Milu Villela: o remédio necessário

Milú Villela, entre outras coisas Presidente do Faça Parte – Instituto Brasil Voluntário, escreveu recentemente o seguinte artigo, divulgado pelo ADITAL – Notícias da América Latina e Caribe:

O estudo divulgado pela Unesco que mostra o Brasil como um dos países com maior índice de repetência no ensino fundamental no mundo não poderia chegar em melhor hora. O indicador, que nos coloca ao lado de Burundi, Moçambique e Camboja, é o alerta que faltava para a corrida eleitoral que se avizinha.

Definitivamente, o problema está na arena. Não podemos mais suportar ver a educação colocada em segundo plano no debate político, como ocorre há décadas. A questão, se não quisermos continuar perdendo competitividade num cenário global em que o conhecimento é fator decisivo, tem necessariamente que ocupar o centro das preocupações daqueles que postulam comandar o país nos próximos quatro anos e no futuro de longo prazo.

É bom começarmos a nos debruçar sobre os dilemas do ensino com a mesma voracidade com que nos entregamos ao exame de temas como juros, câmbio, déficit público e outros assuntos correlatos de economia, que têm lugar certo no altar dos políticos, da mídia e dos agentes de mercado toda vez que nos colocamos diante do processo de escolha de nossos dirigentes.

Mais que nunca temos que ter presente que só um sistema educacional forte, alinhado com as demandas contemporâneas, pode garantir a construção de um modelo sustentável de crescimento e de melhoria das condições sociais. Países como Coréia do Sul, Irlanda, Índia e o nosso vizinho Chile já nos deram lições suficientes sobre o assunto.

O caso da Coréia do Sul, que chama tanto a atenção da mídia por seus resultados extraordinários, dá bem a dimensão do que a educação é capaz de fazer por um país. Há 40 anos, o PIB per capita daquele país era a metade do nosso. Hoje é o dobro. Não é de admirar. A Coréia do Sul elegeu a educação como prioridade estratégica, investiu pesado na formação de professores, ampliou as horas de estudo, informatizou suas escolas, tudo com o objetivo de fazer o país crescer e se tornar um grande exportador de produtos acabados.

Resultado: enquanto de 1996 a 2005, o PIB per capta cresceu na média 3,7% ao ano entre os coreanos, o do Brasil não passou perto disso. Ficou em torno de 0,7%. A educação não respondeu sozinha pelo fenômeno, é claro. Mas não há hoje quem conteste que teve papel decisivo na formação do indicador. O caso da repetência levantado pela Unesco é apenas um entre os muitos indicadores dramáticos de nossa educação que teimam em nos afastar cada vez mais de realidades semelhantes à da Coréia do Sul.

Outros problemas estruturais, e tão devastadores quanto a repetência, resistem no universo da educação brasileira. O analfabetismo funcional é um deles. Estudo feito em 2005 pelo Instituto Paulo Montenegro, do grupo Ibope, revela que apenas 26% da população brasileira tem o domínio pleno das habilidades de leitura e escrita. O restante da população está em estágio de analfabetismo (7%), de alfabetização rudimentar (30%) ou alfabetização básica (38%). Ou seja, a maioria da população brasileira quando lê e escreve o faz de forma precária, o que debilita a capacidade de avançar profissionalmente e conquistar melhores condições de vida.

A evasão escolar é outro fator negativo da vida escolar no país. Apenas 54 de cada 100 alunos que entram no sistema de ensino chegam a concluir a oitava série. Pesquisa realizada recentemente pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas mostra bem o resultado deste fenômeno: 27% dos jovens de 15 a 24 anos estão sem estudo e trabalho. Ou seja, boa parte dos brasileiros em idade de se integrar ao mercado não ultrapassa o estágio do ensino fundamental e não consegue trabalho por falta de qualificação. Trata-se de um problema de proporções homéricas num país de 186 milhões de habitantes, dos quais 54 milhões em idade escolar.

O fato a registrar, entretanto, é singelo e pode ser dito em poucas palavras; não podemos conviver mais com a falta de um projeto estruturado para a educação. Os candidatos que não mostrarem com clareza e coerência o que irão fazer para transformar a educação no Brasil não merecem o nosso voto. A redenção econômica e social que tanto almejamos só se concretizará se colocarmos a educação como prioridade nacional.

Faz-se necessário, para não dizer obrigatório, que os pretendentes ao Planalto e toda a nação brasileira assumam o compromisso de elevar a educação ao posto de principal instrumento de nossas políticas públicas. A educação revoluciona países, elimina a pobreza e faz o conjunto da sociedade prosperar. É o remédio que nos falta.

Barretada com chapéu alheio

Jacques Schwartzman envia a seguinte nota, que me faz lembrar as leis que são aprovadas periodicamente pela Camara de Vereadores do Rio de Janeiro para obrigar os shoppings a dar estacionamento de graça a seus clientes):

O Senado acabou de aprovar projeto de lei que obriga as universidades particulares a concederem bolsas de estudo a 15% de seus alunos. Para financiar o programa, as mensalidades teriam um”pequeno aumento”. Isto é que se chama fazer caridade com o chapeu dos outros, sem atentar para as suas implicações : Há espaço para aumento das mensalidades? Isto não trará uma diminuição da demanda? Como fica a concorrência entre privadas com e sem fins lucrativos? Como fica a atual lei ( 9870 de 1999) que fixa as regras de reajuste de mensalidades? Finalmente, é aceitável origar empresas privadas a direcionarem seus gastos, como se fossem um imposto?

