Etanol a preço de banana

Coskata, uma companhia norte-americana financiada pela General Motors e outras fontes, anunciou que desenvolveu uma tecnologia para a produção de etanol a partir de qualquer material orgânico ao preço de menos de um dólar por galão, que é parecido com custo do etanol produzido no Brasil, e bem abaixo do produzido nos Estados Unidos a partir do milho. A notícia é importante para o Brasil porque, se confirmada, ela poderia ter um forte impacto no projeto de transformar o país em um fornecedor internacional deste combustível. O artigo da revista Wired descrevendo o processo pode ser lido aqui,

Ainda sobre o Sistema Unificado de Saúde

Mauro Osório, comentando minha nota anterior sobre a CPMF e o SUS, diz que “estranhei não ver em sua análise uma avaliação dos benefícios que o secretário Osmar Terra aponta como o SUS já tendo gerado. Ou ele não é tão ruim como você deduz na sua análise, ou os dados do Osmar estariam errados.”

Na verdade, nem uma coisa nem outra. As estatísticas de mortalidade infantil e expectativa de vida tem melhorado no Brasil, mas não por causa do SUS. O que explica esta melhoria são coisas como o acesso a água tratada nas cidades, o uso do soro caseiro no controle da diarréia infantil e as grandes campanhas de vacinação. Tradicionalmente, estas coisas, próprias da medicina preventiva, eram feitas pelo Ministério da Saúde, enquanto que a medicina curativa, muito mais cara, era proporcionada pelo Ministério da Previdência. Não era somente uma divisão burocrática: o Ministério da Saúde dependia do orçamento geral, enquanto que o atendimento médico era financiado com as contribuições de empregados e patrões dentro do sistema previdenciário. O que ocorreu foi que, ao mesmo tempo em que a Constituição de 1988 decretava o direito universal ao atendimento médico pelo sistema unificado, os serviços médicos deixaram de ser financiados com os recursos da previdência, que já não davam conta de cobrir os gastos de aposentadoria e pensões. A crise financeira da saúde faz parte da crise da previdência, e não é possível equacionar uma sem equacionar também a outra.

Mauro Osório nos dá um bom exemplo de gestão do sistema previdenciário, que infelizmente não teve continuidade, e todos os dias ouvimos histórias de horror de hospitais sem recursos mínimos, filas intermináveis, contaminações hospitalares, ambulâncias que despejam doentes do interior na porta dos hospitais das capitais, médicos que não comparecem ou cobram por fora…. O que significa que uma boa administração pode fazer diferença, mas não existe nenhum sistema de informações que indique qual é o desempenho dos serviços médicos proporcionados diretamente pelo SUS ou contratados do setor privado, e nenhum mecanismo que estimule premie o bom uso dos recursos públicos, e desestimule ou puna seu uso incompetente, ainda que honesto e bem intencionado.

O que fazer com o SUS? Existem muitas propostas, várias delas bem interessantes, disponíveis por exemplo em documento recente do IPEA, Uma Agenda para o Crescimento Econômico e a Redução da Pobreza, organizado por Paulo Mansur Levy e Renato Villela, de novembro de 2006, que recomendo. Meu propósito aqui é somente insistir em que o SUS não pode ser considerado mais uma jabuticaba, que é excelente e só existe no Brasil. É um sistema com graves problemas de concepção e gestão, de custos crescentes e aparentemente incontroláveis, e que não pode ser discutido unicamente em termos de seu financiamento, que, por mais CPMFs que hajam, nunca será suficiente.

O fim da CPMF e o melhor sistema de saúde pública do mundo

Nas discussões sobre a CPMF, falou-se muito da necessidade de garantir os recursos para o financiamento do Sistema Unificado de Saúde, o SUS, que, na opinião de Osmar Terra, Secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, em artigo no O Globo de 1/1/2008, é “a proposta mais avançada de política pública de saúde existente no mundo”. Pena que não tem dinheiro e funciona tão mal, mesmo quando o dinheiro existe. Esta idéia da maravilha que é o SUS é muito comum entre os que trabalham na área, mas não passa de um mito, igualzinho ao de que o Brasil teria o sistema previdenciário mais avançado do mundo, que se dizia antes, mas que hoje ninguém mais fala. A crise de financiamento trazida pelo fim da CPMF deveria ser uma boa oportunidade para começar a desmontar este mito, e encarar de frente os graves problemas de saúde pública do Brasil.

