Universidade, meritocracia e saberes universais

Eduardo Luedy, comentando neste blog o manifesto sobre os “direitos iguais na República Democrática” (veja baixo), diz que, se a universidade é uma instituição meritocrática, e os currículos são baseados em saberes universais, então as cotas não se justificariam. Mas ele desconfia tanto de uma coisa quanto de outra, e acredita que, no fundo (ou nem tão no fundo assim), tanto a meritocracia quanto a noção de saberes universais são pretextos para manter a desigualdade e a discriminação.

São questões importantes, que não permitem respostas apressadas. Sabemos que a relação entre resultados nos exames vestibulares e resultados nos cursos superiores é imperfeita, como é imperfeita a relação entre o desempenho nos cursos e na vida profissional. Nada indica, por exemplo, que os 10% mais qualificados mas que não passaram em um vestibular de medicina seriam piores médicos do que os 10% menos qualificados que passaram. Se a seleção fosse feita por sorteio, neste grande grupo intermediário, os resultados seriam provavelmente os mesmos. Uma vez obtidos, os diplomas funcionam como pontos nos concursos e promoções, licença para o exercício de determinadas profissões, e engordam os currículos no mercado de trabalho, além de trazer prestígio a seus portadores, mesmo que tenham sido péssimos alunos, ou freqüentado escolas de fim de semana. Se os privilégios não dependem do conhecimento nem do mérito, porque usar o mérito como critério de seleção, que só beneficia os filhos das classes médias e altas?

De fato. Mas acontece que os benefícios obtidos pelos títulos enquanto tais beneficiam seus portadores, mas não a sociedade como um todo, porque não passam de sinecuras. O interesse de um indivíduo pode ser o de obter um título com o mínimo possível de esforço, e aproveitar ao máximo da legislação e dos mitos que garantem os privilégios dos portadores do diploma que recebe. O interesse da sociedade, por outro lado, é o de associar ao máximo o diploma à competência, e eliminar os privilégios associados à simples posse de credenciais. O país precisa de profissionais competentes nas diversas áreas, e isto justifica os investimentos públicos na educação superior e na pesquisa; mas não precisa de um sistema de privilégios e de prestígio baseado na distribuição de credenciais educacionais de um tipo ou outro.

Nem sempre é fácil ver este conflito de interesses, porque a defesa dos privilégios profissionais – por exemplo, quando os advogados querem impedir a criação de novas faculdades de direito, quando os médicos tentam limitar as atribuições de outros profissionais de saúde, quando o sindicato de sociólogos obriga as escola a contratar seus filiados para dar aulas nas escolas em todo o país – é sempre feito em nome da qualidade profissional e do interesse da sociedade. No entanto, os profissionais mais bem formados estão, em geral, muito mais preocupados com a qualidade real do diploma que possuem do que com a defesa dos cartórios profissionais. Esta mesma divisão entre os que valorizam os conteúdos e os que valorizam os títulos existe no interior das universidades. Para algumas instituições e pessoas dentro delas, o que importa é fazer prevalecer os valores da competência e do mérito competência no ensino e na pesquisa, não só porque isto beneficia os mais competentes, mas também porque torna mais legítima sua demanda por financiamentos públicos e reconhecimento de sua autoridade profissional. Para outros, no entanto, o que vale são os direitos adquiridos e as posições conquistadas.

Se este raciocínio é correto, então as políticas públicas que incentivam o mérito no ensino superior estão alinhadas com o interesse da sociedade e contribuem para fazer com que as instituições de ensino valorizem cada vez mais o mérito e o desempenho, tanto de alunos quanto de professores e pesquisadores; e vice-versa. Nesta perspectiva, sistemas de cotas para categorias de alunos, na medida em que dissociem o acesso do mérito, são claramente contrárias ao interesse público.

Mas isto não esgota o problema, porque, como sabemos, o mérito está associado às condições educacionais e econômicas das famílias de origem dos estudantes, e, como foi dito no início, nem sempre os sistemas de seleção das universidades refletem o mérito verdadeiro, medido por outros critérios. Existem várias maneiras de enfrentar estes problemas: investindo na preparação de grupos em situações de desvantagem, melhorando suas condições de competitividade; mudando os critérios de seleção para as universidades, saindo do atual sistema rígido de provas para outros que possam tomar outros fatores em consideração; e ampliando e diversificando mais o sistema, de forma a permitir que, no lugar de algumas poucas hierarquias de prestígio, exista uma pluralidade cada vez maior de alternativas.

O que traz à baila o segundo ponto levantado por Eduardo Luedy, o da existência ou não de saberes universais. Esta foi uma grande discussão nos Estados Unidos, aonde se dizia que as universidades tradicionais mantinham o culto da cultura do White Dead Men, e que era necessário substituí-la pelas culturas dos negros, das mulheres, dos jovens e das pessoas vivas, sem falar nas diferentes tradições culturais da Ásia e da África. Como toda a polarização, ela tinha algo de verdadeira, e muito de bobagem. Aplicada às humanidades, faz bastante sentido buscar, recuperar e fortalecer outras tradições culturais, associadas a diferentes identidades, ainda que com o risco de que, nestas novas tradições, as ideologias prevaleçam sobre os conteúdos literários, artísticos e filosóficos das diferentes correntes. Mas não faz sentido abandonar as tradições intelectuais mais importantes da cultura ocidental, que, de fato, um patrimônio universal e inestimável que, de fato, foi construido predominantemente por homens brancos já falecidos. Aplicada às ciências e à tecnologia, os riscos são maiores: é muito difícil defender hoje a existência de uma física, biologia ou matemática branca ou negra, ariana ou judaica, burguesa ou proletária, latino-americana ou imperialista. A globalização do conhecimento técnico e científico é um fato que tem conseqüências de muitos tipos, algumas delas bem negativas, e ainda persistem tradições técnicas e científicas que são peculiares a determinados contextos. Mas o caminho, evidentemente, não é o de criar espaços reservados para saberes particulares, definidos por critérios raciais, nacionais ou de classe, e sim criar condições para que todos participem e se beneficiem dos conhecimentos e das competências que se desenvolvem e estão disponíveis em um mundo cada vez mais global.