Jacques Schwartzman: Indicadores e financiamento das IFES

Jacques Schwartzman envia o seguinte comentário sobre o projeto de reforma universitária encaminhado ao Congresso, em relação ao financiamento das instituições federais de ensino superior (IFES):

Depois de um ano parado na Casa Civil, o projeto de reforma universitária está sendo encaminhado ao Congresso com uma importante novidade: o estabelecimento de indicadores para a distribuição de recursos entre as universidades federais. Esta questão já vem sendo trabalhada e aperfeiçoada desde quando Goldenberg era Ministro no governo Collor. A questão é que os vários modelos só podiam ser aplicados para OCC (outros custeios e capital) que representam em torno de 15% do total dos gastos. A não inclusão de Pessoal é uma conseqüência do modelo de organização baseado no Regime Jurídico Único (RJU). Se tivermos um montante fixo a distribuir igual ao orçamento das IFES, algumas terão seus recursos aumentados e outras diminuídos. Neste último caso, teríamos que demitir pessoal sem justa causa, o que não é permitido pelo RJU nem palatável pela comunidade universitária. Se optarmos pela regra ‘ninguém perde e alguns ganham’, o orçamento teria que ser sempre crescente, o que não é razoável. Assim, a principal fonte de problemas (e de soluções) tem ficado de fora dos modelos de distribuição.

A escolha dos indicadores a serem utilizados não é neutra e expressa um entendimento sobre o papel da Universidade e seus caminhos desejados. Vejamos alguns exemplos e suas ambigüidades. A relação aluno/professor, sempre presente, é um indicador de eficiência. Em princípio quanto maior a razão menores os custos por aluno. Mas, por outro lado, teremos mais salas congestionadas, aulas práticas mais desconfortáveis. É portanto possível que menores custos impliquem em menor qualidade do ensino. Um outro indicador seria a oferta de cursos noturnos, certamente pontuando mais quando o indicador for crescente. O incentivo para criar cursos noturnos tem por finalidade aumentar a matrícula daqueles que tem que trabalhar durante todo o dia. Mas é isto que queremos, alunos pouco dedicados aos estudos? Queremos igualar as IFES à parte pior do ensino privado? Aqui, a questão distributiva (mais alunos trabalhadores) conflita com a qualidade (menos disponibilidade para os estudos).

A proporção de Mestres e Doutores no total de professores é um bom indicador de qualidade quando se parte de um patamar mais baixo, mas se torna inócuo a níveis mais altos, quando todos forem doutores.

Poderíamos introduzir também as avaliações do INEP, como o ENADE, e as da CAPES para a pós -graduação, como um indicador de qualidade. Aqui surge a velha resistência ideológica de não utilizar a avaliação como premiação ou punição.

Para todos estes problemas existem soluções. No caso da relação aluno/professor pode-se caminhar para relações ideais por área de conhecimento e favorecer os que estiverem mais próximos delas. No caso das matrículas noturnas, estabelecer a proporção desejável em relação ao total de alunos. De qualquer forma, a pertinência dos indicadores deve ser questionada periodicamente pois podem não estar mais tão dispersos. É o caso, por exemplo, da situação em que quase todos os professores se tornem doutores.

Apesar de todas as dificuldades e das intermináveis discussões que se seguirão, é fundamental introduzir algum tipo de avaliação nas decisões de financiamento. É uma importante sinalização para a sociedade sobre a qualidade das instituições e para as IFES sobre o rumo que devem tomar a partir da orientação de sua mantenedora – em última análise, o povo brasileiro que as sustentam.

Monica Grin: a quem serve o Estatuto da Igualdade Racial?

Monica Grin, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assina o seguinte artigo no O Estado de São Paulo de hoje, 30 de abril de 2006:

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99, que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros, indígenas e outras minorias. Este é apenas o prelúdio do que vem a ser o mais vigoroso projeto de racialização da sociedade brasileira.

Trata-se do projeto de lei 3.198, de 2000, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que institui o Estatuto da Igualdade Racial, a ser votado na Câmara dos Deputados após ter sido aprovado sem maiores debates no Senado. É uma peça legal de ampla estrutura, que fixa direitos para os “afro-brasileiros” em várias dimensões da vida social, econômica e cultural. Seu principal objetivo é combater a discriminação racial e as desigualdades históricas que atingem os “afro-brasileiros”, determinando que as políticas públicas desenvolvidas pelo Estado devam ser pautadas pela dimensão racial, através da reparação, compensação e inclusão de suas vítimas, os “afro-brasileiros”, bem como pela valorização da diversidade racial.

Mais do que políticas compensatórias de caráter transitório, a aprovação do estatuto significará uma alteração radical nas bases universalistas da Constituição brasileira, uma vez que esse documento legal concebe a “raça” como figura jurídica de direitos a ser contemplada por políticas públicas. Uma intervenção legal dessa natureza deve supor, em primeiro lugar, a existência de uma sociedade na qual os indivíduos se auto-identifiquem através do pertencimento racial.