O principal problema com o “avanço” do sistema de saúde, assim como o da previdência, é que eles prometem uma cobertura universal e generosa para a qual não há nem haverá recursos. Na Constituição de 1988, estava previsto que o sistema de saúde seria coberto com 30% dos recursos federais do sistema da previdência social, os dois financiados pelas contribuições dos trabalhadores, empresas e governo. Quando o sistema previdenciário começou a ficar insolúvel, cessou a transferência de recursos para a saúde, que saiu da previdência e se socorreu na CPMF para continuar funcionando, embora de forma precária. Na medida em que a população envelhece e a medicina avança, os custos do atendimento médico tendem a crescer, com medicamentos e equipamentos cada vez mais complexos, tempos prolongados de internação, e profissionais de saúde que querem ser remunerados de acordo com seus esforços e sua capacidade. Mesmo os paises ricos que tem sistemas universais de saúde pública, como a Inglaterra ou a França, embora gastem cerca de 10% do PIB em saúde, encontram dificuldades crescentes para manter os sistemas funcionando. Nos Estados Unidos, que gasta cerca de 15% do PIB com saúde, as dificuldades são ainda maiores. O Brasil gasta menos de 4%. Quanto a sociedade estaria disposta a gastar? Tirando de onde? Não há solução fácil para isto, mas um bom sistema de saúde, da mesma forma que um bom sistema de previdência social, seria aquele que focalizasse os poucos recursos públicos disponíveis nas populações mais carentes e nos atendimentos mais críticos, e estimulasse a que a maior parte possível da população fosse coberta por sistemas de seguro financiados pelos contribuintes ou seus empregadores.

Além disto, a organização do sistema SUS é inviável. O princípio é que seria um sistema descentralizado, controlado pelos governos locais e conselhos comunitários, que deveriam zelar pelo bom atendimento dos serviços, mas não pela administração de recursos, que fica basicamente com o governo federal. Um sistema em que um lado só gasta, e outro paga a conta, não tem como dar certo, já que não há interesse por parte dos que gastam em usar eficientemente os recursos disponíveis. A idéia por trás deste sistema é que os recursos públicos para a saúde seriam infinitos, e apareceriam na medida em que a sociedade, através dos conselhos e administrações locais consiga se mobilizar e aumentar sua demanda.

Existem muitos outros problemas com o sistema SUS, entre os quais o do relacionamento do sistema público com o setor privado de saúde, que não há como discutir aqui. O ponto principal é que estes problemas, distorções e mal funcionamento não são acidentes de percurso e perturbações menores de um sistema que seria “o mais avançado do mundo”, e sim conseqüências inevitáveis de um sistema ambicioso e mal concebido, que precisa ser urgentemente revisto.

O ENEM brasileiro e o GCSE inglês

Enquanto no Brasil se comemora a expansão do ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio, com 2.7 milhões de participantes em 2007, a Inglaterra abandona o projeto de criar um Diploma Geral para o ensino médio associado ao “General Certificate of Secondary Education” (GSCE), que deveria certificar a obtenção de competências gerais dos estudantes de nível médio naquele país. Quem está errado?

A razão pela qual os ingleses estão abandonando o diploma geral, segundo a notícia da BBC, é que ele poderia entrar em conflito e desqualificar uma série de diplomas profissionais e técnicos que estão sendo promovidos pelos diversos ministérios daquele país. O ENEM foi saudado, inclusive por mim, como uma importante tentativa de estabelecer um padrão de qualidade para o ensino médio brasileiro que não existia até então, cumprindo uma função semelhante à do SAT Reasoning Test nos Estados Unidos e os exames nacionais europeus como o Abitur alemão e o Baccalauréat francês. Eles buscam medir habilidades genéricas, associadas sobretudo à capacidade de leitura, escrita e de uso de matemática, consideradas criticas para todo o tipo de formação.