De novo, isto não esgota o problema. O mundo do conhecimento é fragmentado (quem fala ainda hoje da “unificação das ciências?”), e os sistemas de ensino superior, ao invés de insistirem no predomínio absoluto das hierarquias tradicionais do saber científico, devem estar abertos à pluralidade e convivência de diversas formas de qualificação profissional e produção do conhecimento, competindo entre si.

Em resumo: apesar de suas dificuldades, o princípio do mérito não pode ser abandonado no ensino superior; e a solução para os problemas de iniqüidade de acesso e resultados deve passar pelo apoio aos que dele necessitam e pela diversificação cada vez maior de caminhos e possibilidades, e não pela redistribuição pura e simples dos benefícios de um sistema de privilégios que precisa ser superado.

Busca-se um diretor para o Brazil Institute, Washington

O Woodrow Wilson Center em Washington está divulgando o seguinte anúncio:

Director, Brazil Institute, Woodrow Wilson Center, Washington DC
CLOSING DATE: July 27, 2006
$77,353 – $100,554 per annum

DUTIES: The purpose of this position is to provide intellectual and administrative leadership to an international program of scholarly research, publication, and outreach activities on Brazil. Major duties include, but are not limited to: 1) organizing conferences, seminars, and dialogues on a broad range of political, economic, and cultural issues in Brazil and on the U.S.-Brazilian relationship; 2) management of and responsibility for all program activities; 3) fund-raising for support of Brazil Institute activities and administrative expenses, including project staff; 4) budget preparation and submission for the Program’s grants and/or contracts (both federal and private funding sources); 5) supervising and contributing to the writing and development/editing of all Program meeting publications, public announcements, and book publications; 6) working in cooperation with the Fellowship Office to administer an international fellowship competition; 7) working with colleagues to sustain the programs of the Wilson Center and the Latin American Program as a whole; 8) maintaining a professional relationship with all groups (domestic and international) in the fields of Latin American studies and Brazilian studies; and 9) continuing personal research and writing on various aspects of Brazilian politics, economics, international relations, and U.S.-Brazilian relations.

QUALIFICATIONS: Candidates must have a minimum of 5 years of general experience in research and other professional work, and an additional 4 years of specialized experience directly related to the duties described above; Ph.D. in the social sciences with an emphasis on the study of Brazil; or equivalent professional experience; Language facility in English and Portuguese.

For more information and complete job announcement (INCLUDING SPECIALIZED QUALIFICATIONS AND REQUIREMENTES), please visit:
http://www.wilsoncenter.org/employment

Edward Telles: O debate sobre políticas raciais

Edward Telles, professor do Departamento de Sociologia da UCLA (University of California Los Angeles), envia a seguinte contribuição:

Políticas raciais: um debate franco e plural

Na semana passada, a imprensa brasileira divulgou a iniciativa de um conjunto de intelectuais, ativistas e artistas que levou a Brasília um documento contra a adoção das PLs Lei das Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial. Na mesma data em que os representantes dessa iniciativa reuniam-se em Brasília com o presidente da Câmara dos Deputados e do Senado para entrega formal do documento, Demétrio Magnoli, colunista desta Folha, acusou-me publicamente no seu artigo de 29 de junho passado de “pescar um documento público da Internet e falsificar (seu) título”. Meu ato ilícito teria consistido, segundo o colunista, em denominar tal documento como o “Manifesto da Elite Branca” e divulgá-lo, em seguida, no boletim eletrônico da Brazilian Studies Association (BRASA).

Vamos aos fatos para evitar que o debate sobre racismo no Brasil não fique comprometido por práticas intimidadoras que buscam deslegitimar aqueles que, como eu, fundamentados em vários anos de pesquisa e análises empíricas rigorosas, defendem políticas de cunho racial. Com sua circulação na sociedade brasileira, foi-me enviado, bem como a outras pessoas, por email, cópia de tal manifesto. Constava do email o título “Manifesto da Elite Branca” no subject line. Sugeri aos coordenadores da BRASA, Professores Marshall Eakin e James Green, que o fizessem circular no seu site, dando, assim, acesso aos brasilianistas para debate. Ciente do título repugnante – “Manifesto da Elite Branca” – que constava como “assunto” no email, mas fiel às fontes, mencionei no site da BRASA que o documento circulava na Internet com tal denominação. Fiz aquilo que fazemos todos que usamos a Internet para veicular idéias, debates e propostas. Coloquei à disposição o documento, informando como estava sendo veiculado.

