Confundindo o Estatuto da Igualdade Racial e política de cotas?

Fábio Konder Comparato tem razão ao dizer, em carta para o jornal, que meu artigo na Folha de São Paulo de ontem não se aplica ao projeto de cotas raciais para as universidades. De fato, meu artigo se referia a um outro projeto, denominado “Estatuto da Igualdade Racial”. No entanto, não há dúvida que os dois projetos têm inspiração similar, que é a de oficializar a classificação das pessoas em raças estanques, como se isto fosse necessário para enfrentar os problemas da desigualdade social e da discriminação.

Fábio Wanderley Reis: democracia racial e ação afirmativa

Fábio Wanderley Reis, que vem acompanhando o tema da ação afirmativa desde pelo menos o seminário promovido pelo Ministério da Justiça em Brasília dez anos atrás, disponibiliza o seu artigo sobre “Democracia Racial e Ação Afirmativa”, de 2004, publicado na revista Econômica, da Universidade Federal Fluminense, em um dossê sobre o tema organizado por Célia Kerstenetzky.

Das estatísticas de cor ao estatuto da raça

A Folha de São Paulo publica na edição de hoje um artigo meu com este título. Como o espaço de jornal é limitado, tive que cortar algumas partes, e reproduzo aqui o texto completo, com algumas correções:

O Brasil nunca soube lidar direito com as questões de cor e origem. Já houve tempo em que autores como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna acreditavam que os males do pais eram causados pelo sangue ruim dos negros e indígenas, problema que só seria resolvido, se fosse, com o branqueamento e purificação da raça. Mais tarde, Gilberto Freyre tentou difundir a idéia de uma civilização luso-tropical em que, apesar da escravidão, negros e brancos conviviam em harmonia. Nos anos 30 o Estado Novo proibia que filhos de imigrantes aprendessem a ler na língua materna, e botava na cadeia quem falasse alemão, italiano ou japonês nas ruas. Nos anos 50 e 60, os sociólogos marxistas da USP – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni – passaram a argumentar que, em última análise, as questões de raça ou nacionalidade eram questões de classe, que desapareceriam na medida em que aumentasse a consciência de classe dos pobres e proletários e a luta pelos seus direitos.

Nos anos 70, sociólogos de formação empírica do IUPERJ – Nelson do Valle e Silva, Carlos Hasembalg – mostraram que a “cor” – uma aproximação precária do conceito de raça nas estatísticas do IBGE que começvam a aparecer – tinha relação significativa com a condição de vida das pessoas de forma independente, embora correlacionada, de fatores como educação, profissão, etc. Os “pretos” e “pardos” percebem remuneração inferior pela mesma função e têm menos educação que os “brancos” na mesma faixa de renda. Junto com a divulgação destas estatísticas, começava a ganhar corpo um ataque frontal contra a imagem do Brasil como um país culturalmente homogêneo e racialmente integrado, cultivada desde D. Pedro II pelas agências de governo encarregadas da educação e da cultura.

A antiga imagem de integração e homogeneidade coexistia com a manutenção de milhões de pessoas à margem dos benefícios e da cultura oficiais, falando mal a língua, incapazes de entender a educação das escolas, e sentindo-se inferiorizados pela cor da pele e por seus antepassados negros e indígenas. A reorientação dos anos recentes buscou inverter por completo os termos do problema. Dali em diante, a interpretação “correta” passou a ser: “o Brasil é um país racista, marcado pelo preconceito e a discriminação. A igualdade formal e harmonia entre as raças são apenas discursos ideológicos para a ocultação das diferenças. É necessário denunciar tais mitos, criar leis que reconheçam as diferenças, atribuir novos direitos aos discriminados e compensá-los pelas perdas e sofrimentos do passado. Ao invés da falsa harmonia das três raças, as crianças devem aprender nas escolas a história maldita da discriminação e do preconceito. A cultura a estimular não deve mais ser a cultura erudita, dos brancos, mas a cultura popular, das comunidades pobres e dos negros.” O projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que o Congresso está a ponto de aprovar, pretende consagrar e transformar em ideologia oficial essa nova interpretação da sociedade brasileira.