Ora, se esse não é o caso da sociedade brasileira, que tem evitado a rigidez de classificações étnico-raciais, pode-se afirmar que o estatuto é um instrumento legal que pretende reinventar, nos termos da raça, a nação brasileira.

O estatuto expressa o seguinte raciocínio lógico: desde a escravidão a sociedade brasileira se dividiu em “raças”. A “raça branca” dominante, através de discriminação racial sistemática e da omissão do Estado, produziu a exclusão de outra “raça” – os “afrodescendentes” – das oportunidades econômicas, sociais, políticas e culturais. Para que se corrija tal situação, cabe ao Estado, através das suas estruturas jurídicas e institucionais, intervir em todos os níveis da sociedade a fim de garantir justiça e igualdade racial para a “raça” excluída.

Para que seja eficaz a ação do Estado, é necessário delimitar rigidamente as fronteiras raciais, a fim de beneficiar aqueles que de fato seriam os merecedores da reparação ou da justiça racial. Por esse raciocínio, o estatuto torna obrigatória a autoclassificação racial de cada brasileiro em todos os documentos de identificação gerados nos sistemas de ensino, de saúde, de trabalho, de seguridade social e na certidão de nascimento.

Para evitar ambivalências, a declaração compulsória da identidade racial se restringe a duas categorias: os “afrobrasileiros” (pretos e pardos) e os “outros” (supostamente os “brancos”).

Definidas as fronteiras raciais, o documento propõe a implementação de programas de ação afirmativa destinados a enfrentar as desigualdades raciais. Na educação, as cotas nas universidades; na cultura, a valorização da cultura “afrodescendente” como monopólio da “raça” negra.

Propõe acesso diferenciado para os “afrodescendentes” no esporte, no lazer, no trabalho, na mídia, na Justiça, no funcionalismo público, nos financiamentos públicos, na contratação pública de serviços e obras, na saúde, através do controle e prevenção de doenças específicas da “raça negra”, tornando a “raça” uma entidade coletiva de direitos em qualquer campo da vida social, seja ele público ou privado.

Pergunta-se então: a quem serve a nova sociedade que o estatuto quer edificar? Um Brasil dividido em “raças” promoveria justiça para todos os excluídos das oportunidades econômicas, políticas, sociais e culturais? Seria a promoção da “raça” o melhor antídoto contra o racismo e seus efeitos?

Reclamada no estatuto, a reparação histórica, para ser plausível, deve identificar os atores responsáveis pela desigualdade, no caso os “brancos”, que descenderiam dos senhores de escravos. O argumento moral é que, se os antepassados “brancos” perpetraram discriminação e violência racial, seus “herdeiros raciais” devem arcar com essa culpa. Pergunta-se: como um “afro-brasileiro” pobre poderia convencer seu vizinho “branco” pobre de que este é culpado pela situação de pobreza em que ambos se encontram?

É fundamental a elaboração de iniciativas públicas e privadas para o combate da discriminação racial e de seus efeitos no Brasil. Contudo, o bom senso impõe que não é preciso pagar o alto preço do confronto entre dois supostos mundos. Basta atentar para experiências trágicas de promoção racial por decreto: Apartheid na África do Sul e Leis Raciais na Alemanha nazista e nos Estados Unidos.

Por fim, caberá aos nossos representantes no Congresso a responsável decisão sobre o modelo de sociedade que se quer adotar: uma onde o princípio da igualdade dos indivíduos fundamente o Estado de Direito; ou outra na qual a “raça” se torne um princípio absoluto a pautar as ações do governo e as formas de interação dos indivíduos.

Shirley: Usando o método fônico

A professora Shirley, que não se identificou além disto, enviou o seguinte comentário ao texto de João Batista:

Sou recém formada em pedagogia e estou lecionando pela primeira vez. Minha monografia foi “alfabetização pelo método fônico nas escolas públicas”, fiquei extremamente feliz e esperançosa ao encontrar este blog, já que me sinto sozinha em minhas idéias e sonhos de um dia nosso Ministério da Educação acordar e decidir tomar uma atitude digna em relação às nossas crianças. Parabéns a João Batista por ter expressado de maneira tão clara e completa tal assunto. Ingressei na rede estadual, estou chocada com a realidade da sala de aula, minha turma é de 4ª série, e pasmem, estou alfabetizando metade da classe, pois vários não sabiam nem mesmo o próprio nome… Meu trabalho tem sido muito mais de auto estima com meus alunos do que grandes feitos com qualquer método milagroso de alfabetização, pois um aluno que está dentro da escola ha mais de três anos e não aprendeu a ler ou escrever seu nome, pensa ser alguém incapaz e inferior e o que é pior, possui um olhar triste, perdido no horizonte…

Ah! Já ía me esquecendo, tenho trabalhado o método fônico com esses meus aluninhos queridos e em praticamente dois meses apenas de trabalho, os resultados são fantásticos.