Sou acadêmico e na qualidade de estudioso das questões raciais comparativas, fui selecionado em 1996 pela Fundação Ford para ser Program Officer no seu escritório do Rio de Janeiro, onde permaneci até 2000. Porque trabalhei nessa Fundação na área de direitos humanos, Magnoli me descreve como intelectual ativista que defende os direitos das “minorias.” Na minha visão, compartilhada não apenas por colegas brasileiros igualmente funcionários da Ford, mas também por inúmeros outros acadêmicos, atuantes e representantes de diversos setores da sociedade brasileira, sempre foi importante investir nas demandas de grupos minoritários, sejam negros, mulheres, gays ou indígenas, para fazer valer suas vozes e suas lutas no processo democrático.

No meu livro, Race in Another America: The Significance of Skin Color in Brazil (2004), que ganhou da American Sociological Association o prêmio de melhor livro em 2006, explico com rigor por que sou a favor de políticas que consideram a cor das pessoas, para além daquelas que devem ser garantidas sem discriminação de qualquer tipo a todos os cidadãos de um país. Os princípios da universalidade deveriam ser suficientes para regir nossas sociedades, porém não bastam nas sociedades contemporâneas, pois não conseguem desarmar a discriminação com base na cor da pele. Em meus estudos mostro que as taxas de mobilidade social brasileiras revelam que crianças pobres porém brancas têm maior chance de chegar a posições de classe média do que crianças igualmente pobres, mas negras.

A grande desigualdade racial no Brasil se apóia em uma estrutura hiper-desigual e também por haver barreiras à entrada de negros na classe média, o que tem produzido uma elite brasileira quase inteiramente branca. A primeira causa deve ser tratada com medidas universalistas capazes de reduzir a desigualdade entre todos os brasileiros, mas a segunda só pode ser enfrentada com políticas compensatórias de cunho racial, especialmente aquelas que facilitam a entrada de negros nas universidades. Não podemos ignorar a raça na construção de uma democracia inclusiva, posto que ela é critério da exclusão. Dadas as especificidades brasileiras, políticas sociais que procuram reduzir ou até mesmo superar o enorme fosso racial no Brasil têm de ser engenhosas e criativas. Julgar, porém que se possa ignorar a questão racial nos seus desenhos, seria ilusório.

Martin Luther King, defensor das políticas universalistas, dizia que, contar apenas com elas, “não é realista”. Quando um homem se lança na corrida com três séculos de atraso, é praticamente impossível superar a defasagem que o separa dos que largaram na frente. Milagres não existem. Vontade política, sim. Tardava que o debate sobre a questão racial fosse enfrentado com coragem pela sociedade brasileira. Para que se avance nele é essencial que ganhe as páginas desta Folha e de toda a imprensa. Contudo, se avançar no debate significa destruir quem pensa diferente, falsear intenções e escamotear a verdade, então o risco de sermos ineficazes e inócuos na nossa ação é grande. E com isso, não estaremos ajudando a combater com efetividade o racismo.

Intelectuais lançam manifesto contra cotas

O jornal O Globo publicou a seguinte matéria sobre o manifesto, na sexta feira 30 de junho:

Intelectuais lançam manifesto contra cotas

Texto entregue aos presidentes do Senado e da Câmara pede rejeição de projetos que reservam vagas em universidades

BRASÍLIA. Um grupo de 114 intelectuais, artistas e ativistas do movimento negro, entre eles o cantor e compositor Caetano Veloso, o poeta Ferreira Gullar e a professora Yvonne Maggie, lançou ontem manifesto contra o projeto de lei que institui a política de cotas nas universidades federais e o que cria o Estatuto da Igualdade Racial, com reserva de vagas para negros no ensino superior e no serviço público. Cinco dos signatários entregaram o documento aos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP).

Intitulado “Carta Pública ao Congresso Nacional – Todos têm direitos iguais na República democrática”, o texto pede aos parlamentares que rejeitem os dois projetos. O argumento é que a adoção de políticas específicas para negros pode acirrar conflitos raciais ao dar status jurídico ao conceito de raça, além de não atacar o problema estrutural da desigualdade no país, que é a falta de acesso universal à educação de qualidade.

Aldo disse ter restrições ao modelo de cotas raciais adotado nos Estados Unidos, com reserva de vagas para negros tal qual prevê o Estatuto da Igualdade Racial e, em menor escala, ao projeto de cotas nas universidades federais proposto pelo MEC, que reserva 50% das vagas para alunos da escola pública, com subcota para negros e índios.

Pré-vestibulares para os pobres

O manifesto é assinado pelo ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Simon Schwartzman e pela ex-secretária de Política Educacional do Ministério da Educação Eunice Durham, ambos no governo Fernando Henrique. Eunice é favorável à criação de cursos pré-vestibulares para a população pobre.

– Políticas contra a pobreza são necessárias e incluem necessariamente a população não-branca. Mas não se trata somente de abrir espaço e sim de dar oportunidades de estudo e trabalho a quem necessita. O que explica a pobreza de grande parte da população não-branca no Brasil não é a discriminação, mas a falta de oportunidades, que afeta também um grande número de brancos, e que não podem ser discriminados – disse Schwartzman em entrevista por e-mail.

– A universidade não é prêmio para a injustiça passada. Não se repara injustiça premiando descendentes de quem foi vítima da injustiça – disse Eunice.

