exame GCSE. O chamado “fundamental II” é o patinho feio da educação brasileira, é aí que os eventuais resultados de melhora dos resultados do antigo primário se perdem. Um exame desse tipo ajudaria a estabelecer um padrão de qualidade para esse nível e orientar os estudantes para que encontrem seus caminhos nos anos seguintes.
Investir e exigir mais da educação fundamental e abrir o leque de alternativas no ensino médio, quebrando o gargalo do Enem, esse parece ser o caminho que precisamos.
Vendo as imagens do povo dançando nas praças festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país em uma guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava ocorrendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia. Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, havia rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.Oito anos depois, sem ter conseguido fazer tudo que prometia, era normal que Obama não conseguisse fazer seu sucessor. Mas a eleição de Trump não foi uma simples alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam ter sido postos à margem da sociedade americana, e que subitamente mostraram suas garras. Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam, agora se tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, foi o ataque às instituições mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema eleitoral.
A vitória de Biden mostra que nem tudo está perdido, mas deixa um gosto amargo, porque a “onda azul” foi menor do que se esperava, e Biden provavelmente terá ainda menos condições de cumprir o que promete do que Obama, tanto pela oposição sistemática que receberá como por um contexto internacional menos favorável, com a ascensão inevitável da China. A democracia americana sobreviverá, mas longe do vigor que a era de Obama parecia prenunciar. A história americana recente é semelhante à de muitos outros países, inclusive o Brasil, de surgimento de lideranças radicais que conseguem forte apoio popular e partem para o assalto às instituições democráticas, e a dificuldade dos partidos moderados de prevalecer. O que explica a força destes movimentos antidemocráticos, e a fragilidade das democracias?
A pergunta, na verdade, deve ser posta ao contrário, porque a democracia é uma flor frágil, e é quase um milagre que tenha sobrevivido em tantos lugares até aqui. Em um livro recente, “O ocaso da democracia” a jornalista americana Anne Applebaum, casada com Radosław Sikorski, também jornalista e político de destaque dos governos democráticos da Polônia, conta a história da conversão à extrema direita de muitos de seus amigos e colegas que, como os dois, haviam se engajado na oposição ao estalinismo e na esperança de uma nova era democrática para a Europa Oriental e Estados Unidos, e viram em seu lugar surgir os regimes de Jarosław Kaczyński na Polônia, Viktor Orbán na Hungria e Donald Trump nos Estados Unidos. Cada história é diferente, combinando em diversas doses oportunismo, ambição e impaciência com a lentidão dos regimes democráticos em produzir os resultados esperados. Mas existem problemas mais gerais. A ideia de que a democracia, combinada com a valorização do mérito e da economia aberta e competitiva, é a melhor forma de governo, perde força quando ela se torna disfuncional, com muitas pessoas se sentindo excluídas de seus benefícios. E a democracia não consegue dar respostas aos anseios das pessoas por identidade pessoal, comunitária ou nacional. Ao se opor ao surgimento da extrema direita, a oposição liberal, nos Estados Unidos e outras partes, ao invés de tentar reconstruir o consenso nacional ao redor dos valores democráticos e do interesse comum, muitas vezes dá prioridade às políticas dos direitos e de identidade de grupos minoritários e setores marginalizados e discriminados, reduzindo ainda mais o espaço para a democracia consensual.
A democracia, para sobreviver, precisa de lideranças capazes de interpretar o interesse geral, de instituições capazes de resistir aos assaltos dos tiranos de plantão, e de uma população capaz de entender que a política é mais do que a expressão de suas ansiedades e frustrações. Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos eleitores mais jovens. Anne Applebaum também termina seu livro falando de uma nova geração que busca novos caminhos, além das políticas exauridas da democracia complacente e da extrema direita enlouquecida. O futuro é incerto, mas há esperança.