O problema com estes tipos de exame (mesmo supondo que eles sejam tecnicamente bem feitos, o que não é claro no caso do ENEM) é que eles dividem os estudantes em duas categorias: os acadêmicos e generalistas, que vão para as universidades e entram nas carreiras mais prestigiadas, e os técnicos e especialistas, menos capacitados, que ficam em atividades de menor prestígio e remuneração. A maioria dos paises europeus, como a Alemanha e a França, estabeleceu estas divisões muito tempo atrás (o Abitur alemão é do século XVIII), e foram muitas vezes bem sucedidos em proporcionar uma capacitação de qualidade para os que seguiam o caminho das profissões técnicas, sobretudo nos países germânicos. Em muitos outros paises, no entanto, e inclusive na América Latina, esta divisão acabou criando um sistema educacional divido entre um ensino para a elite e outro para o povo, em geral de péssima qualidade. Hoje, a tendência nos paises europeus é substituir os antigos sistemas duais por uma pluralidade de exames e qualificações, ao mesmo tempo em que se reconhece que todos eles requerem níveis adequados de competência de leitura, escrita e matemática.

No Brasil se fala muito em ensino técnico, de vez em quando se tomam algumas iniciativas, mas até hoje não começamos a discutir a sério que tipo de formação o ensino médio deveria proporcionar. Se os ingleses estão certos, pareceria que o ENEM está na contramão.

Adiós Muchachos

Leio, com muito atraso, “Adiós muchachos: una memoria de la revolución sandinista” de Sérgio Ramírez, publicada em 1999. Sérgio Ramírez é um importante escritor nicaraguense, que participou ativamente da revolução sandinista desde seu começo, coordenando o que ficou conhecido como o “grupo dos 12”, de apoio à Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN), e integrou a junta de governo de 1979 a 1984, quando foi eleito vice-presidente com Daniel Ortega. Em 1996, depois de criar o Movimiento de Renovación Sandinista, de rompimento com o FSLN, foi candidato derrotado à presidência da república. Deste então, ao que consta, se dedica integralmente ao trabalho de escritor.

A história da revolução sandinista é como tantas outras. Havia na Nicarágua uma ditadura terrível e corrupta, apoiada pelos americanos, e a população pegou em armas para derrubá-la, em nome de nobres ideais, e à custa de muitas mortes e sacrifícios. Alguns anos depois, veio o fracasso, causado em parte pelo contexto internacional desfavorável, e em parte pelo fracasso das políticas sociais e econômicas do novo regime, assim como pela deterioração ética e moral dos princípios humanistas que haviam levado tantas pessoas à morte na guerra civil.

Quanto que o fracasso da revolução se explica pelas pressões externas, e quanto pelos próprios problemas? Não há dúvida que a atuação do governo Reagan, financiando os “contras” e bloqueando a Nicarágua, causou um grande dano. Mas Ramirez mostra também como a revolução já continha, desde o início, o germe de sua destruição. A começar pelo poder dos mortos sobre os vivos. Como diz ele,

“El que ningún mérito pudiera compararse entre los vivos y el mérito mismo de la muerte, fue toda una filosofia que al momento del triunfo de la revolución asumió un peso ético aplastante. Los únicos heroes eran los muertos, los caídos, y a ellos se lo debíamos todo, ellos habian sido los mejores, y todo lo demás, referente a los vivos, debía ser reprimido como vanidad mundana”(p. 47).

E, mais adiante:

“Al triunfar la revolución, ser un buen militante significó estar dispuesto a acatar el código de conducta establecido por los muertos: pero desde la jerarquía del partido, este código pasó a ser interpretado por los vivos. Fue cuando comenzó a burocratizarse la santidad”.