Autor do projeto do Estatuto da Igualdade Racial, o senador Paulo Paim (PT-RS) disse que a proposta tem o objetivo de reparar a população negra pelo sofrimento e pela falta de oportunidades decorrentes da escravidão. Paim afirmou que ainda são raros os negros que ocupam cargos na direção de empresas ou instituições bancárias:

– Esse é um manifesto da elite, pois dar espaço aos negros não interessa. Hoje temos política de cotas para mulheres nos partidos políticos e ninguém reclama.

Manifesto sobre as propostas de política racial para o Brasil

O seguinte manifesto está sendo divulgado hoje, com mais de cem assinaturas, entre as quais a minha:

Todos têm direitos iguais na República Democrática

O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a uma decisão final no Congresso Nacional.

O PL de Cotas torna compulsória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições federais de ensino superior. O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas raciais na contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela “raça”. A história já condenou dolorosamente estas tentativas.

Os defensores desses projetos argumentam que as cotas raciais constituem política compensatória voltada para amenizar as desigualdades sociais. O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que esta situação pouco se altere. Em decorrência disso, haveria a necessidade de políticas sociais que compensassem os que foram prejudicados no passado, ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam a corrigir um mal maior.

Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos “raciais” estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica.

A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades.

Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida íntima e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços públicos; que se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante do caminho de toda a humanidade para um futuro onde a palavra felicidade não seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e pelo que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de seu caráter.

Nos dirigimos ao congresso nacional, seus deputados e senadores, pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade Racial) em nome da República Democrática.

Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006.