José Roberto F. Militão: Cotas na universidade: a alforria do século XXI

José Roberto F. Militão nos envia a contribuição abaixo, que tem sido distribuida em várias listas de militantes do movimento negro. Ele é advogado, administrador e empresário, militante do movimento negro, e coordena a Organizaão da ´AFRO-SOLLUX´ – Planej. e Soluções em Economia Solidária.

A meus fraternos e meus críticos companheiros de movimento negro, saúdo a todos neste final de semana convidativo a reflexões (21/04), especialmente aos guerreiros que se empenham pela aprovação da lei de ´cotas´ antes da existência de um ´Estatuto de Promoção da Igualdade´, deles divergindo, sem desmerece-los, que a despeito de pedidos fraternos, neste momento crucial e determinante, não poderia deixar de manifestar as ponderações críticas, na condição de antigo militante a favor de ´ações afirmativas´, nem admitir no futuro, a pecha de omissão a inescusável dever da reflexão a respeito do destino de nossos jovens. A verdade é que além de ponderações emocionais não tenho visto racionalidade acadêmica que justifiquem embasamento a cotas.

Pondero, preliminarmente duas coisas: a primeira, dirigida ao futuro, é não ser compatível com a responsabilidade ética Webweriana, que a atual geração faça uma interferência, negativa, de tal magnitude, alterando doravante, a trajetória da juventude e do povo negro, nessa direção, salvo melhor juízo, enfraquecedora da luta geral contra o racismo e discriminações, sem avaliar os resultados disso a médio e longo prazo. A segunda, tem fulcro no passado, e nos efeitos da alforria (precurssora das cotas ao beneficiar poucos e manter milhões excluídos) que produziu enfraquecimento na luta contra a escravidão.

Assim, principio pelo fim: se nos anos 60/70 os racistas ´africaner´s´ tivessem concedido ´cotas´, teria havido Steve Biko e o movimento da consciência negra na África do Sul, culminando com a revogação da prisão perpétua de Nelson Mandela? As cotas a Steve e demais negros que nem chegaram à universidade, os neutralizava, pois, como sabiamente disse o mestre Herbert Marcuse: “o primeiro passo para um escravo conquistar a sua liberdade é ele tomar consciência de que é escravo”. E ouso questionar: Se Abdias, Lélia, Clóves Moura, Hélio Santos, Hamilton Cardoso, Sueli Carneiros, Carlos Alberto Medeiros, Gevanilda, Hédio, Joel Rufino, Kabenguele, Wânia e tantos outros tivessem sido cotistas, teria se consolidado a moderna consciência do movimento negro brasileiro?

Com tais premissas, também sob o aspecto da negativa e repúdio à figura institucional da pessoa jurídica ´raça´, manifesto inteira concordância ao último e ponderado artigo de Peter Fry e Yvonne Maggie (O Globo de 11/04/06), a respeito do projeto de lei de “Cotas Raciais” para negros e ouso complementar o título: ´COTAS: POLÍTICA SOCIAL DE ALTO RISCO (para a maioria da população NEGRA)´ e o justifico, concordando com a preocupação social de vários acadêmicos, porém, alegando outras distintas razões, que são do interesse exclusivo dos afrodescendentes.

Um deles, de cunho filosófico, é que a luta dos negros jamais foi separatista. Outros, da realidade historiada. Martin Luther King, viveu intensamente e foi assassinato pelo sonho de construir uma sociedade em que as pessoas fossem julgadas ´pelo seu caráter e não pela cor de sua pele´. Zumbi, acolhia em Palmares, além dos quilombolas, índios, mestiços e brancos. Spike Lee, nos mostra da infância do jovem Malcon Litle, recordações infames: Malcon X, afirma que era uma espécie de mascote, como um poodle rosa, porque era o único negro da turma. Isso significa que cotas, atacando efeitos da discriminação, transformará nossos jovens talentos em mascotes de turmas, pois as causas persistirão excluindo e desigualando milhões de negros no Brasil.

Sucede ademais que a nós, vítimas da hedionda e equivocada colonização RACIAL, cuja cultura acolhida e justificada por dogmas da igreja católica e teorias ´científicas´ do século XIX, ficou perpetuada, não nos interessa como cidadã(o)(s) uma sociedade racializada, conforme decorrente do projeto de ´COTAS NAS UNIVERSIDADES´. Para o século XXI, o desenvolvimento das ciências assegura a prevalência biológica de ÚNICA RAÇA HUMANA e a luta contra os preconceitos e discriminações, exige de todos aprofundar e radicalizar esse conceito na construção e aperfeiçoamento de uma sociedade de IGUAIS em todos os sentidos, sem nenhuma exceção, incluso a de raças, socialmente considerada. “Quando olhamos por alto as pessoas, ressaltam suas diferenças: negros, brancos, homens e mulheres, seres agressivos e passivos, intelectuais e emocionais, alegres e tristes, radicais e reacionários. Mas à medida que compreendemos os demais as diferenças desaparecem e em seu lugar surge a unicidade humana: as mesmas necessidades, os mesmos temores, as mesmas lutas e desejos. Todos somos um.” nos alerta James Joyce in “Finegans Wake”

Pondero ainda que pela estrutura sócio-política brasileira, se racialmente aceita, ela nos seria ainda mais perversa, tal como foi a escravocrata, em que os negros tinham o ´seu lugar´ bem definido: eram escravos ou alforriados (cidadãos de 2a. classe). Se racializada, o Brasil permanecerá uma sociedade em que os não-negros são detentores dos poderes e se permitida, ad argumentandum, por mera liberalidade fosse sociológica admissível e antropológicamente aceitável e juridicamente concebida, conforme desejam os ´cotistas´ a divisão da sociedade brasileira em ´raças´ (o que é vedado pelas cláusulas pétreas da CF), todas as perdas serão dos afrodescendentes.