É esta combinação de uma ética absoluta da santidade, típica da teologia da libertação, com o poder absoluto da hierarquia, típica do leninismo marxista, que vai marcar a atuação do governo sandinista em seus poucos anos de existência. Tudo era possível fazer, os inimigos deviam ser afastados e liquidados, e quem não estava ao lado da revolução era aliado do imperialismo e da burguesia. Ramirez lista uma série de erros fundamentais cometidos pelo governo, ao tentar coletivizar as terras, alienando os camponeses; ao tentar destruir a cultura dos índios miskitos; ao tentar comandar a economia por decreto, criando inflação descontrolada e desabastecimento; ao tentar empreender projetos grandiosos e inviáveis de estradas e aeroportos (a começar pelo grande aeroporto para operar os caças MIG que viriam da Rússia e nunca chegaram). Tudo isto criou um terreno fértil para os Contra, que não tinham somente o apoio da CIA, mas também dos camponeses e dos indígenas, sem falar nos empresários e nas classes medias assustados e acuados.

No final, quando tudo estava perdido e era a hora de passar o governo para as mãos de Violeta Chamorro, veio “la piñata”, a apropriação de propriedades e empresas públicas e nacionalizadas pelo movimento sandinista e seus lideres no momento de deixar o poder. Ramírez fala de suas longas discussões com Ortega e outros companheiros sobre a questão do direito à propriedade, que era visto como algo inaceitável desde a ética das catacumbas, mas que acabou se transformando na base de sustentação do novo Ortega que, anos mais tarde, voltaria a ser eleito presidente da Nicarágua.

Dentro do movimento sandinista, primeiro, e fora dele depois, Ramírez fez o possível para fazer da Nicarágua uma sociedade que respeitasse a memória e os valores de seus mortos, mas que também evitasse a ditadura, a onipotência e a corrupção dos vivos. A lição que fica, me parece, é que isto só pode ocorrer, quando ocorre, em uma verdadeira democracia.

Sérgio Fausto, Lula e a tentação do hiper-presidencialismo

Acho difícil não interpretar a defesa veemente de Chaves feita dias atrás pelo Presidente Lula como o início da campanha para permanecer no poder indefinidamente, através de alguma reforma constitucional ou plebiscito. Segundo Lula, a única crítica que se pode fazer a Chaves é de excesso de democracia, dadas as vezes em que ele realizou e ganhou eleiçoes e plebiscitos. Lula não é ingênuo, e sabe muito bem que democracia não é só mobilização popular e votos, mas também instituições – legislativo e judiciário independente, pluralidade partidária, liberdade de expressão, garantia dos direitos das minorias. Presidencialismo plebiscitário tem outro nome: fascismo. Pelo critério de Lula, Mussolini, Hitler, Fujimori e Perón, sem falar em Getúlio Vargas, seriam também grandes democratas.  Se ele prefere ignorar isto, não deve ser à toa. Não há dúvida, também, que esta ambição continuista mal-disfaraçada se apóia na desmoralização do legislativo, que atingiu níveis impensáveis.


No dia 11 de novembro, poucos dias antes do lançamento da campanha de reeleição de Lula, Sérgio Fausto publicou no O Estado de São Paulo um excelente artigo em que analiza muito bem o tema  do hiper-presidencialismo.  O artigo está reproduzido abaixo:

VADE RETRO

Um espectro ronda as Américas: a deformação dos regimes democráticos em hiper-presidencialismos aberta ou veladamente autoritários. O espectro materializou-se por completo na Venezuela, assumindo tendências totalitárias, com a formação de milícias leais ao presidente Chávez, doutrinação e mobilização ideológicas em larga escala, etc.

O hiper-presidencialismo, no entanto, dá sinais de sua existência mesmo nos Estados Unidos, berço da democracia no continente, onde o governo Bush, em seus dois mandatos, promoveu a maior concentração de poderes em mãos do Executivo desde o New Deal de Roosevelt (e para fins bem menos proveitosos). Ali, o que era exceção tornou-se quase rotina: legislação por decretos presidenciais, utilização dos chamados “signing statements” para isentar a presidência do pleno cumprimento de leis aprovadas pelo Congresso, partidarização do aparelho do Estado, para não falar no cerceamento de liberdades individuais em nome da guerra contra o terror.