Adel Daher Filho – Diretor do Sindicato dos Ferroviários de SP-Bauru/MS e MT; Adilson Mariano – Vereador PT Joinville (SC); Alberto Aggio – Professor livre-docente de História, UNESP/campus de Franca; Alberto de Mello e Souza – Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ; Almir da Silva Lima – Jornalista, MOMACUNE (Movimento Macaense Culturas Negras, Macaé-RJ); Amandio Gomes – Professor do Instituto de Psicologia da UFRJ e do PPGHC (IFCS-UFRJ); Ana Teresa Venancio – Antropóloga, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz; André Campos – Professor do Departamento de História da UFF e da UERJ; André Côrtes de Oliveira – Professor; Angela Porto – Historiadora, Pesquisadora do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz; Anna Veronica Mautner – Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de S.Paulo e colunista da Folha de S. Paulo.; Antonio Carlos Jucá de Sampaio, Professor Adjunto do Departamento de História – UFRJ; Antonio Cícero – Poeta e ensaísta; Antonio Marques Cardoso (Ferreirinha) – Fábrica Cipla (Ocupada pelos Trabalhadores), Joinville/SC; Aurélio Carlos Marques de Moura – Presidente do Conselho Municipal de Cultura da Serra (ES) e da Associação Cultural Afro-brasileira “Ibó de Zambi”; Bernardo Kocher – Professor Departamento de História da UFF; Bernardo Sorj – Professor titular de sociologia UFRJ; Bila Sorj – Professora titular de sociologia UFRJ; Bolivar Lamounier – Cientista Político; Cacilda da Silva Machado – Professora do Departamento de História da UFPR (PR); Caetano Veloso; Carlos Costa Ribeiro – Professor; atuou como especialista contratado no Programa das Nações Unidas Para o Meio Ambiente – PNUMA/UNEP; Claudia Travassos – Pesquisadora Titular da Fundação Oswaldo Cruz; Cláudia Wasserman – Professora Adjunta de História da UFRGS; Celia Maria Marinho de Azevedo – Historiadora; Célia Tavares – Professora Adjunta de História (FFP/UERJ); Cyro Borges Jr. – Professor Adjunto do Departamento de Engenharia Mecânica da UERJ; Darcy Fontoura de Almeida – Professor Emérito, UFRJ; Demétrio Magnoli – Sociólogo e articulista da Folha de S. Paulo; Dilene Nascimento – Historiadora, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz; Domingos de Leers Guimaraens – Artista Visual; Dominichi Miranda de Sá – Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz; Egberto Gaspar de Moura – Professor Titular de Fisiologia, Instituto de Biologia, UERJ; Elvira Carvajal – Professora de Biologia Molecular e Genética, UERJ; Eunice R. Durham – Professora titular de Antropologia, Professora emérita da FFLCH da USP; Fabiano Gontijo – Professor Adjunto de Antropologia, Departamento de Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Programa de Pós-Graduação em Letras, UFPI; Fernanda Martins – Pesquisadora da Fundação Oscar Niemayer (RJ); Fernando Roberto de Freitas Almeida – Coordenador do curso de Economia da Faculdade Moraes Junior/Universidade Presbiteriana Mackenzie-Rio; Ferreira Gullar – Poeta; Francisco Martinho – Professor de História da UERJ; George de Cerqueira Leite Zarur – Professor Internacional da Flacso e Consultor Legislativo da Área de Educação Superior da Câmara dos Deputados; Gilberto Hochman – Cientista Político pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ; Gilberto Velho – Professor titular e decano do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Ciências; Gilda Portugal – Professora de Sociologia da UNICAMP; Gilson Schwartz – Economista, Professor de Economia da Informação da ECA-USP e Diretor da Cidade do Conhecimento (USP); Giselda Brito – Professora Adjunta de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco; Gláucia K. Villas Boas – Vice-Diretora do IFCS/UFRJ e professora do departamento de Sociologia da UFRJ; Guilherme Amaral Luz – Professor do Instituto de História da UFU; Guita Debert – Professora Titular de Antropologia do Departamento de Antropologia UNICAMP; Helena Lewin – Professora Titular aposentada da UFF; Hercidia Mara Facuri Coelho – Pró-reitora, Universidade de Franca (UNIFRAN); Hugo Rogélio Suppo – Professor adjunto de História da UERJ; Icléia Thiesen – Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Memória Social da UNI-Rio; Isabel Lustosa – Pesquisadora Titular da Fundação Casa de Rui Barbosa; João Amado – Mestrando em História da UERJ e professor da rede pública; João Leão Sattamini Netto – Economista, membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Comodante do Museu de Arte Contemporânea de Niterói; João Paulo Coelho de Souza Rodrigues – DECIS, UFSJ; John Michael Norvell – Professor Visitante, Pitzer College, Claremont, CA EUA; José Augusto Drummond – Cientista político, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS/UnB); José Carlos Miranda – Diretório Estadual do PT SP, Coordenação do Comitê por um Movimento Negro Socialista (MNS); José Roberto Ferreira Militão – Advogado, AFROSOL-LUX – Promotora de Soluções em Economia Solidária; José Roberto Pinto de Góes – Professor da História da UERJ; Josué Pereira da Silva – Professor de sociologia, IFCH, UNICAMP; Kátia Maciel – N-Imagem – Escola de Comunicação da UFRJ; Kenneth Rochel de Camargo Jr. – Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ; Laiana Lannes de Oliveira – Professora de História da PUC (RJ); Lena Lavinas – Professora do Instituto de Economia da UFRJ; Lilia K. Moritz Schwarcz – Professora Titular de Antropologia da USP; Lucia Lippi Oliveira – Socióloga, pesquisadora e professora do CPDOC/FGV; Lúcia Schmidt – Professora Adjunta da Faculdade de Engenharia da UERJ; Luciana da Cunha Oliveira – Mestranda em História pela UFF e professora da rede pública de ensino; Luiz Alphonsus de Guimaraens – Artista Plástico; Luiz Fernando Almeida Pereira – Professor de Sociologia da PUC-Rio; Luiz Fernando Dias Duarte – Professor do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ; Luiz Werneck Vianna – Professor titular do IUPERJ; Madel T. Luz – Professora Titular do Instituto de Medicina Social da UERJ; Magali Romero Sá – Historiadora, Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ; Manolo Florentino – Professor de história, IFCS/UFRJ; Marcos Chor Maio – Sociólogo, Fundação Oswaldo Cruz; Maria Alice Resende de Carvalho – Socióloga, professora do IUPERJ; Maria Conceição Pinto de Góes – Pós-Graduação em História Comparada, UFRJ; Maria Hermínia Tavares de Almeida – Professora Titular de Ciência Política da USP; Maria Sylvia de Carvalho Franco – Professora Titular de Filosofia, Unicamp; Mariza Peirano – Professora titular de antropologia, UnB; Mirian Goldenberg – Professora de Antropologia IFCS-UFRJ; Moacyr Góes – Diretor de cinema e teatro; Mônica Grin – Professora do departamento de História da UFRJ; Monique Franco – Professora FFP/UERJ; Nisia Trindade Lima – Socióloga, Fundação Oswaldo Cruz; Oliveiros S. Ferreira – Professor de Política na PUC-SP e USP-SP; Paulo Kramer – Professor do Departamento de Ciência Política da UnB; Peter Fry – Professor titular de antropologia UFRJ; Priscilla Mouta Marques – Professora de Português e Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa, auxiliar de pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz; Ronaldo Vainfas – Professor Titular de História Moderna da Universidade Federal Fluminense; Renata da Costa Vaz – Diretora do Sindicato Servidores Públicos Municipais Campinas/SP; Renato Lessa – Professor titular do IUPERJ; Ricardo Ventura Santos – Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e Professor do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, UFRJ; Rita de Cássia Fazzi – Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC (MG); Roberto Romano – Professor Titular de Filosofia, Unicamp; Roney Cytrynowicz – Historiador; Roque Ferreira – Coordenador Nacional da Federação dos Trabalhadores sobre Trilhos – CUT, Conselho Comunidade Negra Bauru-SP; Serge Goulart – Integrante do Diretório Nacional do PT; Sergio Danilo Pena – Professor Titular do Depto. Bioquímica e Imunologia da UFMG; Silvana Santiago – historiadora; Silvia Figueiroa – Historiadora, Professora do Instituto de Geociências da UNICAMP; Simon Schwartzman – Presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro; Simone Monteiro – Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz; Ubiratan Iorio – Professor Adjunto da UERJ e Presidente do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (Cieep); Uliana Dias Campos Ferlim – Cantora e professora, mestre em história; Vicente Palermo – Instituto Gino Germani, Buenos Aires, Conicet, Argentina; Wanderley Guilherme dos Santos – Cientista político; Wlamir José da Silva – Professor Adjunto de História da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); Yvonne Maggie – Professora titular de antropologia IFCS/UFRJ; Zelito Vianna – Cineasta.

O parto da montanha

O texto final da proposta de reforma do ensino superior, apresentado com tanta fanfarra pelo governo no início do Ministério Tarso Genro, resultou em uma proposta tímida, que insiste em erros antigos e não lida com os temas importantes, e que dificilmente passará pelo Congresso neste ano eleitoral. Junto com Cláudio de Moura Castro, fizemos uma série de comentários sobre as sucessivas versões deste projeto, o último dos quais, “O Parto da Montaha”, sobre esta versão mais recente, disponível aqui.