O Estatuto é uma monstruosidade jurídica e conceitual. Ele pretende obrigar todas as pessoas a se classificarem como brancos ou afro-brasileiros nos documentos oficiais, ignorando os milhões que não se consideram nem uma coisa nem outra, e não reconhece a existência dos descendentes das populações indígenas, o grupo mais discriminado e sofrido da história brasileira. A partir daí, ele introduz direitos especiais para os afro-brasileiros na saúde, na educação, no mercado de trabalho, na justiça e em outros setores. Os direitos que o projeto de Estatuto pretende assegurar não são apenas os direitos humanos, individuais e coletivos tradicionalmente reconhecidos em nossa tradição constitucional – e que devem ser garantidos a todos. O que o projeto tem principalmente em vista é um novo direito a reparações; reparações supostamente devidas a uma categoria social, os afro-brasileiros, e que deverão ser pagas por outra categoria social – os brancos, inclusive os pobres e os filhos de imigrantes recentes, considerados coletivamente culpados e de antemão condenados pelas discriminações de hoje e de ontem. O Estatuto abole o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei e cria uma nova categoria de cidadãos, os afro-brasileiros, definidos de forma vaga e arbitrária como “as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”, presumivelmente relegando os demais, de forma implícita, a uma categoria de branco-brasileiros.

Basta pensar um pouco para darmo-nos conta de que não temos porque que optar entre as antigas ideologias da harmonia racial e cultural e a implantação de um regime de apartheid no pais, em que supostas identidades e direitos raciais se oficializem e predominem sobre o desempenho das pessoas e seu direito e liberdade de escolher e desenvolver suas próprias identidades. Nem tudo que diziam os sociólogos do passado estava errado. É certo, como observou Oracy Nogueira, que o preconceito de cor, que existe no Brasil, com infinitas gradações e matizes, é profundamente diferente do preconceito de origem que existe nos Estados Unidos, que divide a sociedade em grupos estanques, e por isto não é possível interpretar a sociedade brasileira com os óculos norte-americanos (comparações com paises como Cuba e República Dominicana fazem muito mais sentido). É certo que a “cor” tem uma relação negativa com a distribuição de oportunidades, mas a má qualidade da educação, as limitações do mercado de trabalho e a precariedade dos serviços de saúde, que afetam a todos, têm efeitos muito maiores.

Existe preconceito racial no Brasil? Sim. Mas existe também uma importante história de convivência e aceitação de diferenças raciais, religiosas e culturais, um patrimônio a ser aperfeiçoado. Por que não progredir no caminho que vem sendo tentado, identificando situações específicas de discriminação e agindo contra elas, sem dividir a sociedade em “raças” estanques ? Valorizar a cultura, as histórias e as identidades dos diferentes grupos e etnias no país é um objetivo importante, mas é perfeitamente possível alcançá-lo sem dar as costas para a cultura universal, da qual queremos e precisamos participar.

A opção é simples: de um lado, uma sociedade em que o governo não se imiscui na identidade e na vida privadas das pessoas, em que o princípio constitucional da igualdade é mantido, e em que as políticas sociais lidam com as causas da pobreza e da desigualdade; de outro, uma sociedade em que a cidadania passa a comportar “graus”, em função da cor da pele de cada um, a ser definida pelo movimento social, partido político ou pelo burocrata de plantão. Um país com políticas sociais baseadas em critérios de culpa, expiação e reparação de pecados coletivos, com a substituição da antiga ideologia oficial de igualdade racial por outra, também abominável, de preconceito e perene conflito e discriminação entre raças antagônicas.

Archibald Haller: Estratificação Social, Educação e Raça no Brasil

O professor Archibald Haller, que formou gerações de sociólogos brasileiros na Universidade de Wisconsin, Madison, nos envia a seguinte contribuição:

Research using PNAD data of the last quarter of the 20th Century has yielded several results that may be of some importance in the current debates about education and about race.

These analyses were carried out by teams at the University of Wisconsin-Madison USA, and included (among others) researchers now at several other universities: USP, UFMG, the Australian National University, and the University of Iowa. Different specific studies used one or another of the labor force PNADs. But they share certain methodological characteristics. Each uses tightly controlled statistical procedures resulting in conclusions which, though surprizing, would be hard to challenge. All but one set of the findings summarized below has been published.

1. In 1992 the late Helcio Saraiva and I used 1973 and 1982 data. For working men the average income increment per each additional year of education was about 9% in 1973 and 7% in 1982. For working women the corresponding rates were about 8% and 7%. So the greater the number of additional years of education one gains, the greater the already substantial effect of one’s education on one’s income.