Se é verdade que o fenômeno alcança os Estados Unidos, que portanto não estão em boa situação para ensinar democracia a ninguém, é na América Latina que o hiper-presidencialismo encontra seu terreno mais fértil. Em primeiro lugar, por razões históricas: afinal, caudilhos, líderes populistas e generais-presidentes foram freqüentes “en nuestra América”. Aqui, a personalização do poder e a relativa fraqueza do Legislativo e do Judiciário frente ao Executivo têm sido antes a regra que a exceção histórica. Em segundo lugar, por razões estruturais, isto é, a persistência de amplos contingentes da população em condições de pobreza, tornando-os suscetíveis aos apelos e benefícios do governo de plantão. Finalmente, por razões conjunturais, em particular o fato de que a recuperação das sucessivas crises da segunda metade dos anos 90 resultou, num ambiente externo favorável, na ampliação das receitas fiscais. Nas condições estruturais e institucionais da região, esses recursos financeiros adicionais se traduzem quase que diretamente em maiores recursos de poder dos presidentes eleitos.

Além da Venezuela, a presença do hiper-presidencialismo salta aos olhos na Argentina. Lá a concentração de poderes em mãos do presidente Nestor Kirchner só encontra paralelo histórico, afora as ditaduras, no primeiro governo de Perón. Legislação aprovada por um congresso subserviente lhe permite modificar a lei orçamentária, redirecionando gastos com uma simples canetada. O fenômeno está presente também no Equador e na Bolívia, embora neste país o hiper-presidencialismo esteja rapidamente cedendo lugar ao impasse político-institucional. No Brasil e na Colômbia, também é possível identificá-lo, apesar do melhor funcionamento das instituições democráticas. No nosso caso, basta ver o uso e abuso das medidas provisórias e o quase total controle do Executivo sobre a agenda do Congresso. Entre os países mais relevantes, a exceção fica por conta do Chile.

O hiper-presidencialismo compreende, em graus variados, desequilíbrios cada vez maiores nas relações entre os poderes, em favor do Executivo e em prejuízo do Legislativo e do Judiciário, utilização do Estado para fins partidários, intervenção governamental nos meios de comunicação e não raro limitações às liberdades civis e políticas. Sintoma evidente da doença é a quantidade crescente de países em que a ampliação do número permitido de reeleições tornou-se tema político de primeira ordem, obviamente por coação, indução ou sugestão dos maiores interessados.

Não bastasse a concentração de poderes, os hiper-presidentes pretendem perpetuar-se no cargo. Se não pretendem explicitamente, sentem comichões de fazê-lo. Seguem, assim, a lição de Maquiavel de que não é suficiente conquistar o poder, senão que é necessário conservá-lo e ampliá-lo, tanto quanto possível, importando apenas a eficiência dos meios para obtenção dos fins. Essa máxima é incompatível com a democracia, que supõe controles sobre o Executivo, equilíbrio na competição política, alternância no poder e ampla liberdade de organização e expressão políticas.

No passado, as democracias na América Latina morreram de morte matada. Ainda que houvesse um processo de crise interna, o desenlace classicamente assumia a forma de um golpe militar. Hoje os riscos são de uma morte mais lenta, por degeneração progressiva, mais ou menos veloz, uma morte em vida, por assim dizer, em que se preservam somente as aparências de vitalidade. O certo é que se o hiper-presidencialismo não encontrar resistência à altura, a democracia não sobreviverá para valer.

Por isso, todo repúdio é pouco à tese de permitir uma terceira reeleição sucessiva ao presidente Lula. Seria um retrocesso incalculável e aproximaria o Brasil do grupo de países latino-americanos que descem em marcha batida ou zigue-zagueando o plano inclinado do autoritarismo político e do arcaísmo econômico. O Brasil assumiria a vanguarda do atraso, quando pode exercer uma liderança capaz de pesar em favor da democracia e do desenvolvimento da região.