Os equívocos e a falta de clareza do Ministério da Educação na área do ensino superior são dissecados com lucidês em um texto preparado por José Luis da Silva Valente, que foi Diretor do Departamento de Desenvolvimento do Ensino Superior da SESu/MEC na gestão de Paulo Renato e trabalha hoje em uma empresa privada, a VMD BRASIL Consultoria Educacional.

Como nos tempos do Estado Novo: obrigatoriedade da sociologia e filosofia no ensino medio

Tenho recebido uma chuva de mensagens pedindo apoio para a campanha para tornar obrigatório o ensino de sociologia e filosofia no ensino médio. O principal promotor desta campanha é o sindicato dos sociólogos de São Paulo. A Lei de Diretrizes e Bases diz que os estudantes oriundos do ensino médio devem demonstrar ” domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Ora, quem sabe sociologia e filosofia são os sociólogos e filósofos formados nestas disciplinas, e quando a lei passar a ser cumprida, eles serão contratados para dar estes cursos, criando um grande mercado de trabalho para estas profissões e, ao mesmo tempo, formando melhores cidadãos para o pais. Bom para os sociólogos e filósofos profissionais, e bom para todo mundo. Certo?

Não, errado! No passado, a tradição era que o governo definia, nacionalmente, os currículos de todos os cursos, que eram obrigatórios para todas as escolas. A conseqüência era que o ensino se dava de forma burocrática, ritualizada, e os estudantes tinham que aprender um amontoado de conhecimentos inúteis e mal dados, que eram esquecidos rapidamente. Em grande parte, isto ainda é assim. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, ainda que de forma imperfeita, buscou mudar isto. Ela estabelece, de forma bastante ampla, que os estudantes devem adquirir conhecimentos de ciências naturais, linguagem e ciências sociais e humanas, e que os governos, nos seus diferentes níveis. devem estabelecer as “competências e diretrizes” da educação em seus diversos níveis, “que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos” dos diferentes cursos. Ela menciona filosofia e sociologia (erradamente, me parece), da mesma forma que poderia mencionar disciplinas tradicionais do ensino médio, como geografia e historia, e disciplinas que obviamente deveriam existir, como o direito, a economia, a computação e a estatística. Em principio, cada escola deveria poder organizar seu programa de estudos como achasse melhor, e os estados e municípios poderiam estabelecer requisitos mais específicos para seu âmbito de atuação, que as escolas deveriam atender, sem perder sua autonomia.

Mas o publico, de uma maneira geral, não entendeu isto, e os governantes tampouco. As demandas pelo ensino obrigatório de diferentes disciplinas não para de crescer: educação ambiental, língua castelhana, agora sociologia e filosofia – porque não antropologia e demografia, e trazer de volta a historia e geografia, e mais a economia e o direito, sem falar das novas áreas cientificas e técnicas, como computação, biotecnologia e nanotecnologia? E a teologia, ou religião? Milhares de novos professores seriam contratados para estes cursos obrigatórios, e os alunos que se virem para entender e memorizar todos estes novos conteúdos!

Isto não tem como dar certo. Do ponto de vista dos alunos, este tipo de educação enciclopédica, formada pela soma de pequenos fragmentos de conhecimentos das diversas disciplinas, não faz o menor sentido. O estudantes precisam dominar a linguagem verbal e simbólica das matemáticas, e é importante que entendam o que são as ciências, o que é o mundo das relações sociais e econômicas, e o que são as instituições. Isto pode ser feito de muitas maneiras diferentes, e existem formas de verificar se de fato estes conhecimentos básicos estão sendo adquiridos e incorporados (vejam por exemplo as avaliações internacionais da OECD, o PISA). O mais importante não é o conhecimento extenso, de um monte de fragmentos, mas o conhecimento o mais aprofundado possível de algumas áreas, com as quais as escolas possam ter mais afinidade. No nível médio, algumas escolas podem preferir se aprofundar na formação literária, outras na formação em ciências biológicas, outras na formação filosófica ou sociológica, ou em determinadas línguas estrangeiras. Idealmente, os alunos, e suas famílias, deveriam poder escolher as escolas conforme suas especialidades. Mesmo não havendo esta possibilidade, se a escola trabalhar bem seus temas, o mais provável é que todos os alunos se beneficiem.

Meus colegas do sindicato de sociólogos que me perdoem, mas sociologia não é, nunca foi e provavelmente nunca será uma profissão, e sim uma disciplina acadêmica, com fronteiras pouco definidas e conteúdos muito variáveis. Como disciplina, ela se aproxima mais de áreas como a filosofia, antropologia e economia do que das profissões estabelecidas como o direito ou a medicina. Os conhecimentos relativos ao mundo das relações sociais, assim como das questões da ética e da moralidade, não são privilégios dos sociólogos e filósofos portadores dos respectivos diplomas, mas estão presentes, de diversas formas, em outras disciplinas, como a teologia, a antropologia, o direito, a historia e a critica literária. Fazer com que as escolas contratem, obrigatoriamente, pessoas com diplomas de sociólogo ou filosofo não é nenhuma garantia de que os estudantes irão adquirir conhecimentos relevantes nestas áreas, inclusive porque a Lei de Diretrizes e Bases não diz, nem teria como dizer, que conteúdos específicos em sociologia ou filosofia os estudantes deveriam aprender. Dada a qualidade geralmente precária dos cursos superiores de sociologia e filosofia no pais, criar esta obrigatoriedade seria, simplesmente, enrijecer ainda mais o currículo escolar, e tornar o ensino médio pior ainda do que já é .