This analysis also checked the income increment for each individual year of additional education for those starting at zero years and getting one year, those starting with one year and getting a second year and so on up to those who at 14 years would add a 15th. This excercize showed that — as many have predicted — credentials count: the income increment is higher if one starts at zero and finishes year 1 than if one starts at 1 year and then finishes year 2. Finishing each of the standard termination years (yr.4, yr.8, etc) is more fruitful than stopping in between them. However: contrary to the skeptics, adding a year over what one already has raises income EVEN if that year is between normal termination years. This seems to mean that the LEARNING one gets from education pays off (again, contrary to the skeptics).

2. In 2005 Jorge Alexandre Neves (UFMG) published an article along the lines of the above, but using only the nation’s rural farm personnel. He used the PNADs of 1973,1982,1nd 1988. Contrary to previous research (badly done) and common belief, the income increment to each additional year of education was around 9% in 1973 and 1982, and 5% in 1988.

3. In 2001 Jonathan Kelley (ANU) and I published an analysis of the effect industrial development on income, comparing the less developed Northeast with the more developed South (our definition of these regions [see Haller 1982: Geographical Review]). All classes of workers gain, and in about equal proportions. 40% of the gains were due to education, 10% to occupational upgrading, and 50% to better paying jobs.

In a still unpublished paper (Kelley, myself, and W. Haller [Clemson University]), we retested the same hypothesis by comparing Brazil as a whole (except Amazonia) as industrialization proceeded between 1973 and 1988. Results: Practically identical to those of the 2001 paper. The pay of each occupational group, lowest to highest, grew at about in about the same proportion as every other group: 1% to 2% per year. About 40% of the income growth came from better pay per job, about 10% from occupational upgrading, and about 50% from educational growth.

4. In 2005 Danielle C. Fernandes (UFMG) published an analysis of race, socioeconomic development and education, using age cohorts from the 1988 PNAD. She concluded 1. ‘that the transformations brought about by industrialization have not decreased the effect of the socioeconomic determinants of educational stratification in Brazil’. 2. that race shows its strongest effects at both the lower and the higher levels of educational attainment, and its weakest in the middle. 3. At least as importan, the ‘transformations brought about by industrialization have lessened neither the effects of socioeconomic origins nor of race. Indeed there is compelling evidence that the negative effects of being Black or Mullato have increased’.

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Haller and Saraiva (1992). The income effects of education in a developing country: Brazil–1973 and 1982. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILTIY 11: 295-336.

Neves (2005). Labor force classes and the earnings determination of the farm poulation in Brazil: 1073, 1982, and 1988. THE SHAPE OF SOCIAL INEQUALITY: STRATIFICATION AND ETHNICITY IN COMPARATIVE PERSPECTIVE. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILITY 22: 424-475. (Oxford: Elsevier.)

Kelley and Haller (2001). Working class wages during early industrialization: Brazilian evidence. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILITY 18: 119-161.

Fernandes (2005) Race, socioeconomic development and the educational stratification process in Brazil. THE SHAPE OF SOCIAL STRATIFICATION AND ETHNICITY IN COMPARATIVE PERSPECTIVE. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILITY 22: 365-422. (Oxford: Elsevier.)

A querela das cartilhas – 2

João Batista de Araujo e Oliveira enviou a seguinte carta a Hélio Schwartsman, que está compartindo também com este blog:

Prezado Jornalista Hélio Schwartsman:

Muito salutar e prudente sua intervenção no debate sobre alfabetização. Sem elencar os vários e importantes méritos do mesmo, e sem apontar algumas impropriedades justificáveis pela sua qualificação, permita-me aprofundar dois aspectos. Em deferência à sua formação filosófica, falarei de condições necessárias e suficientes.

Das condições necessárias. Você coloca nos devidos termos o que o Ministro Fernando Haddad propôs: um debate sobre alfabetização. Ele não falou em métodos nem em cartilhas. No artigo que publiquei a convite da Folha, listei quatro tópicos que me parecem essenciais para o debate avançar e que seria importante discutir nessa ordem: o que é alfabetização, quais os métodos mais eficazes, quais os materiais mais eficazes e como avaliar para saber se o aluno sabe ler e escrever. É infrutífero falar de métodos ou materiais (cartilhas) sem um acerto sobre o conceito de alfabetização. Essa discussão só vingará se o Ministro da Educação criar o foro e um mecanismo adequado para conduzi-la e chegar a bom termo – como já ocorreu na maioria dos países. Estabelecer uma política adequada de alfabetização é a condição necessária para alfabetizar. E isso depende essencialmente da revisão dos Parâmetros Curriculares Nacionais de alfabetização pelo MEC.