Fez bem o presidente Lula em negar o patrocínio dessa tese e determinar que seus auxiliares mais próximos também o fizessem, embora em todas as declarações, até aqui, o acento tenha recaído sobre a inconveniência política, mais do que sobre a questão de princípio. Assim, não nos iludamos: o repúdio da sociedade deve ser proporcional à tentação de um terceiro mandato. Proporcional e reiterado, pois ainda há tempo pela frente e a tentação é enorme para um partido que se vê sem candidato competitivo nas próximas eleições presidenciais e já deu mostras de sobra de uma grande vocação para servir-se do poder.
(Publicado em  O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 2007)

Ensino de ciências e educação básica

A Academia Brasileira de Ciências está divulgando um documento entitulado “Ensino de ciências e educação básica: propostas para superar a crise”, escrito por um grupo de trabalho do qual participei,  cujo texto completo está disponível aqui. Este documento reflete uma preocupação recente dos membros da Academia com os temas da educação, que levou também à criação de um outro grupo de trabalho sobre educação infantil.


Diz  este documento, na introdução:


O desenvolvimento social, científico e tecnológico do Brasil requer uma reformulação profunda da estrutura educacional em nosso país. A reforma da educação superior foi discutida em documento anterior da Academia Brasileira de Ciências (“Subsídios para a Reforma da Educação Superior”), que propõe uma reestruturação dos cursos de graduação, adiando a especialização, promovendo a interdisciplinaridade dentro de uma estrutura de ciclos, e a expansão das matrículas através da diversificação das instituições de ensino superior.
A necessidade imperiosa de melhorar o ensino básico no Brasil e, em particular, o ensino de ciências, é o tema do presente documento. O ensino adequado de ciências estimula o raciocínio lógico e a curiosidade, ajuda a formar cidadãos mais aptos a enfrentar os desafios da sociedade contemporânea e fortalece a democracia, dando à população em geral melhores condições para participar dos debates cada vez mais sofisticados sobre temas científicos que afetam nosso quotidiano.
A universalização desejada do ensino fundamental, alcançada através de um esforço de vários governos, e que se constituiu portanto em uma verdadeira política de Estado, foi acompanhada de uma deterioração crescente desse nível de ensino, levando a uma situação que prejudica o desenvolvimento do Pais, corrói a democracia, e gera um grande número de jovens com péssima formação e com alternativas limitadas de inserção na sociedade brasileira.
A correção do quadro atual requer um esforço continuado que deve ser, por isso mesmo, resultante de uma política de Estado, fruto de um consenso sobre o caráter altamente prioritário dessa ação. Entre as medidas a serem adotadas, destacam-se como imprescindíveis o aumento dos investimentos em educação para no mínimo 6% do PIB, a melhoria substancial da remuneração dos professores, o aumento da duração do turno escolar e a efetiva alfabetização infantil. Sem elas, todas as outras propostas do documento terão efeito reduzido na transformação da educação básica em nosso país.

Pobreza, população e desigualdade

Participei no dia 5 de novembro, em Belo Horizonte, do “Seminário sobre população, pobreza e desigualade”, organizado pela Associação Brasileira de Estudos Poulacionais e a Comissão Nacional de População e Desenvolvimento. Meu painel tinha o nome de “Dinâmica populacional e as oportunidades de políticas públicas”, e foi coordenado por Eduardo Rios Neto.

Dos três apresentadores, Eduardo Pereira, do Ministério da Previdência Social, foi o único que tratou efetivamente de dinâmica populacional. Ele mostrou que, com o envelhecimento da população, o sistema previdenciário brasileiro é insunstentável a longo prazo, porque haverá um número crescente de velhos recebendo benefícios para um número decrescente de jovens. E que isto não muda com a economia crescendo, porque, se tiver mais gente pagando a previdência hoje, haverá mais gente também recebendo depois, e vivendo muito mais tempo. O Ministério preparou estes dados, na forma de várias simulações, para apresentar ao Forum Nacional da Previdência Social, aonde estão representados os sindicatos, aposentados, pensionistas, empregadores e o governo federal, e, pelo que parece, ninguém lá gostou da tese de que os benefícios da previdência deveriam mudar. O problema é que os principais interessados na reforma, nossos filhos, que vão ter que pagar a conta ou conviver com um sistema previdenciário falido, não estavam presentes, e não havia ninguém no fórum, aparentemente, que defendesse seus interesses.