Eu vejo um papel importante para sociólogos e filósofos em relação ao ensino médio, que é o de pensar e propor, a partir de seus conhecimentos, conteúdos que poderiam ser de interesse das escolas, preparando livros e materiais pedagógicos de qualidade, e tratando de convencer as escolas da importância de seus conhecimentos para a formação dos jovens. Mas isto deve ser feito de baixo para cima, a partir do trabalho com as escolas, e não de cima para baixo, pela promulgação de leis de ensino obrigatório, como nos velhos tempos do Estado Novo.

As organizações da sociedade civil e a democracia

No dia 25 de maio, participei do 4o. Congresso GIFE sobre investimento social privado, em Curitiba, aonde apresentei os resultados  do Censo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, que me coube analisar (publicado em dois volumes, um geral, e outro específico sobre as ações na área de educação.. O GIFE tem hoje mais de 90 associados, e reúne as principais instituições privadas que desenvolvem investimentos sociais no país. Estima-se que os associados do GIFE gastem cerca de 1 bilhão de reais por ano, sobretudo na área da educação. É muito dinheiro, mesmo se comparado com os gastos públicos do setor educacional – cerca de 15 bilhões por parte do governo federal e 40 bilhões dos governos estaduais, além dos gastos dos municípios e das famílias.

No passado, os investimentos sociais das empresas eram feitos sobretudo como filantropia, ou como instrumento de marketing institucional. Hoje, cada vez mais, o tema da responsabilidade social das empresas ganha o primeiro plano, e uma questão que se coloca é se as empresas não estariam, de alguma forma, tratando de desempenhar uma função que seria eminentemente pública. Em um extremo, estes investimentos podem estar suprindo carências que seriam da responsabilidade do setor público, aonde ele não consegue chegar. No outro extremo, estes gastos poderiam estar abrindo espaços para novas experiências e desenvolvendo novos modelos de atuação que poderiam beneficiar a sociedade como um todo. Entre os dois, estes gastos podem estar tendo uma função filantrópica importante, mas limitada ao âmbito de atuação das instituições, sem impactos externos mais amplos. Os dados do Censo, ainda que limitados, sugerem que é ainda sobretudo isto o que está acontecendo.

O tema reapareceu, de uma outra forma, na reunião sobre “Sociedade civil e democracia na América Latina: crise e reinvenção da política” organizada pelo Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e o Instituto FHC em São Paulo, nos dias 26 e 27. O paper inicial de Bernardo Sorj colocou a questão: em que medida as instituições políticas tradicionais – os partidos políticos, o Congresso, o próprio executivo – estariam sendo substituídos por ONGS – as organizações não governamentais – e qual a conseqüência disto para a Democracia? O caso do Chile, apresentado por Ernesto Ottone, serviu como evidência de que a verdadeira democracia se constrói com partidos políticos e instituições públicas consolidadas, elementos que faltam ou estão em crise em outros paises da região – Argentina, Brasil, Peru, Bolívia.

Não é uma discussão simples, e é claro que as instituições que participam do GIFE são muito diferentes do que normalmente se pensa quando se fala das novas ONGs. Para de Tocqueville, a base da democracia americana, duzentos anos atrás, era justamente a fortaleza das organizações da sociedade civil que, segundo autores mais recentes (Robert Putman, Bowling Alone) estariam desaparecendo, ou se transformando em lobbies e grupos de pressão. Que espaço existe ainda, na América Latina, para as instituições políticas mais tradicionais, e o que se pode esperar da combinação entre governos de base plebiscitária e estes novos atores sociais?

Inversão de prioridades no projeto de reforma do ensino superior

Os jornais têm noticiado que já existe uma nova proposta de reforma universitária na Casa Civil, pronta para ser enviada ao Congresso para aprovação. Vi referências a muitos aspectos desta versão, mas não consegui ver ainda o texto final. Pelo que tem sido publicado, ela manteria a elevação para 75% dos recursos de educação do governo federal para o ensino superior, em detrimento da educação básica. Carlos Henrique Araujo e Nildo Luzio escreveram recentemente o seguinte texto a rspeito:

É extremamente preocupante o estabelecimento de um percentual obrigatório de pelo menos 75% dos recursos do Ministério da Educação a serem aplicados no ensino superior. Com isso, o projeto de Reforma Universitária do Governo do Partido dos Trabalhadores poderá gerar repercussões negativas para as gerações futuras.

Alguns dados da realidade, não levados em conta, evidenciam como o Ministério da Educação, com essa proposta, pode estar contribuindo para aumentar a desigualdade no sistema de ensino nacional, já tão vilipendiado. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, o Inep, órgão responsável pela estatística educacional, em 2002, o investimento público médio em todas as modalidades da educação básica foi de R$ 900,00 por aluno e, no ensino superior, de R$ 10.534,00. Isso corresponde à razão de menos um real aplicado no nível básico para cada 11 reais gastos diretamente no ensino superior.