Das condições suficientes. Aqui há duas vertentes. A primeira trata das condições suficientes para alfabetizar. Se tivermos clareza sobre o tema, materiais e métodos adequados, caberá às Secretarias, escolas e professores prover as condições suficientes. Felizmente alfabetização é uma etapa que pode ser vencida pela esmagadora maioria das crianças – independentemente de QI ou nível sócio-econômico. Esta é uma batalha que o Brasil pode vencer em espaço relativamente curto de tempo – e que independente da Grande Revolução Educacional. É possível mobilizar o país e as escolas para assegurar a alfabetização das crianças.

A outra vertente são as condições suficientes para a escola funcionar e para a alfabetização se tornar num instrumento útil para a escola e para a vida. As pesquisas do Instituto Montenegro confirmam a forte associação entre anos de escolaridade e compreensão. Com até 3 anos de escolaridade, apenas 15% das pessoas atingem um nível básico de compreensão. Com até 7 anos de escolaridade, esse número passa para 55%. Essas pessoas são capazes de fazer sentido do que lêem, mas ainda não possuem as condições para uma leitura crítica. Fazer a escola funcionar requer muito mais do que alfabetizar. Mas sem primeiro alfabetizar, a escola nunca vai funcionar. Só alfabetizar não resolve, mas ainda não conseguimos nem fazer isso bem, para a maioria das crianças.

Entendo que a falsa polêmica de que trata seu artigo se refira às pessoas que se recusam a discutir a especificidade da alfabetização em nome de uma revolução educacional. Não vi ninguém defender que apenas cartilhas, métodos ou mesmo que a alfabetização, por si só, resolve todos os problemas da educação.

Apenas para concluir: Piaget está para a Ciência Cognitiva da Leitura e para a Psicologia Cognitiva contemporânea como as idéias de Haeckel sobre ontogênese e filogênese estão para a pesquisa do genoma. Ambos merecem toda nossa admiração e respeito, e no máximo dois parágrafos em livros de história dessas ciências. Oxalá os seguidores de Piaget estivessem à altura de seus calcanhares!

A querela das cartilhas

Hélio Schwartsman (não é meu parente!) publica hoje na Folha de São Paulo um artigo sobre “A Querela das Cartilhas”. Ele vê mérito nos diferentes métodos, acha importante o tema, mas conclui que “daí não se segue que nossos péssimos índices de sucesso na alfabetização sejam conseqüência direta da presença ou da ausência de cartilhas e outros materiais didáticos. Candidatos mais verossímeis para explicar os fracassos da escola pública na alfabetização são o despreparo dos professores, as classes superlotadas, a falta de estímulos à leitura no ambiente familiar, o pouco envolvimento da comunidade no processo educacional e o acesso limitado das crianças à pré-escola. Mudanças na forma de ensinar sempre podem produzir ganhos incrementais. Mas defender esse tipo de discussão não implica aceitar a falsa polêmica que se esboça. Pelo contrário, devemos rejeitá-la. Ela apenas lança uma cortina de fumaça sobre o crime continuado que há anos perpetramos contra o país ao não tornar a educação básica a prioridade nacional.”

Tudo a favor de fazer da educação uma prioridade nacional. Mas a questão dos métodos de ensino, que não se reduz ao uso ou não uso das antigas cartilhas, não pode ser desqualificada. Os filhos dele, como os meus, aprendem a ler praticamente “sozinhos”, pelo ambiente cultural em que vivem. São candidatos ideais para escolas e métodos experimentais de qualquer tipo. Já os de famílias pobres e pouco educadas, se não recebem uma educação bem estruturada e sistemática e resolvem de forma efetiva a alfabetização inicial, não aprendem nunca. É o que mostra a altíssima correlação entre nível socioeconômico das famílias e desempenho escolar das crianças no Brasil. É claro que se não há professores minimamente qualificados, se os professores faltam ao trabalho ou são substituidos a toda hora, se a escola é um caos e não tem o mínimo de recursos, não há método que funcione. Mas sabemos também que pouco adianta melhorar os salários dos professores e obrigá-los a ter diplomas de nível superior e de pós-graduação se eles não aprendem e utilizam métodos adequados de ensino, apoiados por bons materiais didáticos, e acompanhados por procedimentos regulares de avaliação. Nossas secretarias de educação gastam muito dinheiro em todo tipo de programas de qualificação de professores, e os resultados destes esforços são desconhecidos, e provavelmente nulos.