A primeira delas, é que a violação do princípio geral da isonomia beneficiará a quem detém os poderes decisórios. A outra, é que institucionalizar ´cotas´ exige por princípio a admissão da divisão da humanidade em raças e isso é a negação da ciência e dos princípios republicanos e democratas: todos são iguais em direitos e obrigações.

Entretanto a maior perda, e mais projetável para o futuro, com o benefício a 2 ou 3% de jovens negros, será a inevitável criação de novos ´alforriados´ em pleno Século XXI, agora que começamos, sob a liderança e a compreensão de militantes políticos e de ilustres acadêmicos, negros e brancos, a compreender o nefasto papel involuntário imposto ao alforriado e a demolir os danos da cultura do ´embranquecimento´ e rejeição histórica do irmão negro, naquela compreensível busca de aceitação e ascensão social, marcada pela delação, traição e abandono que marcou o comportamento dos forros em relação aos escravos. A bem documentada biografia de Chica da Silva (acessível nos ´sites´ de buscas), a melhor evidência do comportamento do alforriado, é pública e nos foi representada a cores.

Nesta compreensão, é sempre necessária a crítica histórica: a alforria beneficiava mais a sobrevivência do regime assegurando uma classe ´intermediária´ de negros, que não eram escravos, nem eram cidadãos plenos (V.´Negros, Estrangeiros´; Manuela Carneiro da Cunha; 1985; Ed.brasiliense). Porém, é certo, que o manumisso, salvo exceções, jamais lutou ao lado dos quilombolas para enfraquecimento da escravidão nem foi aliado natural das insurreições e dos abolicionistas, e ainda tinha o dever legal (e moral) de tributário da eterna lealdade e gratidão ao senhor e ao regime sob pena até da revogação ou da deportação para qualquer lugar da costa africana. (não confundir o alforriado com os nascidos livres que atuaram em várias revoltas).

Por conseguinte, a alforria foi prejudicial ao fim da escravidão: a sua maior adoção pelo Brasil que em outros países, concedendo a ´semi-liberdade´ a conta-gotas, retirava da luta contra a escravidão os escravos mais preparados para o inconformismo, neutralizando-os, significando com isso, o retardamento do fim da escravidão por 70/80 anos.

Mais ainda, é bom reafirmar, os alforriados, ficavam condicionados a agir exatamente como faziam os senhores, beneficiários do sistema. Joaquim Nabuco (O Abolicionismo) denunciava o exemplo máximo da Guerra do Paraguai: “A infantaria brasileira que lutou na Guerra do Paraguai não era formada de soldados profissionais, mas pelos chamados Voluntários da Pátria, cidadãos que se apresentavam para lutar: Eram ESCRAVOS, enviados por fazendeiros e por NEGROS ALFORRIADOS.”

Por seu lado, Franz Fanon, diagnosticava: ” A colonização não se satisfaz somente em manter seu alvo em suas garras e esvaziar o cérebro do explorado de toda alma e conteúdo. Ela se volta para o passado dos oprimidos e o desfigura e destrói.” Isso é o que fizeram com os alforriados e farão com os cotistas. A destruição da consciência de luta.

Assim, deduzo, as ´cotas´ será privilégio consentido pelo sistema (com 28 deputados em 513 não temos correlação de forças para a conquista), por exemplo as instituições privadas vão receber um excedente de alunos que podem pagar, e ela vai retirar da luta e solidariedade contra o racismo e discriminações, nossos melhores talentos jovens, transformando-os em ´neo-alforriados´, os mais bem preparados, que teriam o futuro de recolher o conhecimento acadêmico e emprega-lo para a promoção da igualdade aos demais negros que jamais chegarão à universidade, neutralizando-os, conforme Herbert Marcuse. : “o primeiro passo para um escravo conquistar a sua liberdade é…”. A negativa dessa condicionante que afetará os cotistas, inevitavelmente, equivale em violação da ética da responsabilidade, segundo Max Weber: “quem age de acordo com a ÉTICA DA RESPONSABILIDADE, leva em conta as particularidades, avalia os meios disponíveis e considera as POSSÍVEIS CONSEQÜÊNCIAS, assumindo a responsabilidade por elas.” ( B.T. Bottomore e R. Nisbet, História da análise sociológica. Zahar ed. Rio, 1981)

Por outro lado, não posso deixar de anotar que tem o interesse de ONG´s negras e seus militantes, legítimos ou não, que por razões conjunturais e pragmatismo, seus interesses imediatos nem sempre coincidem com o interesse futuro da maioria. Aqui faço analogia com as feministas, nas recentes palavras, autocríticas e diagnóstico da líder feminista, respeitada filósofa e educadora britânica Alison Wolf: ” Acho que o feminismo sempre foi um movimento desonesto. Ele se apresentava como um movimento que defendia o interesse de todas as mulheres, mas era apenas voltado a uma minoria de mulheres da elite, mas com um discurso de que todas as mulheres são iguais e querem a mesma coisa. … eu poderia dizer que o feminismo, longe de ser uma luta pelos verdadeiros interesses das mulheres, seria uma ideologia que encoraja as mulheres a servirem ao capitalismo global, cuidando para que esse capitalismo tenha 100% dos melhores talentos em dedicação exclusiva, e não 50% (masculinos)” (Folha, Mais!, 02.04.06, p.5).