O outro apresentador foi Pedro Olinto, do Banco Mundial, que antecipou os principais resultados de uma avaliação que o Banco está fazendo de um grande número de programas de tipo Bolsa Família que o Banco vem apoiando e incentivando em um número crescente de países, inclusive o Brasil. O ponto principal foi mostrar como estes programas são, em geral, bem focalizados, e de fato melhoram em alguma medida as condições de vida das populações mais pobres. O que me pareceu mais novo foi a conclusão de que os programas não tem impacto sobre o acesso à escola em países em que a quase totalidade da população já está na educação básica, como no Brasil; e que o impacto sobre a qualidade da educação parece ser inclusive negativo. Eu já vinha dizendo e discutindo isto há vários anos, e fico contente em ver que agora o Banco Mundial reconhece isto. Aliás, se entendi bem, a avaliação do bolsa família brasileiro feita por Eduardo Rios-Neto mostra a mesma coisa.

Em minha apresentação, eu mostrei dados da PNAD sobre a evolução da educação brasileira nos diferentes níveis, e discuti um pouco sobre cada um deles e sobre as prioridades. Um dos dados que mostrei foi como o acesso ao ensino médio, que havia crescido muito na década de 90, parece estar estacionando a um nível muito baixo, inferior a 60% de cobertura nas regiões mais ricas (veja o gráfico), quando deveríamos estar caminhando para os 100%, e isto sem falar na qualidade, que, por tudo que sabemos, está muito mal. A expansão do ensino superior, enquanto isto, parece ser a prioridade do governo federal, sem preocupação aparente com sua qualidade, o que parece ser um erro evidente de foco.

Nova edição de “Bases do Autoritarismo Brasileiro” (2014-2015)

 

Uma nova edição de Bases do Autoritarismo Brasileiro deve ser publicada pela Editora da Unive rsidade de Campinas em 2014/2015.  O livro  foi publicado anteriormente pela Publit Soluções Editorial em formato eletrônico, que não está mais disponível.

O livro mantém o texto integral da edição de 1988, com uma pequena nova apresentação, aonde observo que, quase vinte anos percorridos, uma das principais proposições do livro pareceria ter se cumprido. O que procurei mostrar em 1973 era como a dinâmica da vida política brasileira tinha tido sempre, uma característica central, a relativa marginalização do centro econômico e mais organizado da “sociedade civil” no país, localizado predominantemente em São Paulo, e o núcleo do poder central, muito mais fixado no eixo Rio de Janeiro – Brasília, em aliança com as oligarquias políticas tradicionais dos estados mais pobres. Mais do que diferenças geográficas, que têm sua importância, o que me importava eram as diferentes formas de organização da vida econômica, social e política que coexistiam e disputavam espaço no país.

No prefácio de 1988 eu dizia que “foi de São Paulo que surgiram as pressões sociais mais fortes contra os poderes concentrados no Governo federal, tanto por parte de grupos empresariais quanto pelo movimento sindical organizado; é em São Paulo, em última análise, que se joga a possibilidade de constituição de um sistema político mais aberto e estável, que possa dar ao processo de abertura uma base mais permanente”.

A partir de 1995, com os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio da Silva e as candidaturas presidenciais de José Serra e Geraldo Alckmin, o centro de gravidade da política brasileira se transfere para São Paulo. Nas eleições de 1994 e 1998, a oposição entre PSDB e PT se aproximou bastante do que poderíamos descrever como a disputa entre dois partidos políticos modernos, um com mais apoio nas classes médias e no empresariado, outro com mais apoio nos sindicatos e nos movimentos sociais independentes. Desde então, no entanto, os partidos políticos perderam substância, o clientelismo se ampliou, o sindicalismo e os movimentos socais independentes desapareceram ou foram cooptados, e boa parte das elites patrimonialistas mantiveram seu poder de sempre, agora como meras cleptocracias. O período “moderno” da política brasileira teve fôlego curto, e a política antiga está demonstrando ter uma enorme capacidade de sobrevivência e metamorfose. Fica para os eleitores a pergunta de por quê isto é assim, e o que podemos esperar para o futuro.

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