Para avançar na área da educação não basta a boa vontade e o bom senso, e nem mesmo dinheiro: é necessário também pesquisar e entender o que funciona e o que não funciona. Hoje, por exemplo, há uma idéia generalizada de que a falta de pré-escola é uma das causas do fracasso escolar no país. A pré-escola vem se expandindo enormemente nos últimos anos, consumindo recursos que poderiam estar sendo aplicados na melhoria da educação fundamental, mas não há sinal de que, com isto, a qualidade da educação básica esteja melhorando. Pesquisas fora do Brasil comprovam que um bom investimento na educação pré-escolar é muito importante para garantir bons resultados futuros. Mas quem disse que a pré-escola brasileira é um “bom investimento na educação”, e não, simplesmente, um sistema de creches de qualidade desconhecida, sobretudo para a população mais pobre?

Faz parte da tarefa de colocar a educação como prioridade nacional ir além do sentido comum, e entender melhor os problemas específicos e os possíveis resultados de determinadas políticas. Em relação aos métodos pedagógicos, o que necessitamos é sair da situação que havia até agora em que o governo impunha um método único, de validade questionada em todo o mundo, para uma situação em que o setor público estimule a pluralidade de métodos e avalie de forma sistemática os resultados, fazendo com que o melhor prevaleça. É só um pedaço do problema, mas um pedaço muito importante.

Peter Fry e Yvonne Maggie sobre cotas nas universidades

Peter Fry e Yvonne Maggie publicaram o seguinte texto no O Globo de 11 de abril:

Política social de Alto Risco

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99 que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros (pretos e pardos na classificação do IBGE), indígenas e outras minorias. Estas cotas serão aplicadas linearmente em todos os cursos das universidades federais.

Por que essa medida é polêmica? Uns dizem que vai reduzir a qualidade de ensino e pesquisa das universidades federais. Pode ser. Mas o que queríamos sugerir é que esta lei traz conseqüências que vão muito além das portas das universidades. Ela implica um projeto radicalmente novo de nação. A lei, se aprovada, irá instituir, no âmbito federal, o negro como figura jurídica, o que já ocorreu em 2001 no Estado do Rio de Janeiro, com a aprovação da lei de reserva de vagas para as universidades estaduais votado por aclamação pela Assembléia Legislativa.

O que significa instituir o negro como entidade jurídica? Significa uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora “raça” e pune o racismo como crime inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos. Se passar essa lei e os cidadãos serão divididos em duas “raças” com direitos distintos de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias. A política de cotas raciais, como vem sendo denominada, institui, portanto uma sociedade dividida entre “brancos” e “negros”. Em outros lugares do mundo esse tipo de engenharia social trouxe mais dor do que alívio para os problemas a que visava solucionar.

Há uns que dizem que quem é contra as cotas apenas defende os seus privilégios. A política de cotas raciais em nada vai afetar as elites endinheiradas do país. Estas continuarão mandando os seus rebentos para os cursos pré-vestibulares mais badalados, e encaminharão a sua prole menos competitiva para universidades no primeiro mundo. As cotas são destinadas justamente para a classe média baixa que só agora com a expansão do ensino de segundo grau pode sonhar em ver os seus filhos entrarem na universidade. E essa classe média ascendente é justamente aquela em que gentes de todas as cores convivem nas mesmas famílias e vizinhanças. Queremos cindir esse universo social em duas “raças”?

Dirão os proponentes dessa política que o país já é dividido na prática, na realidade, no dia a dia. Mas é justamente contra isso que o anti-racista deve lutar. A luta contra o racismo deve ser prioritária, dever de todo o cidadão. No entanto, o remédio que está sendo ofertado em uma bandeja de prata, é um remédio barato (posto que é uma política de custo zero que não irá onerar os cofres públicos) e arriscado, pois o seu custo social pode ser muito alto. É uma política de curto prazo cujas conseqüências serão sentidas no longo prazo.

Outros defensores das cotas acusam aqueles que têm dúvidas, de racistas, evidentemente no intuito de calar a crítica. Mas as nossas críticas em relação à política de cotas raciais partem de um anti-racismo que se espanta com a forte correlação entre cor escura e pobreza, e que se revolta perante o preconceito e discriminação, velados ou não, que contribuem para tal desigualdade. Um anti-racismo que percebe com toda clareza que a discriminação e o preconceito derivam das representações sociais que hierarquizam entidades denominadas “raças”. Por isso, nos sentimos na obrigação de lutar contra essas representações, uma vez que é a persistência delas que possibilita a continuidade da discriminação e, portanto, da desigualdade.