Destarte, não basta setores do movimento negro querer, precisamos saber se ´cotas na universidade´ atende ao interesse da maioria dos negros e à sociedade. Deduzo, pela história, que a consolidação na ´crença em raças´, não interessa, exceto às ONGs em busca de uma clientela sempre mobilizada para sustentar um precário benefício sem fulcro social e jurídico consistente.

Sob o ponto de vista de construção da igualdade, em sociedades multirraciais, uma novidade e um desafio para a humanidade, é certo que, visando ganhar apoios, setores do movimento negro faz uma gravíssima confusão, que alguns acadêmicos reproduzem, entre ´cotas´ e ações afirmativas. Essa confusão generaliza coisas distintas, o que é falso: ´POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVAS´ é uma doutrina de promoção da igualdade e respeito à diversidade que não deve se destinar exclusivamente à questão da raça, mas de gênero também. Os que a conhecem melhor, aceitam e estimulam sua adoção voluntária; ´cotas´ é um dos vários mecanismos experimentados na construção de ações afirmativas – o mais traumático e de menor eficácia – e onde foi adotado, exige o seja coercitivamente, especialmente os EUA, foram vetadas pelo Judiciário, criticadas pelos cientistas sociais e abandonadas, permutadas pelos demais mecanismos de ações afirmativas como o estímulo para a busca de talentos e critérios de diversidade com a remoção de obstáculos subjetivos e injustos.

A doutrina, segundo o Min. Joaquim Barbosa, assim define ações afirmativas: “Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação RACIAL, DE GÊNERO, DE IDADE, DE ORIGEM NACIONAL E DE COMPLEIÇÃO FÍSICA. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade”. Por cotas, são denominadas certas políticas públicas mais radicais objetivando a concretização da igualdade material, nasceram no bojo ações afirmativas, mas com essas não se confundem. É nesse sentido, que o prof. Jorge da Silva, da UERJ, é enfático ao dizer que a ação afirmativa “não é simplesmente o estabelecimento de ‘cotas’ percentuais para negros”. (Silva; 2001; p. 28). Porém, alerta o citado Ministro do Supremo Tribunal, “que falta ao Direito brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do sistema de COTAS, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo, deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal. (Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: O direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001).

Por último, se aprovada a lei, ela será do interesse do sistema e estaremos condenando nossa elite de jovens e todos os negros com formação superior, mesmo os que tenham mérito, igualados a doutores de 2a. classe, e então vamos fazer como fizeram os ´alforriados´, reconhecer e legitimar um status minus e pedir cotas também em empregos de 2a. classe, e aceitar o tal complexo de inferioridade que sempre nos foi atribuída, culpa exclusiva imputável à submissão dos forros.

Aliás, os dados sintetizados em 12/04 pela prof. Wânia Santana, reproduzindo o diagnóstico informados desde o SEADE/1986 aos mais recentes censos e pesquisas de amostras do IBGE, bem elucidam a nossa situação de vítimas do racismo e das discriminações, especialmente aos que já detêm o curso superior ´por mérito´, demonstrando que não basta o acesso ao ensino superior, precisamos combater por ações afirmativas, os critérios de tratamento e de oportunidades, in verbis:

“A escolaridade diferenciada entre brancos e pretos e pardos acaba por se refletir no mercado de trabalho. As pessoas ocupadas de cor branca tinham, em 2004, em média, 8,4 anos de estudo e recebiam mensalmente 3,8 salários mínimos. Em contrapartida, a população preta e parda ocupada apresentava 6,2 anos de estudo e 2 salários mínimos de rendimento. A diferença na escolaridade não é suficiente, porém, para explicar a desigualdade nos rendimentos: embora a média de anos de estudo de pretos e pardos tenha sido 74% da média dos brancos, o rendimento médio mensal da população ocupada preta e parda representou apenas 53% do rendimento dos brancos.

Mesmo entre pessoas com escolaridade equivalente, observou-se um diferencial significativo em todos os grupos de anos de estudo, com a população ocupada de cor branca recebendo sistematicamente mais que os pretos e pardos. A maior diferença foi encontrada no grupo de maior escolaridade: entre aqueles com pelo menos o ensino médio concluído (12 anos ou mais de estudo), os brancos recebiam em média R$ 9,1 p/hora, enquanto que os pretos e pardos tinham rendimento-hora médio de R$ 5,5. ”

Ora, em assim sendo, desprovidos de um ´Estatuto da Promoção da Igualdade´ (genérica), as causas de desigualdades que afetam a todos persistirão, acolhida a legitimação de ´raças´ juridicamente considerada e violada a ética da responsabilidade Weberiana, restando às ONGs desfraldarem nova campanha para ´cotas´ no mercado de trabalho, e estaremos de vez, assumindo a inferioridade, pérfida herança que, com razão, combatemos.