Alguns dirão que isso é razoável, pois manter o estudante na universidade é necessariamente mais caro do que no ensino básico. De fato, porém, a razão de investimento entre os níveis, como acontece no Brasil, não encontra precedentes quando comparados com outros países, especialmente os que têm melhores indicadores educacionais e sociais, o que não é o caso do Brasil. Alguns dados podem ajudar a refletir melhor sobre o tema.

A razão de aplicação de recursos públicos entre o secundário e o superior, por aluno, é de 1,7 vezes na República da Irlanda. Na Coréia do Sul, a distribuição dos gastos públicos por nível educacional mostra 34% aplicados na educação primária, 43,4% no secundário e 18,1% no nível superior. O restante dos recursos se divide em 1,2% para o pré-primário e 3,3% em programas de pesquisa e inovação. Esses são somente dois exemplos.

O Ministro da Educação disse que as Universidades serão chamadas a cumprir metas, com indicadores objetivos de resultados, contemplando aspectos como número de alunos por professores e número médio de aulas por docente a cada semana, dentre outros indicadores. No entanto, o que se vê no Brasil é que as Universidades foram capturadas por interesses corporativos de funcionários e professores. Os sindicatos advogam sempre pela autonomia. No entanto, não é aceitável que as instituições não prestem contas do dinheiro público ali investido. Além disso, não há na proposta nenhuma garantia legal de que a responsabilização relativa à aplicação dos recursos esteja garantida. Se estivesse, menos mal.

O que é mais preocupante é o fato de que a educação básica ainda carece de muito incremento. Uma análise séria sobre a área deve, necessariamente, partir das dimensões cruciais a serem consideradas, ou seja, acesso, fluxo escolar e qualidade dos resultados, sobretudo os de aprendizagem.

O que se nota, hoje, é que apenas o acesso, no ensino fundamental, está resolvido. Contudo, o fluxo e os resultados de aprendizagem são um verdadeiro desastre. Para resolvê-los, é preciso aumentar os recursos, notadamente entre os mais de 70% dos municípios brasileiros, com baixa arrecadação e capacidade de investimento. Por outro lado, é preciso ser mais rigoroso na adoção de programas. Estes devem atacar os reais problemas, com gerenciamento eficiente.
A reforma universitária, como está desenhada, vincula cada 0,75 de real do orçamento do Ministério da Educação para as universidades. Isso significa dizer que, no futuro, cada aumento possível, em situações de menor aperto fiscal e de maior esforço do Estado, com apoio da sociedade, irá para o ensino superior.

Não se advoga por deixar morrer a míngua as Universidades. Deve-se equacionar os problemas de financiamento das federais. Porém, até agora não se fez uma discussão séria em torno do assunto, considerando aspectos como pagamento de mensalidade, flexibilidade para captação de recursos junto aos setores privado e público e rigor na aplicação dos recursos assim obtidos. Estes são temas que não podem ser negligenciados para que se garanta recursos no futuro.

O financiamento das Instituições Federais de Ensino Superior pode se valer de outras fontes, além dos recursos orçamentários. Para tanto é necessário que as lideranças da maior parte dos professores e funcionários vejam o problema de forma menos dogmática e, de certa modo, ingênua.
É muito fácil propor reformas a partir da declaração de princípios ideológicos. Porém, quando se lida com recursos públicos vale reiterar a máxima de que não existe almoço grátis. Por isso é cada vez mais necessário definir prioridades. Certamente, seria mais pertinente garantir o básico com qualidade para nossos jovens. A reforma proposta pelo Ministério da Educação é conservadora e atrelada aos interesses coorporativos presentes na sociedade brasileira, que sempre privilegiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres. Aliás, exatamente o contrário do pregou o Partido dos Trabalhadores em seus mais de vinte anos militando na oposição.

Observando os dados de fluxo, vemos que ainda é forte o funil educacional em todo o Brasil. Hoje, estima-se que de cada 100 alunos que ingressam na 1a série do ensino fundamental cerca de 56 o concluem e não mais que 30 concluem o nível médio. Ao se olhar quem está se perdendo neste funil, constata-se o óbvio: são os mais pobres das regiões mais pobres. Aqueles que mais precisam do setor público e não contam com devolução do imposto de renda para subsidiar mensalidades de escolas particulares para seus filhos. É preciso uma verdadeira revolução das prioridades no setor educacional brasileiro para privilegiar os mais pobres, com uma educação básica de qualidade, capaz de propiciar uma verdadeira igualdade de oportunidades para o povo deste País.

O Brasil tem futuro?

A pergunta que eu mais ouço, e que aparece nas mensagens que recebo, depois da explosão de violência em São Paulo, é se o Brasil tem algum futuro, ou se as coisas vão continuar piorando cada vez mais. Eu prefiro pensar que tem futuro sim, mas que, no melhor dos casos, será um processo longo e difícil, e sujeito a recaídas. Já poderemos ficar contentes se a economia continuar estável e crescendo, ainda que pouco; se a violência cotidiana for se reduzindo, como vinha acontecendo em São Paulo e está acontecendo em cidades aonde existe uma política inteligente de segurança pública, como parece ocorrer em Belo Horizonte; e se a combinação de populismo e oportunismo não terminar por inviabilizar de vez o governo federal e muitos governos estaduais e locais, como já ocorreu, na prática, no Estado do Rio de Janeiro. Temos chance, mas também existe a possibilidade de que tudo dê para trás: as coisas sempre podem ficar piores do que a gente pensa.

É o máximo de otimismo que consigo ter no momento…

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