O debate sobre as cotas é um debate sobre o Brasil. O que está em pauta são dois projetos de combate ao racismo: um pela via do fortalecimento das identidades “raciais” e, em última análise, do genocídio dos “pardos”, “caboclos”, “morenos”etc.; outro pela via do anti-racismo que procura concentrar esforços na diminuição das diferenças de classe e uma luta contínua contra as representações negativas atribuídas às pessoas mais escuras. Esses projetos também são projetos distintos de nação. Um vislumbra uma nação pautada das diferenças “étnicas/raciais”—isto é uma nação de comunidades. Outro projeto aposta na construção de uma cidadania com direitos em comum independentemente de “raça”, “etnia”, gênero, orientação sexual, etc., salvaguardando o direito de cada individuo a seguir o estilo de vida que mais lhe convém—isto é uma nação de indivíduos. Enfim, argumentamos que não se pode acabar com o racismo com uma política que entroniza a “raça”. Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a “raça”, cria justamente aquilo que quer ver destruído. Merecemos melhor solução para os graves problemas que nos assolam.

Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura: um Brasil de cotas raciais?

Este artigo saiu publicado no Correio Brasiliense de quinta feira, 13 de abril de 2006:

O Congresso Nacional está prestes a aprovar a introdução de cotas raciais nas universidades sem um debate mais amplo com a sociedade. Tramita ainda o Estatuto da Igualdade Racial, que, apesar da designação ampla, contempla um segmento específico (os afrobrasileiros), propondo, entre outras medidas, que o cidadão declare compulsoriamente a sua “raça” em todos os documentos gerados nos sistemas de ensino, saúde, trabalho e previdência. Cria-se um Brasil de brancos e não brancos, ou de negros e não negros. Essas iniciativas procuram transformar a diversidade étnico-social da população brasileira em grupos raciais estanques.

O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que a situação pouco se altere. Há a necessidade de políticas sociais que compensem os prejudicados no passado, ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam corrigir um mal maior. Além disso, teriam caráter temporário. No momento atual, no qual mais do que nunca é necessário que se ampliem os debates com a sociedade civil, inclusive com vistas a que o Congresso aperfeiçoe os projetos sob análise, quem discorda desse modelo de políticas sociais, em particular das cotas, vem sendo tachado até mesmo de racista.

A estratégia das cotas é solução equivocada para um problema mal definido. Análises estatísticas mostram correlações importantes entre cor e uma série de desvantagens econômicas e sociais, que persistem mesmo quando outras variáveis são controladas. Assim, “brancos”, “pardos” e “pretos”, ainda que de mesmo nível educacional, têm rendimentos diferentes. Contudo, essas associações precisam ser vistas com cautela, pois não contam toda a história. Mesmo com o mesmo número de anos de estudo, por exemplo, indivíduos negros e pardos podem ter se formado em cursos de menor prestígio e valorização no mercado de trabalho. De fato, parte das diferenças pode também derivar da exposição à discriminação, ainda que faltem estudos detalhados sobre como os mecanismos discriminatórios operam e produzem as desigualdades observadas. Contudo, o que está ampla e detalhadamente comprovado é que a educação das pessoas é o que mais explica as diferenças de renda e oportunidades de vida.

A maneira mais efetiva de reduzir as desigualdades sociais é pela generalização da educação básica de qualidade e pela abertura de bons postos de trabalho. Cotas raciais, mesmo se eficazmente implementadas, promoverão somente a ascensão social de um reduzido número de pessoas, não alterando os fatores mais profundos que determinam as iniqüidades sociais. São reconhecidamente sérios os problemas envolvidos na implementação de cotas. Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades com direitos específicos. Já se vê no país a ocorrência de experiências polêmicas de implementação de cotas que desrespeitam o direito das pessoas à autoclassificação. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos “raciais” estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir efeito contrário, ou seja, o acirramento do conflito e da intolerância, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos.