Concluo, imaginando que se o ´africaner´s´ tivessem estabelecido ´cotas raciais´ não teria havido a geração de ´Steve Biko´, nem o rápido final do ´Aphartheid´ e se ao defenderem ´cotas´, não estaremos abortando lideranças do mesmo escol, e reiterando, não é justo nem será ético essa intervenção no futuro de nossos melhores talentos: transforma-los em ´neo-alforriados´ estigmatizados pelo século XXI, retardando décadas na luta pelos direitos IGUAIS a todos os negros no Brasil. Aqui falo da igualdade, material e formal, aquele ideal aristotélico, que Rui Barbosa sintetiza como o tratamento igual aos iguais, com os recursos prescritos desde ´O Contrato Social´ de J.J. Rousseau, para quem, ´se a desigualdade é inevitável, a lei deva promover ações tendentes a assegurar a igualdade´ que vem ser a base doutrinária de ações afirmativas contra as discriminações.

Laura Randall: A experiência de New York e as políticas de ação afirmativa no Brasil

Laura Randalls, professora emérita do Hunter College, City University of New York, e co-coordenadora do Seminário sobre o Brasil da Universidade de Columbia, nos envia um artigo sobre “As lições da City University de New York para o estabelecimento de cotas nas universidades brasileiras. O texto completo está disponível no site do Brazilink. Em resumo:

“Lessons from the City University of New York for the Establishment of Quotas for University Admission in Brazil” provides new information that is relevant to the discussion of establishing quotas for University Admissions in Brazil. It describes a compensatory program “Search for Education, Elevation, and Knowledge” (SEEK) for low income and minority students, and presents retention and graduation rates for regularly admitted and SEEK students both as a group and for black and for white subgroups. Data regarding the impact of the degree of academic deficiency when admitted on retention rates is presented. We do not have enough information to estimate what share of the lower retention and graduation rates of blacks than of whites is due to socioeconomic conditions and what share is due to color. We note that the differential between blacks and whites is now roughly the same among regularly admitted and SEEK students.

Regularly admitted students graduate more rapidly than SEEK students; however, SEEK students’ retention rates are greater than those of students with equally deficient academic preparation who are not in the SEEK program. The importance of using low or no cost techniques to improve teaching and other school conditions and of increasing housing integrated by income to provide better education at pre-university levels is presented as policy choices that should be considered as well as quotas in evaluating the appropriate distribution of spending on interventions throughout the educational system, from pre-kindergarten through university levels.

Confundindo o Estatuto da Igualdade Racial e política de cotas?

Fábio Konder Comparato tem razão ao dizer, em carta para o jornal, que meu artigo na Folha de São Paulo de ontem não se aplica ao projeto de cotas raciais para as universidades. De fato, meu artigo se referia a um outro projeto, denominado “Estatuto da Igualdade Racial”. No entanto, não há dúvida que os dois projetos têm inspiração similar, que é a de oficializar a classificação das pessoas em raças estanques, como se isto fosse necessário para enfrentar os problemas da desigualdade social e da discriminação.

Fábio Wanderley Reis: democracia racial e ação afirmativa

Fábio Wanderley Reis, que vem acompanhando o tema da ação afirmativa desde pelo menos o seminário promovido pelo Ministério da Justiça em Brasília dez anos atrás, disponibiliza o seu artigo sobre “Democracia Racial e Ação Afirmativa”, de 2004, publicado na revista Econômica, da Universidade Federal Fluminense, em um dossê sobre o tema organizado por Célia Kerstenetzky.

Das estatísticas de cor ao estatuto da raça

A Folha de São Paulo publica na edição de hoje um artigo meu com este título. Como o espaço de jornal é limitado, tive que cortar algumas partes, e reproduzo aqui o texto completo, com algumas correções:

O Brasil nunca soube lidar direito com as questões de cor e origem. Já houve tempo em que autores como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna acreditavam que os males do pais eram causados pelo sangue ruim dos negros e indígenas, problema que só seria resolvido, se fosse, com o branqueamento e purificação da raça. Mais tarde, Gilberto Freyre tentou difundir a idéia de uma civilização luso-tropical em que, apesar da escravidão, negros e brancos conviviam em harmonia. Nos anos 30 o Estado Novo proibia que filhos de imigrantes aprendessem a ler na língua materna, e botava na cadeia quem falasse alemão, italiano ou japonês nas ruas. Nos anos 50 e 60, os sociólogos marxistas da USP – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni – passaram a argumentar que, em última análise, as questões de raça ou nacionalidade eram questões de classe, que desapareceriam na medida em que aumentasse a consciência de classe dos pobres e proletários e a luta pelos seus direitos.

Nos anos 70, sociólogos de formação empírica do IUPERJ – Nelson do Valle e Silva, Carlos Hasembalg – mostraram que a “cor” – uma aproximação precária do conceito de raça nas estatísticas do IBGE que começvam a aparecer – tinha relação significativa com a condição de vida das pessoas de forma independente, embora correlacionada, de fatores como educação, profissão, etc. Os “pretos” e “pardos” percebem remuneração inferior pela mesma função e têm menos educação que os “brancos” na mesma faixa de renda. Junto com a divulgação destas estatísticas, começava a ganhar corpo um ataque frontal contra a imagem do Brasil como um país culturalmente homogêneo e racialmente integrado, cultivada desde D. Pedro II pelas agências de governo encarregadas da educação e da cultura.

A antiga imagem de integração e homogeneidade coexistia com a manutenção de milhões de pessoas à margem dos benefícios e da cultura oficiais, falando mal a língua, incapazes de entender a educação das escolas, e sentindo-se inferiorizados pela cor da pele e por seus antepassados negros e indígenas. A reorientação dos anos recentes buscou inverter por completo os termos do problema. Dali em diante, a interpretação “correta” passou a ser: “o Brasil é um país racista, marcado pelo preconceito e a discriminação. A igualdade formal e harmonia entre as raças são apenas discursos ideológicos para a ocultação das diferenças. É necessário denunciar tais mitos, criar leis que reconheçam as diferenças, atribuir novos direitos aos discriminados e compensá-los pelas perdas e sofrimentos do passado. Ao invés da falsa harmonia das três raças, as crianças devem aprender nas escolas a história maldita da discriminação e do preconceito. A cultura a estimular não deve mais ser a cultura erudita, dos brancos, mas a cultura popular, das comunidades pobres e dos negros.” O projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que o Congresso está a ponto de aprovar, pretende consagrar e transformar em ideologia oficial essa nova interpretação da sociedade brasileira.

O Estatuto é uma monstruosidade jurídica e conceitual. Ele pretende obrigar todas as pessoas a se classificarem como brancos ou afro-brasileiros nos documentos oficiais, ignorando os milhões que não se consideram nem uma coisa nem outra, e não reconhece a existência dos descendentes das populações indígenas, o grupo mais discriminado e sofrido da história brasileira. A partir daí, ele introduz direitos especiais para os afro-brasileiros na saúde, na educação, no mercado de trabalho, na justiça e em outros setores. Os direitos que o projeto de Estatuto pretende assegurar não são apenas os direitos humanos, individuais e coletivos tradicionalmente reconhecidos em nossa tradição constitucional – e que devem ser garantidos a todos. O que o projeto tem principalmente em vista é um novo direito a reparações; reparações supostamente devidas a uma categoria social, os afro-brasileiros, e que deverão ser pagas por outra categoria social – os brancos, inclusive os pobres e os filhos de imigrantes recentes, considerados coletivamente culpados e de antemão condenados pelas discriminações de hoje e de ontem. O Estatuto abole o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei e cria uma nova categoria de cidadãos, os afro-brasileiros, definidos de forma vaga e arbitrária como “as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”, presumivelmente relegando os demais, de forma implícita, a uma categoria de branco-brasileiros.

Basta pensar um pouco para darmo-nos conta de que não temos porque que optar entre as antigas ideologias da harmonia racial e cultural e a implantação de um regime de apartheid no pais, em que supostas identidades e direitos raciais se oficializem e predominem sobre o desempenho das pessoas e seu direito e liberdade de escolher e desenvolver suas próprias identidades. Nem tudo que diziam os sociólogos do passado estava errado. É certo, como observou Oracy Nogueira, que o preconceito de cor, que existe no Brasil, com infinitas gradações e matizes, é profundamente diferente do preconceito de origem que existe nos Estados Unidos, que divide a sociedade em grupos estanques, e por isto não é possível interpretar a sociedade brasileira com os óculos norte-americanos (comparações com paises como Cuba e República Dominicana fazem muito mais sentido). É certo que a “cor” tem uma relação negativa com a distribuição de oportunidades, mas a má qualidade da educação, as limitações do mercado de trabalho e a precariedade dos serviços de saúde, que afetam a todos, têm efeitos muito maiores.

Existe preconceito racial no Brasil? Sim. Mas existe também uma importante história de convivência e aceitação de diferenças raciais, religiosas e culturais, um patrimônio a ser aperfeiçoado. Por que não progredir no caminho que vem sendo tentado, identificando situações específicas de discriminação e agindo contra elas, sem dividir a sociedade em “raças” estanques ? Valorizar a cultura, as histórias e as identidades dos diferentes grupos e etnias no país é um objetivo importante, mas é perfeitamente possível alcançá-lo sem dar as costas para a cultura universal, da qual queremos e precisamos participar.

A opção é simples: de um lado, uma sociedade em que o governo não se imiscui na identidade e na vida privadas das pessoas, em que o princípio constitucional da igualdade é mantido, e em que as políticas sociais lidam com as causas da pobreza e da desigualdade; de outro, uma sociedade em que a cidadania passa a comportar “graus”, em função da cor da pele de cada um, a ser definida pelo movimento social, partido político ou pelo burocrata de plantão. Um país com políticas sociais baseadas em critérios de culpa, expiação e reparação de pecados coletivos, com a substituição da antiga ideologia oficial de igualdade racial por outra, também abominável, de preconceito e perene conflito e discriminação entre raças antagônicas.

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