Que Brasil queremos? Um país no qual as escolas eduquem as crianças pobres, independentemente da cor ou raça, dando-lhes oportunidade de ascensão social e econômica; no qual as universidades se preocupem em usar bem os recursos e formar bem os alunos. No caso do ensino superior, o melhor caminho é aumentar o número de vagas nas instituições públicas, ampliar os cursos noturnos, difundir os cursos de pré-vestibular para alunos carentes, implantar câmpus em áreas mais pobres, entre outras medidas. Devemos almejar um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela cor ou raça: que se valorize a diversidade como um processo vivaz que deve permanecer livre de normas impostas pelo Estado a indivíduos que não necessariamente querem se definir segundo critérios raciais.

Luisa F. Schwartzman: uma proposta alternativa às cotas

A introdução forçada de cotas raciais nas universidades, que o Congresso está discutindo, é a maneira errada de tratar de um problema importante, que são as desigualdades sociais que afetam pessoas de diferentes origens sociais e culturais. Existem, no entanto, melhores alternativas, como mostra este texto de Luisa Farah Schwartzman, que vem estudando o tema.


Uma proposta alternativa às cotas

Fiquei surpresa como todo mundo no Brasil se posiciona contra ou a favor de um sistema de cotas, um sistema que nos Estados Unidos é considerado uma forma extrema de ação afirmativa. Os que se opõem às cotas em geral propõem como solução a melhora do ensino básico.

É claro que melhorar o ensino básico é importante. No entanto, não acho que a única escolha que temos é entre um sistema de cotas e melhorar o ensino básico. Mesmo melhorando o ensino básico, sempre vão existir desvantagens que são transmitidas de uma geração para a outra. Isso também acontece em paises desenvolvidos. Além disso, pode-se criar um sistema da ação afirmativa que seja importante somente enquanto o ensino básico não resolver os problemas: se o ensino básico for suficiente, ele vai tornar a ação afirmativa redundante, mas enquanto não for, a ação afirmativa pode corrigir essa deficiência. Alem disso, é bom ter pessoas que vêm de origens mais humildes em posições de prestígio, porque elas podem devolver para a comunidade mais pobre os benefícios que receberam. Por exemplo, um médico que nasceu na favela pode ser mais capaz de tratar dos problemas de saúde das pessoas de sua comunidade de origem.

Um aspecto muito discutido em relação das cotas é a questão racial. Existe obviamente uma correlação forte entre cor, renda e educação no Brasil. Seja quais forem as causas (racismo, herança do passado etc.) seria bom mudar essa correlação. Ser negro no Brasil ainda é visto como sinônimo de pobreza. Se estivéssemos acostumados a ver negros de classe média, talvez não fizéssemos mais essa associação, e isso mudaria a maneira pela qual os negros são tratados na nossa sociedade.

O problema é que usar o critério racial diretamente traz várias dificuldades. Uma tem a ver com se o governo (ou universidades) devem impor identidade/classificação racial às pessoas. O caso da UNB ilustra isso bem: quem tem o direito de determinar se um indivíduo é negro ou não? As universidades vão impor sua classificação aos alunos? Se você deixar a cargo de escolha do indivíduo (como é o caso da UERJ), como você vai saber se as pessoas que estão se classificando como negras (ou pardas) realmente são tratadas como negras (ou não-brancas) na sociedade? E a questão da herança? Ter ancestrais negros não importa, independente da cor da pele? E será que todas as pessoas sabem que são discriminadas? E as pessoas que se classificam como “pardos”? Elas se consideram “negras”? Na linguagem popular, “negro” muitas vezes é um conceito mais restrito, que se refere a pessoas de pele mais escura. Pesquisas mostram que “pardos” e “pretos” são parecidos em relação a características sócio-econômicas, mas que são diferentes em relação a outras questões, como casamento, violência policial e segregação. O que significa que a discriminação contra “pardos” seria mais institucional, e por isso mais difícil de ser notada. Muitas pessoas classificadas como “pardas” nem se vêem como “negras” (ou se vêem assim somente em algumas situações) nem sabem que são discriminadas. Como essas pessoas vão julgar se merecem ou não participar da cota? Além disso, não deveríamos criar a imagem de que os negros de classe media chegaram onde estão somente por causa das ações afirmativas (mas ao mesmo tempo, é melhor ter uma oportunidade assim do que não ter nenhuma).

Uma boa solução seria implantar um sistema de metas. O governo estipula uma meta para as universidades, que pode ser baseada em cor/raça, mas também pode ter outros critérios, como percentagens de alunos cujos pais não foram para a universidade, percentagem de alunos com certo nível de renda etc., e ficaria a cargo dos departamentos dentro das universidades decidir como chegar a essa meta. A meta podia ir crescendo através dos anos para as universidades terem tempo de se adaptar. O papel do governo seria 1) tirar amostras de alunos em períodos mais avançados para avaliar o perfil dessa população e 2) distribuir recursos de acordo com se o perfil está seguindo ou não a meta.

Um sistema de metas significaria que as universidades poderiam usar critérios não-raciais para atingir objetivos de melhora da “igualdade racial.” Isso poderia incluir convênios com cursinhos e escolas secundarias da periferia, modificação do vestibular, cotas com critérios sociais, melhoria no recrutamento (por exemplo, as universidades poderiam dar mais informação para escolas secundarias onde os alunos tendem a não prestar vestibular) etc. A vantagem seria não ter que medir raça no vestibular, mas também criar oportunidades para pessoas brancas que também tenham algum tipo de desvantagem.

Também significaria que a universidade não teria que resolver somente o problema de admissão dos alunos, mas também o de retenção. Ou seja, não adianta colocar todo mundo para dentro e depois do primeiro ano as pessoas largarem a faculdade. A universidade tem que poder incorporar alunos com mais dificuldades, não só dando aula de reforço e ajuda financeira (que deveria que ser parte do pacote do sistema de metas), mas também institucionalizar um sistema que permita a alunos de origens mais humildes entender o “currículo não-escrito,” ou seja, regras informais que pessoas de classe media que entram já sabem, até por terem contatos fora da universidade com pessoas que já são profissionais da área, e em geral por terem pessoas na família que já tem experiência de estar na universidade, ou fazendo aquele curso especificamente.

Um sistema de metas mudaria a obrigação de se perguntar a cor do aluno. Primeiro, porque nem todos os alunos teriam que marcar sua cor, já que seria uma amostra. Segundo, que a cor que um indivíduo marcasse não teria nenhum impacto na chance dele de estar na faculdade, então não teria nenhum incentivo para ele marcar diferente do que ele faria, digamos, numa pesquisa do IBGE, com a vantagem de se poder comparar com as estatísticas. Como marcar a cor não teria conseqüência individual, o ato de marcar a cor teria menos impacto no dia-a-dia da pessoa e portanto seria menos impositivo.

Um sistema de metas poderia ter um resultado mais radical do que um sistema de cotas. Isso porque o sistema de cotas dá margem às universidades de arranjarem maneiras de seguir os critérios formais e ao mesmo tempo reduzir significativamente o numero de alunos beneficiados. Isso parece estar acontecendo na UERJ. A UERJ instituiu uma renda per capita máxima muito baixa e uma nota de corte (para muitos departamentos) muito alta. Isso significa que existem pouquíssimos alunos que, ao mesmo tempo, acabaram o segundo grau, ganham mais do que esse mínimo e vão superar a nota mínima, o que significa que está sobrando vaga na cota. Um sistema de metas (com critérios mais gerais e com certa flexibilidade para os departamentos decidirem os detalhes) eliminaria esse problema.

É possível que membros do movimento negro continuassem criticando esta proposta, argumentando que ela eliminaria a discussão sobre desigualdade racial e discriminação no Brasil. Uma forma de resolver isso seria incluir esses temas no currículo da universidade, o que, no meu ver, deveria incluir uma discussão que questione o conceito de raça como algo com base biológica, e explique para os alunos que esse conceito só faz sentido como um fenômeno social. O tema das cotas está levando a uma discussão sobre o racismo mas deixando intacta a questão do racialismo (a idéia de que raças existem biologicamente), e os estudantes deveriam estar discutindo os dois assuntos. Vale a pena ressaltar que o discurso de miscigenação também é um discurso racialista, pois se não existem raças, também não pode haver miscigenação. De novo, acho que cada departamento deveria ter a liberdade de escolher como inserir a discussão sobre essas questões no currículo, tentando relacioná-las com a área específica de cada curso.

Em resumo, a proposta seria o seguinte. Um sistema de metas raciais (que pode ser combinado com outros critérios), que seria avaliado com base em uma amostra de alunos no terceiro ou quarto período, com recursos do governo atrelados ao cumprimento ou não dessas metas. Junto com isso, uma proposta de incluir nos currículos uma discussão sobre desigualdade racial, racismo e sobre o conceito de raça/cor (que pode incluir uma discussão mais ampla sobre desigualdade social no Brasil).

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